Observatório da Cultura
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A fé, questão de vida que faz viver

Os lugares e os ritmos mais elementares da existência humana, com seus cumes e seus abismos, a sua graciosidade e o seu custo, são os mesmos ritmos e lugares em que se dá e se vive a fé em Jesus de Nazaré. Em filigrana, já condensam e desenham o dom e o custo da fé num Deus que se nos dá, expondo-se por entre as possibilidades e fragilidades da nossa existência corpórea, sempre, por isso, situada na atualidade de um presente e no concreto de um lugar. Lembremos o nascimento e a morte, a paternidade e a maternidade, o sermos filhos e irmãos, a confiança e o temor, a culpa e a reconciliação, a aliança e a traição.

Maravilhados ou temerosos pelo mistério inacessível dos inícios e do fim que nos envolve, não podemos deixar de viver entre a memória e a esperança, de estremecer diante da ingovernabilidade dos acontecimentos, de nos admirarmos diante do milagre da vida sempre, de novo, restituída. Com toda a sua complexidade e ambiguidade, é nestes lugares do nosso quotidiano que sempre se joga a existência de cada homem, de cada mulher e de cada grupo humano. Por isso, é também este o húmus da imagem que possamos ter de Deus - ajustada ou distorcida - e do ato de crer - realizado ou recusado - enquanto experiência densamente humana. Bem longe de ser um vago e cego arrepio da alma ou o resultado, claro e distinto, de uma demonstração lógica, a fé é sempre questão de vida - e de morte do medo de confiar num outro e de se lhe confiar. É disposição vital e contacto corpóreo, por vezes dramático e doloroso, com Deus, Origem e Destino, que se nos expõe, também Ele, no corpo de carne de seu Filho.

Seria muito pobre considerar a fé apenas como uma doutrina, a aceitar e a aprender cegamente. Ou, então, como um conjunto rigoroso de ritos a executar impecavelmente, ou como uma moral severa a cumprir escrupulosamente. Ou, ainda, como uma rica tradição religiosa a preservar fielmente. E seria ainda mais pobre se fosse tida como a solução instantânea para todos os problemas, mais ou menos alienada da realidade, mais ou menos ideológica, mais ou menos etérea. Garantiria tudo, a custo de quase nada, iludindo o lado fascinante, mas também tremendo, do mundo divino, e dispensando da real travessia das questões difíceis da existência e do custo que a vida sempre tem. Mas a fé, se é opção por um estilo humano de vida, grato e gracioso, que gera, por isso, individual e comunitariamente, modos concretos de ver, de pensar e de agir - não deixa, por isso, de implicar doutrina e rito, moral e tradição -, é, primeiro que tudo, disposição, dinamismo e encontro visceral com a paisagem, a palavra e o rosto de Deus revelado na história efetiva de Jesus. É encontro com a graça-do-Filho-de-Deus-que-salva, face a face (por vezes, corpo a corpo, porque o dom pode encontrar resistências), graça à qual, confiada e livremente, me abandono. Só porque a fé é questão de vida (e de morte), me poderá fazer viver, permanecendo firme.

A fé-que-salva é, portanto, o reconhecimento afetivo e ponderado, continuamente grato, e o abandono livre, continuamente renovado, ao excesso do dom divino que, na história de Jesus, se revela digno dos afetos humanos mais caros e se oferece, assim, ao discernimento e decisão da liberdade, corporal e historicamente situada. Tratando-se de um laço vital com Jesus de Nazaré e, nele, com o Pai, no Espírito, renovado continuamente ao ritmo da vida concreta, não poderá ser menos do que um ato muito humano. Sendo gesto de abandono reconhecido e deliberado, afetivo e responsável, livre e generoso, de uma biografia que se reconhece agraciada, precisamente quando se vê visceralmente tocada e assinalada (talvez ferida) pelo dom de Deus oferecido em Jesus de Nazaré, a fé não poderia implicar menos que a totalidade de uma existência bem radicada no seu lugar. Não esqueçamos como os próprios discípulos, só quando são «“tocados” pela humanidade de Cristo», se tornam «capazes de “tocar” a sua divindade». Exatamente, porque «não existe outro acesso à divindade de Deus senão através da sua própria humanidade» (Mazza, 2008: 213).

Bastaria abrir uma qualquer página da Sagrada Escritura, com seus contos e parábolas, mandamentos e orações, sabedoria e profecias, para testemunhar como é por entre os avanços e os recuos de um povo e as particularidades de tantas biografias que o Deus bíblico se expõe, lentamente, à difícil e admirável história humana. Nenhum nome o fixa. Nenhum lugar o aprisiona. Nenhuma narração o esgota. Porém, dá-se na contingência dos olhares que o entreveem, nas vozes que o invocam, nas biografias que lhe dão corpo, nos lugares de vida e de celebração que assinalam a sua passagem, nos silêncios que preservam a sua diferença. Por isso, temos a Escritura como testemunha lenta e plural do impacte corpóreo e do difícil pacto do divino com o humano - bênção já admiravelmente realizada e ainda promessa de um dom frágil a cumprir, até que Deus, em Jesus Cristo, chegue a ser toda a vida na vida de todos.

 

Este texto integra o número 20 do "Observatório da Cultura" (novembro 2013).

 

José Frazão Correia
In A fé vive de afeto, ed. Paulinas
14.11.13

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