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Leitura: "A força do desejo"

Leitura: "A força do desejo"

Imagem Capa | D.R.

«Estamos habituados a pensar o desejo segundo uma lógica neurótica e moralista, para a qual o desejo seria a transgressão da lei. Quando a criança tem a boca suja de marmelada, diz-se-lhe: "O que fizeste?" "Comi marmelada": é o desejo que infringe a lei. Mas isto é uma versão perversa do desejo, o desejo como transgressão. Não!»

"A força do desejo" é uma das mais recentes novidades da Paulinas Editora, na qual o autor, Massimo Recalcati, defende que no desejo se deve «encontrar uma lei que não oprima a vida, mas a torne generativa, geradora», e se assim acontecer, «o desejo deixa de estar em oposição à lei, porque é uma expressão, a expressão mais forte da lei».

Apresentamos um excerto da obra que entrelaça a psicanálise com a mensagem evangélica.

 

A força do desejo
Massimo Recalcati
Paulinas Editora

"Desejantes": é com esta imagem que vou iniciar algumas considerações sobre o desejo e sobre as suas contradições internas.

A primeira contradição para que gostaria de apontar o refletor é que o desejo é, antes de tudo, uma experiência singular, uma experiência absolutamente singular: o desejo é a minha própria experiência, é o encontro com a minha intimidade mais radical; porque, de facto, sempre que o desejo aparece diz algo do meu ser mais profundo. Mas logo chega a contradição: esta experiência do desejo é, ao mesmo tempo, experiência de uma força, de um impulso que me ultrapassa, que me supera. O desejo é algo de meu, de mim próprio; mas, também e simultaneamente, é uma força que não governo, que me ultrapassa; é uma transcendência; habita em mim, mas está além de mim; habita em mim, habita o meu eu, mas o meu eu não está em condições de governar esta experiência. Mais: poderíamos até dizer, mais radicalmente, que onde está o eu não há desejo, e onde há desejo não existe o eu.



A experiência do arrebatamento amoroso – relativamente a qualquer objeto, e não somente na relação homem-mulher – é a experiência de se sentir transportado, arrastado para fora de si, precisamente «arrebatado»



A esse propósito, devíamos inverter a imagem que vem de Platão: a ideia de que o eu é o cavaleiro que, através da força da razão, governa os impulsos irracionais do cavalo, a razão proprietária da pulsão. Porque, se olharmos atentamente para o que está em jogo na experiência do desejo, veremos que esta imagem não funciona. Não somos proprietários do desejo, não somos os cavaleiros do desejo, mas somos levados pelo desejo; não temos a posse do desejo, mas somos possuídos pelo desejo; e digo «possuídos» não no sentido negativo do termo. O desejo é uma força que nos atravessa, algo que encontramos em todos os homens de desejo, por exemplo, quando falam: o que se vê quando um homem de desejo fala é que há uma força que o atravessa, que é diferente, que não é simplesmente a força do eu, mas que é algo ulterior relativamente ao seu eu.

Portanto, a primeira contradição é esta: o desejo é o eu próprio, define o que eu sou no mais íntimo; mas, ao mesmo tempo, eu não posso governar completamente a experiência do desejo por que é a experiência de uma força que me ultrapassa. Entre os muitos exemplos, podemos pensar no mais simples, que é a experiência do enamoramento: ninguém decide por quem apaixonar-se, para que objeto voltar-se; é o objeto do amor que causa o desejo. Nunca é uma decisão tomada depois de uma reflexão. A experiência do arrebatamento amoroso – relativamente a qualquer objeto, e não somente na relação homem-mulher – é a experiência de se sentir transportado, arrastado para fora de si, precisamente «arrebatado».



A vida quer viver, a vida quer a vida, a vida é sede de vida. Mas há um ponto em que a vida animal e a vida humana se diferenciam: é quando a vida humana toma a forma do apelo ao outro, da invocação do outro, (poderíamos dizer radicalmente) da oração: a vida humana é vida que se dirige ao outro



Onde estiver o eu, onde houver a suposição de que o eu governa o desejo, não haverá desejo. E, vice-versa, o desejo aparece quando o eu enfraquece, quando o eu reconhece a sua insuficiência. Era por isso que Jacques Lacan dizia que, no fundo, o eu é a doença mental do homem: crer-se um eu é verdadeiramente a «maior loucura», como ele lhe chamava. Alguém crer que é autossuficiente, que se possui a si mesmo, que é proprietário do desejo, é uma loucura idolátrica, a loucura do eu. A um homem que acredita ser Napoleão chamam-lhe doido – diz Lacan –, mas é ainda mais doido um rei que acredita que é um rei. Acreditar que se é um eu é uma loucura, e esta loucura ensombra a experiência do desejo. Este é o primeiro paradoxo: a experiência do desejo é minha e, ao mesmo tempo, não é minha; é uma propriedade e, simultaneamente, uma impropriedade; é uma imanência e, ao mesmo tempo, uma transcendência.

 

Desejo do desejo do outro

O segundo paradoxo, ainda mais importante, ainda mais radical, é que o desejo humano, o desejo como aquilo que humaniza a vida e a separa da animalidade – uso as palavras do meu mestre –, é «o desejo do desejo do outro».

Com que se satisfaz o desejo humano? Satisfaz-se com o facto de ser desejado por outro desejo. O desejo não se satisfaz do mesmo modo que se satisfaz o instinto animal, o instinto pelo qual, por exemplo, eu, neste momento, tenho sede. A sede satisfaz-se bebendo água. Friedrich Hegel falava de «negação unilateral» na relação entre mim e a água: eu bebo a água, nego a água, satisfaço o instinto. Ora o instinto animal é/está inscrito biologicamente: assim também a fome, a sede e a necessidade de respirar. Mas a vida humana não se realiza através do instinto animal. Há necessidade de um suplemento. (...) A vida quer viver, a vida quer a vida, a vida é sede de vida. Mas há um ponto em que a vida animal e a vida humana se diferenciam: é quando a vida humana toma a forma do apelo ao outro, da invocação do outro, (poderíamos dizer radicalmente) da oração: a vida humana é vida que se dirige ao outro. Todos nós fomos «um grito na noite», todos nós tivemos a experiência de ser um grito na noite. Uma criança que berra no escuro: todos nós fomos esta criança que grita na noite, todos já fizemos a experiência do grito. Então, quando é que a vida se humaniza? Quando este grito que nós fomos for ouvido pelo outro, traduzido em pedido de amor, traduzido em pedido de presença. A criança que berra na noite com o corpo em febre encontrará a tradução do seu grito a pedir amor, se e quando houver alguém que lhe responda. É a resposta do outro – «Estou aqui, estou contigo, estou presente» –, portanto, a responsabilidade do outro que traduz o grito em pedido de amor.



Era por isso que Dolto dizia que temos no Evangelho a figura mais radical de paternidade em São José, que diz sim, independentemente da biologia, que adota a vida independentemente da continuidade de sangue. Aliás, encontro exemplos formidáveis deste sim à vida, desta adoção da vida, independentemente da genealogia, na obra de Clint Eastwood



É este o ponto em que a vida se humaniza: no momento em que o grito é traduzido como pedido de amor. Eu cito frequentemente uma coisa da experiência biográfica de Sigmund Freud, que sempre me impressionou muito. Ele fala de uma sobrinhinha que tinha medo de dormir no escuro e que pedia à mãe, sempre que ela a levava para a sua caminha, que ficasse com ela. A mãe dizia-lhe: «Agora é a hora em que deves adormecer e eu tenho de apagar as luzes.» A menina, angustiada, respondia: «Sim, podes apagar as luzes, mas fica comigo, porque a tua palavra é luz; e, se falares, haverá luz.» É este o ponto em que a vida humana se diferencia da vida animal: é o apelo à resposta, é o apelo à presença, é o facto de que o meu desejo existirá se for reconhecido pelo desejo do outro. Portanto, o desejo humano satisfaz-se não com um pedaço de corpo do outro, não com um objeto, mas através do desejo do outro, com a sua presença.

Parece-me que isto é outro ponto decisivo para dizer o que está em jogo no desejo: o desejo satisfaz-se através do desejo do outro, isto é, a tua vida tem um sentido para mim, a tua vida não está privada de sentido, não está na insignificância. É nesta perspetiva que penso a paternidade, considerando – como também Françoise Dolto dizia insistentemente – que é sempre adotiva. Não há paternidade biológica na vida humana: o pai não é o espermatozóide; a paternidade é dizer: «Sim, tu és meu filho», independentemente do sangue, da estirpe e da biologia. Era por isso que Dolto dizia que temos no Evangelho a figura mais radical de paternidade em São José, que diz sim, independentemente da biologia, que adota a vida independentemente da continuidade de sangue. Aliás, encontro exemplos formidáveis deste sim à vida, desta adoção da vida, independentemente da genealogia, na obra de Clint Eastwood, um dos mais notáveis autores da contemporaneidade; em toda a sua produção cinematográfica, sobretudo na mais recente (estou a pensar em Million Dollar Baby Sonhos vencidos [2004] e Gran Torino [2008]).

Para se humanizar, a vida humana precisa deste sim, precisa de ser adotada, precisa de que alguém, na escuridão da noite, responda e, portanto, de que alguém dê sentido à nossa vida.



 

Edição: SNPC
Publicado em 15.05.2017

 

Título: A força do desejo
Autor: Massimo Recalcati
Editora: Título do livro
Páginas: 48
Preço: 4,05 €
ISBN: 978-989-673-579-1

 

 
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