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Arquitetura Cisterciense: Espiritualidade, Estética, Teologia

A editora Paulus vai apresentar na sacristia do Mosteiro de Alcobaça a obra "Arquitetura Cisterciense" - Espiritualidade, Estética, Teologia", de Duarte Nuno Morgado.

A sessão agendada para 28 de abril, às 16h00, conta com as intervenções de Ana Maria Tavares Martins, arquiteta, professora auxiliar do Departamento de Engenharia Civil e Arquitetura da Universidade da Beira Interior, e Jorge Pereira de Sampaio, diretor do Mosteiro de Alcobaça.

 

Introdução

Passados quase mil anos, somos hoje herdeiros de um património que irrompe períodos diferentes de muitas nações da Europa e do Mundo, e que não se resume a uma herança desligada do tempo em que vivemos. Aprofundar as raízes de onde provém a nossa própria identidade significa, antes de mais, procurar as razões que conduziram as sociedades anteriores à nossa até ao resultado que somos e temos hoje. Foi isso que levou a este estudo que agora se publica, onde entramos na Ordem de Cister através da sua vertente mais expressiva e plástica que é a arquitetura que podemos hoje contemplar, estudar e reconhecer como distinta de tantas outras formas, cuja forma primeira reside num primeiro alicerce: viver segundo o Espírito de Deus.

Para a Ordem de Cister, fundada em 1098 por Roberto, abade de Molesmes, a arte seria unicamente expressão dos diálogos interiores entre o Monge e Deus. A arquitetura, a iluminura, a escultura, o vitral, a própria forma e toda a linguagem simbólica presentes nas muitas e diversificadas estruturas monásticas da Ordem seriam expressão da vida espiritual, sinal visível da Encarnação do Verbo que veio até nós para que o Mundo O reconhecesse e O seguisse. Para os Cistercienses, não era de somenos importância a construção de um edifício nem era irrisório todo o processo na planificação do cenóbio. O desejo patente em cada projeto era fazer do mosteiro uma humilde e sóbria habitação dos homens de Deus e um lugar privilegiado e digno da presença de Deus entre os homens.

Em todo o processo de desenvolvimento da Ordem, São Bernardo, primeiro abade de Claraval, foi o rosto de toda uma reforma que urgia iniciar dentro daquela que viria a ser uma das mais distintas e fortes ordens religiosas estabelecidas na Europa no período medieval, especificamente no período que alguns historiadores designam de Idade Média Clássica. Caracterizada pela paz e pela rutura com o modelo feudal, a Europa de então via erguer uma nova proposta de vida, uma recuperação do ideário há muito iniciado por Bento de Núrsia, mas que à época de Cister se via ameaçado pela rutura que acontecia no interior da Ordem Beneditina.

Assim, Bernardo de Claraval, nascido em Fontaíne-les-Dijon, na região da Borgonha, no sul de França, no ano de 1090, filho do Senhor de Fontaines, retomava a Regra de São Bento numa renovada compreensão e aplicação do sentido espiritual e humano que o texto-base da Ordem deixava como pista de caminho em díreção à perfeição e à santidade de cada monge.

Deste modo, a Ordem de Cister, saída da rutura com a decadência evidenciada em Cluny, será como que a possibilidade de retomar o espírito original da Regra beneditina e será um forte testemunho da vida monástica na sociedade medieval que então viu florescer novas formas de vida religiosa comum. Recordem-se as ordens religiosas criadas entre o século XII e o século XIII, das quais podemos destacar os Franciscanos, os Dominicanos, os Eremitas - Agostinhos, os Carmelitas, ou as formas de vida consagrada laical como é o caso das Beguinas e dos Humilhados, entre tantas outras expressões que se propagaram na Europa medieva.

Na época de São Bernardo, a Europa reafirmava o papel das Cruzadas e reassumia a necessidade de continuar a marcar a presença num mundo que assistia igualmente ao avanço ameaçador do Islão. Tenhamos em consideração a importância que teve a concessão régia de territórios reconquistados aos denominados Mouros às ordens religiosas, nomeadamente à Ordem Cisterciense. Recorde-se a este propósito, no caso português, a decisiva doação que Afonso Henriques faz a Bernardo de Claraval dos territórios para a futura fundação do Real Mosteiro de Alcobaça, e que conduziu à consolidação da presença cristã no futuro reino de Portugal.

Assim, neste livro gostaria que entrássemos na arquitetura de Císter, não do ponto de vista de uma análise especificamente arquitetóníca, mas salientando a dimensão teológica que se encontra na sua base e que nela terá a sua melhor expressão física. Digamos que o interesse está em compreender o significado espiritual das opções de Cister, daquilo que foi a pedra angular da reforma cisterciense e da intervenção de São Bernardo de Claraval, que foi fundamental para a compreensão da própria estética cristã e que hoje nos interroga e provoca. Para poder comprovar isso mesmo basta que entremos na igreja da abadia alcobacense e imediatamente verificamos que nos sentimos atraídos por uma interpelação espiritual, e que está muito aquém da mera dimensão de ver aquele espaço como um simples museu.

São as paredes, o despojamento, a luz, a profundidade e a altura que nos falam dessa presença de Deus, transmitida no espaço e na forma das coisas. Vamos compreender ao longo da nossa leitura como São Bernardo via a espiritualidade monástica em contradição com o espírito do mundo onde ele próprio havia nascido e vivido. Para ele e para os irmãos no monacato era (como hoje o é) evidente que uma vida enraizada em Cristo tem presente a Pessoa de Jesus em todos os seus atos e na normalidade da vida do dia-a-dia. Por isso o próprio edifício do mosteiro deveria ser a casa dos que amam e seguem o Senhor por meio do trabalho e da oração. E nesta vivência de entrega total e despojada o impulsionador dos Cistercienses interrogava como poderiam os monges viver em desacordo com esta mensagem de pureza e de inteira doação, quando na verdade se assistia à corrupção do ideal beneditino por meio das doações feudais e das dependências por elas criadas? Era por isso necessária uma profunda reforma de vida.

Da reforma que a Ordem de Cister fará ao tempo de Bernardo Claraval a noção de espaço espiritual assumiu uma forma e uma expressividade específicas. O mosteiro cisterciense assume-se enquanto expressão terrena da Cidade de Deus, detendo-nos na significação que tem para a reforma a edificação de um edifício espiritual, abdicando da dimensão da espetacularidade que existia no geral na abadia cluniacense. Para a sua construção diversos eram os critérios a ter em conta para a escolha do lugar e para a organização do mosteiro, tendo sempre em consideração a Regra de São Bento. Apesar de nada haver entre os Beneditinos acerca de formulários ou normas para a construção do cenóbío, veremos que bastou a Regra e alguns textos críticos de São Bernardo para que os Cistercienses delineassem um programa específico de arquitetura.

Esta reorganização teve sempre na sua base a reforma que se iniciou primeiramente com o abade Roberto de Molesmes e que teve em Bernardo o seu maior impulsionamento. Roberto e os vinte e um monges que o seguiram desde Molesmes até à floresta de Cister pretenderam recuperar o ideal cenobítico fundado no eremitismo como reação à vida comunitária praticada então nas abadias beneditinas de modo geral. Efetivamente, com o passar do tempo também a Ordem foi sentindo novas necessidades e foi aumentando a sua resposta aos pedidos que vinham do mundo e que lhe exigiam uma ação renovada, não apenas num contexto ad intra, mas também ad extra, junto das comunidades que se reuniam em torno dos mosteiros.

Nesta nova perspetiva acerca do espaço temos, então, além do espaço comunitário do próprio mosteiro, onde se realça de modo especial o claustro, um lugar privilegiado - a igreja. Se quisermos salientar o elemento que mais se destaca em todo o complexo monástico, a igreja é sem dúvida alguma o rosto da aplicação da reforma de Cister à arquitetura, pois é nela que a vida espiritual concreta ganha expressão na ação litúrgico-sacramental. Nesse sentido, ela assume-se também como habitação de Deus entre os homens. Se o mosteiro surge como símbolo escatológico da Cidade de Deus, a igreja é o espaço privilegiado para fazer sentir aos monges a antecipação na Terra do futuro encontro com Deus. A reforma de Cister assumiu como objetivo recuperar o ideal da vida espiritual ascética que se via afetada pela conjugação do poder temporal e do poder espiritual.

Deste modo, erguer uma igreja na Ordem de Cister não se prende com a mera questão artística, dando lugar aos básicos valores humanos da disputa e do orgulho de ter uma igreja cada vez maior e mais decorada, símbolo do poder territorial, como tantas vezes é referido em relação à construção das catedrais góticas da Europa medieval. Trata-se, antes de mais, de reconhecer que a morada de Deus há de ser bela na sua simplicidade, que por si mesma decorre de uma vida verdadeiramente ascética e austera, e por isso há de ser um símbolo do que universalmente se reconhece como categorias que definem o que Deus é: belo, bom, justo e verdadeiro.

Com toda esta questão cisterciense que iremos aprofundando na nossa leitura compreenderemos como não é possível haver uma arte cristã sem haver igualmente qualquer relação com o Verbo Encarnado. Para Roberto de Molesmes e, posteriormente, para Bernardo de Claraval, que se distinguiu na defesa desta leitura sobre a arte monástica, era ponto assente que a arte não poderia superar a vida espiritual. Se uma obra de arte tem o intuito de servir a fé e ser sua expressão material, então ela deve ser bela, mas simples. Assim, a expressão artística deve plasmar isso mesmo, e não somente transmitir o gosto e a vaidade humana.

Ponto assente é que não se pode deste livro esperar uma crítica fácil e redutora muitas vezes aplicada a São Bernardo; mas pelo contrário, em vez de uma perspetiva iconoclasta, vamos aprofundar o nosso olhar espiritual sobre a arte monástica. O abade de Claraval não nos deixou critérios nem projetos; deixou-nos apenas o legado da sua vida espiritual e a sua compreensão acerca desta questão em alguns textos que evidenciam o seu pensamento e que nos servem de referência para um estudo mais direto e objetivo, e igualmente esclarecedor, sobre a questão da arte cisterciense. Nesses mesmos textos, Bernardo, não rejeitando a arte nem a atacando, apresenta um renovado e distinto olhar já não da arte pela arte, mas da arte como lugar espiritual.

Este livro que partilho convosco não tem a pretensão de ser exaustivo, mas de ser uma humilde síntese de teor histórico-teológico com a acentuação na arte daquela que foi uma das maiores e mais significativas ordens religiosas em todo o mundo, e que se encontra fora de Portugal desde 1834. O vasto património que nos deixou continua a interpelar o estudioso. O nosso estudo pretende analisar somente alguns aspetos da estética cisterciense, que consideramos intemporal na sua dimensão mais profunda, que é a dimensão espiritual.

Diante das novas linguagens estéticas contemporâneas desenvolvidas no seio da arte cristã, a arte cisterciense permanece como matriz de uma nova compreensão, de um novo olhar sobre a matéria e a forma. Trata-se no fundo de manifestar o Belo na sua transparência e na sua simplicidade. Mais do que dantes somos confrontados hoje com este modus vivendi que se deixa esquecer pelas acelerações de um tempo que se recusa a fazer silêncio, mas que encontra nas abadias cistercienses o recolhimento e a profundidade que só Deus pode oferecer ao Homem. Aliás, a Carta aos Hebreus ajuda-nos nesta caminhada de procura pela base espiritual de uma estética cristã dizendo-nos exatamente que é em Deus que deve estar a fonte da construção humana: «Pela fé, [Abraão] estabeleceu-se como estrangeiro na Terra Prometida, habitando em tendas, tal como Isaac e Jacob, co-herdeiros da mesma promessa, pois esperava a cidade bem alicerçada, cujo arquiteto e construtor é o próprio Deus.» (Hb 11,10) Nada nos pertence por absoluto, nem sequer o traçado da nossa vida, pois tudo pertence a Deus e no fim de tudo a construção há de ser finalmente o projeto acabado perfeito, porque será belo, porque será de Deus.

 

Duarte Nuno Morgado
In Arquitetura Cisterciense, ed. Paulus
18.04.13

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