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Revelação e Cultura


1. O que o Concílio diz acerca da Cultura

Nos tratados de teologia, relaciona-se muito a Revelação com a Fé e situa-se aquela na História. Raramente se aprofunda a relação entre a Revelação e a Cultura. Esta exigência depreende-se de uma dupla direcção. Por um lado, a renovação exegética determinada pelo Concílio Vaticano II, nomeadamente no que diz respeito à forma como se deve encarar a Revelação, por outro lado, a implicação que a ruptura cultural, a que se tem vindo a assistir há alguns séculos, provocou na concepção da Revelação divina.

É de sublinhar, ainda, a consciência que a Igreja tem de que a Revelação, embora se expresse dentro de uma cultura determinada, é independente a qualquer cultura.

Neste meu modesto texto, procurarei situar esta implicação mútua da cultura e da Revelação, sem se confundirem, sublinhando a atenção que a teologia deve prestar à cultura de cada tempo, traduzindo, deste modo, os conceitos de Revelação em linguagem acessível ao homem situado num contexto cultural concreto e, ainda, as implicações pastorais que as épocas de ruptura cultural colocam à evangelização, ou seja, á oferta da Revelação divina.

O Cristianismo e com ele a Igreja têm a pretensão de oferecer ao homem e à sociedade uma verdade global. Por isso, a cultura é, a par com o homem, o objectivo da evangelização. «O serviço à pessoa e à sociedade humana exprime-se e realiza-se através da criação e transmissão da cultura, que, especialmente nos nossos dias, constitui uma das mais graves tarefas da convivência humana e da evolução social» (Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christifideles Laici, 44).

Na mente do Concílio a conveniente promoção do progresso cultural situa-se entre os problemas mais urgentes a merecer a atenção da Igreja e coloca-a, relacionando-a com a natureza, no âmago da realização humana.

A descrição que o Concílio faz de cultura é muito abrangente. Segundo ele, «a palavra “cultura” indica, em geral, todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por dominar, pelo estudo e pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais humana, com o progresso dos costumes e das instituições, a vida social, quer na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações» (Gaudium et Spes 53).

No que toca à relação da cultura com a Revelação não se pode considerar apenas de carácter passivo. A este respeito, João Paulo II tem um texto magnífico que nos pode servir de guia: «A cultura não é só sujeito de redenção e de elevação; mas pode ter também um papel de mediação e de colaboração. Com efeito, Deus, revelando-se ao Povo eleito, serviu-se de uma cultura particular; o mesmo fez Jesus Cristo, o Filho de Deus: a sua encarnação humana foi também encarnação cultural» (Mensagem de João Paulo II aos intelectuais, Coimbra, 1305.1982).

Portanto, quando pretendemos definir a cultura de um povo, entre os diversos elementos que a integram, a vertente espiritual é fundamental e, quando, no interior de uma determinada cultura se verifica que um povo se questionou acerca da realização individual e colectiva, e plasmou aí o sentido da sua existência, a dimensão da Revelação divina está presente mesmo que apenas de modo velado. Deste modo o refere o Papa João Paulo II: «Basta um mero olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra, animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que marcam o percurso da existência humana: quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? Que é que haverá para além desta vida? Tais perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tzém como na pregação de Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que têm a sua fonte comum na exigência de sentido que, desde sempre, arde no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende, efectivamente, a orientação a imprimir à existência» (Carta Encíclica Fides et Ratio, 1).

Concluindo, podemos afirmar que a cultura abrange a totalidade da vida de um povo, isto é, o conjunto de valores que o animam e que, sendo compartilhados por todos os cidadãos, os reúnem com base numa mesma consciência pessoal e colectiva. A cultura abraça também as formas através das quais os valores se exprimem e se configuram, como sejam os costumes, a religião, a língua, a arte, a literatura, as instituições e as estruturas sociais.

 

2. O que o Concílio diz acerca da Revelação

Segundo a concepção conciliar da Revelação, Deus desvela-se na história, através de acontecimentos e palavras, culminando esta sua manifestação na autodoaccção do seu Filho Jesus Cristo. «Esta “economia” da revelação realiza-se por meio de acções e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos, por essa revelação, em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação» (Dei Verbum, 2). Esta interligação entre uma revelação a que poderemos chamar de natural, patente a todos os povos e presente em todas as culturas, e a revelação na sua plenitude feita a um povo, é referida no documento conciliar ao afirmar que «Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo, oferece aos homens um testemunho perene de Si mesmo na criação e, além disso, decidindo abrir o caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se a si mesmo, desde o princípio, aos nossos primeiros pais» (DV, 3). A este respeito, João Paulo II realça as afirmações do Vaticano II acerca da complementaridade das duas formas de chegar a Deus, pela razão humana e pela fé na revelação: «A verdade alcançada pela via da reflexão filosófica e a verdade da Revelação não se confundem, nem uma torna a outra supérflua» (Carta Encíclica Fides et Ratio, 9).

Com a entrada da revelação na história, a cultura, ou melhor, as diversas culturas, são o meio onde se dá e se percebe a revelação. A história torna-se, assim, o caminho que o Povo de Deus tem de percorrer, de modo progressivo, mas fiel, de modo a captar a verdade total que Deus quer oferecer mediante a acção do Espírito Santo. «A história torna-se, deste modo, o lugar onde podemos constatar a acção de Deus a favor da humanidade. Ele vem ter connosco, servindo-se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual não conseguiríamos entender-nos» (Carta Encíclica Fides et Ratio, 12).

Com a encarnação de Jesus Cristo, dá-se o culminar de toda a revelação de Deus, feita num contexto histórico e cultural concreto, mas, porque é oferta do mistério da plenitude da verdade que a inteligência humana não consegue abarcar por si mesma, ultrapassa qualquer cultura.

Nas culturas dá-se o diálogo interpessoal entre Deus e o homem. Ao contrário de toda a cisão moderna que o pensamento provocou na consciência de um Deus pessoal, para o Concílio é crucial a compreensão da Revelação como diálogo interpessoal, no qual tomam lugar Deus e o homem, Deus na sua soberania, divindade, transcendência e liberdade supremas. O homem situado dentro das coordenadas culturais na quais se integra e pelas quais exprime a sua profundidade dialogal como ser à procura do Ser.

Há uma relação íntima entre a Revelação e a cultura. O autor sagrado, inspirado por Deus, é um ser historicamente situado e culturalmente condicionado. Daqui se depreende a Revelação divina feita dentro de uma cultura própria de um povo, que usa a linguagem cultural e a fermenta, purificando-a de todos os condicionalismos que não são verdadeiramente de acordo com o pensamento de Deus. Por isso, sendo Palavra inspirada, Deus na Sagrada Escritura «falou por meio dos homens e à maneira humana», o que acarreta uma interpretação cultural da Escritura, isto é, «o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras» (DV,12). Exige-se, deste modo, a todo aquele que interpreta a Revelação que «busque o sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e de facto exprimiu servindo-se dos géneros literários então usados. Com efeito, para entender rectamente o que o autor sagrado quis afirmar, deve atender-se convenientemente, quer aos modos nativos de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer àqueles que costumavam empregar-se frequentemente nas relações entre os homens de então» (DV, 12).

A Revelação coloca no interior da história e das culturas pontos de referência de que o homem não pode prescindir se quiser compreender o mistério da sua existência e do mundo que o envolve. É dentro da história e de uma cultura determinada que o homem, através da sua razão, questiona a sua própria existência e a do mundo onde vive, e é precisamente aí que Deus oferece as respostas que a sua inteligência por si própria não consegue encontrar.

A Revelação introduz, deste modo, na história dos homens «uma verdade universal e última que leva a mente do homem a nunca mais se deter», muito pelo contrário, «impele-a a ampliar continuamente os horizontes do próprio conhecimento até sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance, sem nada descurar» (Carta Encíclica Fides et Ratio, 15).

Com a entrada do filho de Deus na história, não só se dá o auge de toda a Revelação, mas também se atinge a plenitude da compreensão do mistério do homem. Em Jesus Cristo, a verdade suprema fica ao alcance do homem porque se apresenta em linguagem cultural que este pode compreender. Embora respeitando a liberdade e a autonomia da criatura, como que a obriga a abrir-se à transcendência. Deste modo, liberdade e verdade atingem a sua relação mais proeminente. Daqui podemos concluir que a verdade que a Revelação nos dá a conhecer «não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, apresenta-se revestida de gratuidade, obriga-nos a pensá-la, e exige ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é a presença antecipada, na nossa história, da visão última e definitiva de Deus, reservada para quantos acreditam n’Ele ou O procuram de coração sincero» (Carta Encíclica Fides et Ratio, 18).

 

2.1. O homem, integrado numa Cultura, é o destinatário da Revelação

João Paulo II, perante os intelectuais da Universidade de Coimbra, referia a relação do homem com a cultura, do seguinte modo: «A cultura é do homem, a partir do homem e para o homem» (Mensagem de João Paulo II aos intelectuais, Coimbra, 13.05.1982). E, continua afirmando que a cultura é do homem, referindo os recentes progressos da antropologia cultural e filosófica, porque esta caracteriza o homem e distingue-os dos outros seres não menos claramente que a razão, a liberdade e a linguagem. «O homem possui a razão e as mãos que são os órgãos dos órgãos, enquanto com a sua ajuda o homem pode munir-se de instrumentos para conseguir os seus fins» (Ib.).

Para explicar que a cultura vem do homem, afirma que «este recebe gratuitamente da natureza um conjunto de capacidades, de talentos, como lhes chama o evangelho, e, com a sua inteligência, a sua vontade e o seu trabalho, compete-lhe desenvolvê-los e fazê-los frutificar» (Ib.). Assim, a cultura constrói-se pelo cultivo dos talentos pessoais, seja a nível individual, seja a nível social, com a finalidade de se aperfeiçoar a si próprio e de dominar a natureza. Deste modo, o homem é cooperador de Deus na obra da criação pelo cultivo da terra, e eleva toda a sociedade humana até à contemplação divina, através do cultivo das ciências e das artes.

E, num terceiro plano, a cultura é para o homem porque este é não só artífice da cultura, mas também o seu principal destinatário. Tanto na formação do indivíduo como na forma espiritual da sociedade, a cultura deve ter sempre como objectivo a realização global da pessoa, isto é em todas as suas dimensões e capacidades. «O objectivo primário da cultura é o desenvolver o homem enquanto homem, o homem enquanto pessoa, ou seja, cada homem enquanto exemplar único e irrepetível da família humana» (Ib.).

Daqui se depreende que a cultura implica para o homem um sentido de unidade na pluralidade dos seus intervenientes e das suas manifestações. Por isso, «a cultura é quanto realiza o homem para fundar com o real circundante vínculos fecundos de colaboração, modos relevantes de unidade» (Alfonso López Quintas, La cultura y el sentido de la vida, PPC (1993), 13-14).

Cada acção humana, para que tenha sentido, deve contribuir a instaurar como seu meio formas de integração fecundas, modos de unidade não funcional, mas “lúdica”. Os modos de unidade que pode estabelecer o homem com as realidades que constituem o mundo em que se move são de diversos tipos e mostram graus de qualidade díspares. Descobrir e analisar a fundo os diversos modos de unidade que podemos fundar com as realidades do nosso meio constitui uma das investigações mais apaixonantes e férteis do pensamento actual, porque abre um horizonte amplo à nossa criatividade.

Os modos mais relevantes de unidade constituem o fenómeno do encontro. Esta realidade é hoje muito valorizada pela biologia ao sublinhar que o homem é um ser de encontro, ser que se vive como pessoa, que se desenvolve e aperfeiçoa estabelecendo relações de encontro. O encontro pessoal dá-se quando alguém exerce influência sobre os outros e recebe influência dos outros, realiza experiências estéticas, éticas, religiosas; exerce uma profissão, deixa a sua marca em diversas actividades e acontecimentos (Ib. 15-16). A vida humana desenvolve-se mediante a fundação de inter-relações valiosas, de encontros. Tanto a vida cultural como a vida religiosa devem constituir, enquanto formas de vida, um conjunto de modos relevantes de unidade. A fé e as práticas religiosas são, no fundo, um modo de adesão pessoal. A cultura tem por meta adquirir uma forma de unidade com o real superior à unidade funcional que tem o animal e que mostra o ser humano no seio materno (Cf. Ib., 25).

O Cristianismo imprimiu na cultura um grau de exigência que se traduz em modos de unidade tão elevados qualitativamente que se assemelham cada vez mais à relação entre o Pai e o Filho. Deste modo, a medida da qualidade de unidade que devem estabelecer os cristãos com Deus e uns com os outros tem uma dimensão infinita. Donde se conclui que «ao centrar no Infinito, a fé cristã abre âmbitos ilimitados à vida cultural porque oferece um horizonte inesgotável á tarefa de aperfeiçoamento dos vínculos com o real. Recorde-se a manifestação que a categoria de sublime desponta no âmbito do cultural feito possível pela abertura cristã à transcendência divina» (Ib., 26).

O fundamento último da cultura é o homem aberto ao infinito. Para entender a afirmação conciliar de que o fundamento último da cultura é o homem, Alfonso Quintás estabelece os seguintes parâmetros de relação do homem com a cultura: primeiro, o homem constitui um âmbito da realidade, possui iniciativa, elabora projectos, alberga possibilidades em ordem a estabelecer diversos tipos de vínculos com as realidades que o rodeiam e se oferecem como companheiros de jogo; segundo, é susceptível de ampliar, restringir e modificar o campo da realidade que abarca em função das possibilidades que receba do seu meio; terceiro, tem capacidade para influir no alcance e sentido dos âmbitos da realidade com os quais estabelece relação (Cf. Ib., 26).

A vida religiosa possibilita os modos mais elevados de cultura. Através da relação com Deus, o homem sente-se envolvido por uma unidade perfeita que marca o sentido mais alto da vida humana, dando-lhe alegria, felicidade, entusiasmo, liberdade interior, protecção… e projecta o homem para uma relação com a cultura com exigências de perfeição. A verificar isto, podemos afirmar que os momentos mais culminantes da cultura de todos os tempos tenham sido inspirados por impulsos religiosos para a transcendência, não como uma evasão da vida terrena de intercomunicação, mas como a superação e culminar da mesma.

A ideia de que o contributo da Igreja à cultura não se reduz às obras de inspiração literária, artística, filosófica, teológica, mas à sua capacidade de introduzir nela a abertura a planos superiores de existência e convivência, levou João Paulo II a afirmar perante a UNESCO: «Penso, sobretudo, no vínculo fundamental do Evangelho, isto é, da mensagem de Cristo e da Igreja, com o homem na sua própria humanidade. Este vínculo é efectivamente criador de cultura no seu próprio fundamento. Para criar a cultura há que considerar integralmente, e em suas últimas consequências, ao homem como valor particular e autónomo, como sujeito portador da transcendência da pessoa. Há que afirmar o homem por si mesmo e não por nenhum outro motivo ou razão, unicamente por ele mesmo! Mais ainda, há que amar o homem porque é homem, há que reivindicar o amor pelo homem pela razão da particular dignidade que possui» (Discurso de João Paulo II na UNESCO, 02.06.1980, 10).

A fé cristã coloca o homem num campo de inter-relação infinita e confere às suas obras um sentido inesgotável. Deste modo, salva a cultura do risco sempre presente de curvar-se sobre si mesma e de se asfixiar na imanência. Vivida sem reducionismos, a fé cristã confere à cultura a sua dimensão última e mais densa de sentido. (…)

 

3. Revelação e cultura – a unidade ferida

A cultura não é puramente um processo histórico e factual, mas é um processo humano e humanizador. Daqui se depreende que não só é importante para a Revelação a sua relação com a cultura, mas também é absolutamente significativa para a cultura a sua relação com a Revelação.

A Revelação Bíblica de Deus traduziu-se numa renovação cultural única. A consciência de Deus transcendente libertou a cultura e as culturas de todo o seu carácter numinoso e anímico. Deus transmite-se em processo cultural mas não se confunde com nenhuma cultura. Tem poder para purificar e fecundar qualquer cultura mas está para além do processo histórico pelo qual a cultura evolui.

Com a irrupção de Jesus Cristo na história, assumindo uma cultura muito concreta, todas as culturas sentem-se confrontadas pela presença do divino no seu seio. Ao assumir rosto humano, elevou à plenitude tudo o que diz respeito ao homem e ao seu destino, ao seu fazer e ao seu ser, portanto, marcou definitivamente as culturas. A partir de Jesus Cristo inicia-se um novo diálogo inter-cultural que não pode ser alheio à revelação do eterno na realidade mutável. Isto significa que é possível à inteligência humana, em cada momento da história, introduzir a plenitude, os valores essenciais à realização humana, no efémero e passageiro.

Através da compreensão teológica da cultura, todas as coisas criadas têm o seu fundamento, compreensão e sentido em Jesus Cristo, o Verbo Eterno de Deus, encarnado na história do mundo.

O pensamento moderno, através dum processo de emancipação do humano, acabou por provocar a ruptura entre a fé cristã e a cultura.

Esta verificação, feita pela Igreja ao longo destes últimos séculos, perante a qual reagiu dos mais diferentes modos, teve a sua expressão nas palavras de Paulo VI: «A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi de outras épocas» (Evangelii Nuntiandi, 20). Com palavras distintas, mas denunciando o mesmo facto, João Paulo II afirma: «Perante o progresso de uma cultura que aparece divorciada não só da fé cristã mas até dos próprios valores humanos, bem como perante certa cultura científica e tecnológica incapaz de dar resposta à premente procura de verdade e de bem que arde no coração dos homens, a Igreja tem plena consciência da urgência pastoral de atribuir à cultura atenção muito especial» (ChL, 44). Referindo-se mais propriamente à cultura europeia, João Paulo II, diz: «A cultura europeia dá a impressão de uma “apostasia silenciosa” por parte do homem saciado, que vive como se Deus não existisse» (João Paulo II, Exortação pós-sinodal A Igreja na Europa, 9). E, ainda no dizer do Santo Padre, «a filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação no conhecimento do humano. Em vez de se apoiar na capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos» (Carta Encíclica Fides et Ratio, 5.

J. M. Mardones compara este processo de ruptura entre a fé e a cultura, provocado pela modernidade, a um terramoto cultural (Cf. José Maria Mardones, La transformación de la religión, PPC (2005), 15 ss). Segundo o autor, passámos de um mundo onde a crença na intervenção de Deus, dos espíritos, bons e mais, era uma evidência para um mundo onde não se percebem nem sequer vestígios de transcendência. O que é que sucedeu? Pergunta o autor. A resposta vem pelas suas palavras: «sucedeu uma revolução intelectual. Mudou a nossa cabeça. Passámos de uma sociedade impregnada por uma cultura religiosa evidente para uma sociedade e cultura onde nada disto acontece ou se apresenta como real» (Ib., 16).

Esta revolução foi proporcionada, paradoxalmente, por crentes como Descartes, Galileu, Newton ou Leibniz. Eles próprios vivem separando a fé da ciência. A este processo denominamos de secularização que se transformou, em certos sectores da cultura europeia, em secularismo.

Sob o conceito de secularização pretende-se denominar um conjunto de subteorias ou ideias e interpretações do que sucedeu no âmbito da religião na denominada sociedade moderna (cf. Ib., 23).

Entre os vários factores pelos quais se caracteriza a secularização e dentro do âmbito do estudo que estamos a realizar, sublinhemos a perda plausibilidade cultural por parte do fenómeno religioso.

A religião para a modernidade situa-se no âmbito do privado, descentra-se da implicação da sociedade e da cultura, e vai perdendo firmeza no coração dos crentes. De uma certa estranheza passa-se muito rápido para uma certa inverosimilidade de tudo o que diga respeito à fé, mesmo ao cristianismo. Ser crente já não razoável (enquanto racional) nem é bem visto pelas elites intelectuais, nem sequer forma parte do desenvolvimento adulto e emancipado do ser humano. Aparece como uma diminuição mental, um infantilismo intelectual que deve ser corrigido, ou de uma superstição que deve ser banida (cf. Ib., 28).

Mas a própria religião adopta uma posição de retraimento e de fuga perante a exclusão cultural que o pensamento faz dela (cf. Ib., 28). O Concílio Vaticano II toma uma atitude nova, de diálogo, de compreensão e de serviço à cultura do homem contemporâneo mas que está longe de atingir, todavia, todos os âmbitos da Igreja. Há a sensação de que a esfera do privado continua a dominar a expressão de uma grande parte dos cristãos. J. M. Mardones chama a estas comunidades “emocionais” que, segundo ele, são a resposta afectivo-religiosa à marginalização da religião por parte da alta cultura ou modernidade ilustrada (cf. Ib., 29). Por outro lado, como reacção a esta situação, aparecem comunidades comprometidas politicamente que, pelo desejo de oferecer respostas imediatas aos problemas dos pobres, dos marginalizados e excluídos da sociedade, acabam por colocar a dimensão religiosa ao serviço de posições políticas (cf. Ib., 29).

Perante estes desafios, o cristianismo tem por missão reconhecer que está num novo contexto cultural que se caracteriza por uma nova época histórica e, perante tal facto, tem por missão descobrir as grandes linhas pelas quais a cultura actual se vai delineando para poder oferecer o Evangelho ao homem de hoje. E, neste sentido, são variadíssimas as publicações que expõem o pensamento moderno e contemporâneo acerca das possibilidades e dos entraves que a cultura oferece à Revelação de Deus. Mas não se pode ficar por aí, é necessário reconhecer também o dinamismo que a Revelação oferece na transformação cultural. Hoje, como em épocas passadas, o Evangelho não só necessita da cultura para se comunicar mas ele mesmo é fazedor de cultura.

 

4. Evangelizar em diálogo com a cultura é tarefa fundamental

O Concílio Ecuménico Vaticano II, referindo-se à actividade missionária da Igreja, afirma o seguinte: «A actividade missionária não é outra coisa, nem mais nem menos, que a manifestação ou epifania dos desígnios de Deus e a sua realização no mundo e na história da salvação» (Ad Gentes, 9). Seguindo a teologia patrística, o Concílio reconhece que a proclamação da Palavra Revelada provoca a epifania ou manifestação de Deus já presente em cada cultura, embora de maneira velada ou, por vezes ofuscada pelas condições de falta de autêntica libertação. E, prossegue dizendo que «tudo o que de verdade e de graça se encontrava já entre os gentios como uma secreta presença de Deus, expurga-o de contaminações malignas e restitui-o ao seu autor, Cristo, que destrói o império do demónio e afasta toda a malícia dos pecados» (Ib., 9). Tudo o que de bom há no homem e nas culturas, não só não se rejeita mas é purificado, elevado e consumado pela presença de Jesus Cristo para a felicidade plena do homem. Pela actividade da proclamação da verdade revelada é transmitida a cada cultura a plenitude escatológica, oferecendo, deste modo, o sentido último da existência humana.

Paulo VI, na Carta Magna sobre a evangelização (a Evangelii Nuntiandi) reconheceu que hoje urge não tanto o de pregar o evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos mas de chegar a atingir «e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação» (EN, 19).

Por isso, torna-se necessário evangelizar as culturas do homem, não de modo decorativo ou superficial, mas de maneira vital, em profundidade e até às suas raízes. Embora reconhecendo que o Evangelho não se identifica com qualquer cultura, «o Reino que o Evangelho anuncia é vivido por homens profundamente ligados a uma determinada cultura, e a edificação do reino não pode deixar se servir-se de elementos da cultura e das culturas humanas. O Evangelho e a evangelização independentes em relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas, mas susceptíveis de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas» (EN, 20). Sublinhemos este pensamento de Paulo VI, que se apresenta tão importante para o processo de evangelização. Diz o Papa que só evangelizando a cultura, e as culturas, do homem se pode evangelizar em profundidade. Mas diz mais, o Evangelho tem uma conaturalidade com a cultura de cada povo pela qual tem possibilidades de impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma. Isto quer dizer que cada uma das culturas possui características para reconhecerem o Evangelho, ou a Revelação de Deus, mas por outro lado, perante tudo aquilo que é obstáculo a este reconhecimento, o evangelho, e a Revelação em geral, tem capacidade de purificar as culturas de tudo aquilo que são elementos contrastantes com o evangelho. Porque sendo contrários à Revelação, são também contrários ao homem e à sua dignidade.

João Paulo II, na sequência da proposta do Concílio, apela a todos os fiéis leigos que, «guiados pela coragem e pela criatividade intelectual, estejam presentes, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística» (ChL, 44). Para o Papa esta presença «tem como finalidade não só o reconhecimento e a eventual purificação dos elementos da cultura existente, criticamente avaliados, mas também a sua elevação, graças ao contributo das originais riquezas do Evangelho e da fé cristã» (Ib., 44). Destaca-se, neste texto, não só a purificação da cultura feita pela Revelação mas também o poder de elevar a mesma cultura à plenitude de sentido pela qual o homem alcançará a harmonia perfeita de si com o meio, com os outros e com o seu Criador. Tudo isto através de «uma actividade educativa do sentido crítico, animado pela paixão da verdade», e por outro lado, a acção que procure a defesa da liberdade e o respeito da dignidade da pessoa, que favoreça a cultura autêntica dos povos, com a rejeição firme e corajosa de todas as formas de monopolização e manipulação» (Ib., 44).

 

5. Revelação e Cultura – Urge uma refontalização

O Cristianismo logo a partir dos escritos do Novo Testamento apresenta-se com uma pretensão de universalidade. Dirige-se aos judeus, dos quais depende como culminar da expectativa da promessa e a sua realização em Jesus Cristo, mas dirige-se também ao mundo helenista, cultura dominante nos primeiros séculos cristãos, e, em geral, aos modelos pagãos do mundo de então. Há aqui dos factores culturais que o cristianismo, desde a primeira hora teve de enfrentar, o religioso e o racional. Pelo factor religioso teria de intervir no seio do judaísmo e do paganismo, e pelo factor racional teria de enfrentar o racionalismo helenista.

S. Paulo dá-nos conta desta interpelação na passagem da primeira Carta aos Coríntios onde afirma: «Enquanto os judeus pedem sinais, e os gregos buscam a sabedoria, nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Mas, para os eleitos, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder e a sabedoria de Deus» (1Cor. 1, 22-24). A cruz de Cristo é, segundo S. Paulo, escândalo e loucura no contacto com a cultura mas, pela iluminação da Revelação, transforma-se em sabedoria divina. A necessidade do contacto do Evangelho com a cultura em ordem á verdadeira revelação do que nela se encontra cativo, é descrita na Carta aos Romanos com as seguintes palavras: «Com efeito, a ira de Deus manifesta-se, do alto do Céu, contra toda a impiedade e injustiça dos homens que retêm a verdade cativa na injustiça. Porquanto o que de Deus se pode conhecer é para eles manifesto, pois Deus lho manifestou, desde a criação do mundo. As suas perfeições invisíveis, tanto o seu eterno poder como a sua divindade, tornam-se visíveis quando as suas obras são consideradas pela inteligência, de modo que não se podem desculpar» (Rom. 1, 18-20). O mesmo diz S. Paulo no Areópago de Atenas ao afirmar: «O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio…. (Act. 17, 23).

Mas, sobretudo S. João que dirige a sua pregação e os seus escritos para o mundo helenista, abre o caminho para a compreensão do mistério do verbo encarnado na sua relação com a comunhão divina do Logos com o Pai e o Espírito Santo, e com a sua missão e presença no acto criador de Deus (Jo. 1, 1-18). O homem e consequentemente toda a cultura humana só se compreenderão e se purificarão a partir da luz que vem do Verbo de Deus. Esta certeza, que passa pela experiência sensível que o Apóstolo faz do mistério escondido mas manifestado na encarnação, leva-o a afirmar o seguinte: «O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida. Porque a vida manifestou-se, nós vimo-la, damos testemunho dela e vos anunciamos esta vida eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada – o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco» (1Jo. 1, 1-3).

No período da patrística, nomeadamente entre os Padres apologetas, esteve muito patente este interesse pela interligação da Revelação e do conhecimento racional, particularmente no que se referia à criação.

S. Justino, acreditando no seu próprio relato no Diálogo com Trifão, foi convertido na conversa com um ancião. Partindo do seu desejo racional da busca de verdade, foi-se-lhe apresentando o problema de Deus e da superação dos diversos sistemas filosóficos pela verdadeira filosofia que ele encontrou na Revelação. A busca da verdade levou-o ao cristianismo porque só através da revelação cristã sente que o véu da maldade que cobre todas as coisas pode desaparecer e o Criador de tudo pode manifestar-se. A sincera busca de verdade e a oração humilde levaram-no finalmente a abraçar a fé em Jesus Cristo: «Porque também eu, ao dar-me conta que os malvados demónios tinham deitado um véu aos divinos ensinamentos de Cristo com a finalidade de apartar deles os outros homens, depreciei o mesmo a quem proclamava tais calúnias que o véu dos demónios e a opinião do vulgo. Eu confesso que as minhas orações e os meus esforços têm por finalidade mostrar-me cristão» (Apologia, I, 2, 23).

Em S. Justino, a relação entre o cristianismo e a filosofia é tão grande que chega a dizer que quem viver conforme ao Verbo é cristão, ainda mesmo quando foram tidos como ateus, como sucedeu entre os gregos com Sócrates, Heraclito e outros semelhantes (cf. Apologia, I, 46, 2-3). Todos participam das sementes do Verbo neles ingénita. Tudo o que de bom disseram e disseram os filósofos e legisladores, realizaram-no por iluminação do Verbo. O conhecimento perfeito do Verbo, que se dá pela revelação, é necessário para não haver contradição, nem erro, nem obscurecimento da verdade (cf. Apologia, II, 13, 4-6). Justino dá, deste modo, uma prova metafísica da existência de elementos de verdade na filosofia pagã. Acrescenta ainda uma prova histórica, ao afirmar que os filósofos pagãos disseram muitas verdades porque tinham conhecimento da revelação judaica. Mas, só os cristãos têm acesso à verdade total, porque Cristo revelou-se como Verdade em pessoa.

Santo Ireneu, através do seu conceito de recapitulação, coloca a Jesus Cristo, o Verbo de Deus, não só presente na criação mas também lhe dá o poder de recapitular em si todas as coisas (cf. Adv. Haer., 3, 18-1). Pelo Verbo de Deus tudo foi criado e as criaturas são chamadas a reconhecerem o seu criador, mas só o poderão fazer através da Luz divina que é o Filho e por iniciativa do próprio Deus. (cf. Adv. Haer., 4, 20, 1-7). Encontramos em Ireneu, o conhecimento, o diálogo e a refutação do pensamento gnóstico. Através dele alcançamos um momento importantíssimo para a teologia, como discurso acerca de Deus tendo por base o pensamento racional e os seus limites.

Para Orígenes a dignidade de todo o ser humano está no acto da criação por ser criado à imagem e semelhança de Deus, mas a sua perfeição está reservada para a sua consumação total, até que o mesmo homem, através do seu próprio esforço diligente por imitar a Deus, possa consegui-la (cf. De Principiis, III, c. 6). Esta semelhança com Deus só será alcançada pela revelação do Filho de Deus.

Para Santo Agostinho a fé e a razão andam de mãos dadas na busca da verdade. É próprio do seu pensamento a obrigação de todo o homem em usar a razão e a inteligência para mais acreditar e usar da fé para melhor compreender.

Diz ele: «Não duvidemos como infiéis das coisas que se hão-de crer, nem afirmemos temerariamente sobre o que ainda se deve investigar: no que é de fé temos de seguir a autoridade, no que é de investigar temos de buscar a verdade» (Confissões, IX, 1-5).

É também conhecida de Santo Agostinho a semelhança de Deus nas criaturas humanas de tal modo que segundo ele, o homem na sua busca de verdade acerca de Deus encontra em si mesmo a experiência do Ser divino, através daquele que ama, o amado e o amor, ou ainda dito de outro modo, a mente, o amor e o conhecimento. Mas é sobretudo na sua obra «De Civitate Dei» que relaciona a cultura e o mundo com revelação divina, tanto relacionando como distinguindo o que é o conhecimento do conhecimento divino. Esta obra constitui uma gigantesca catequese, isto é, tudo o que uma pessoa culta podia saber para completar a sua conversão a uma Bíblia aberta ao mundo, depois de ter sido incorporado à Igreja (cf. De Cit. Dei, XIV, 28).

Indo mais além, já num período posterior, reconhecemos que inteligibilidade do ser assume novo significado com a integração do pensamento cristão com a filosofia grega e tem em Santo Agostinho, Anselmo de Canterbury e S. Tomás os seus maiores representantes. «A partir do teocentrismo criador, a investigação pelo ser converte-se em teologia racional e a ontoteologia converte-se em metafísica especial, sobreposta à geral e que lhe serve de fundamento» (Juan A. Estrada, La pregunta por Dios, Bilbao (2005), 97).

As escolas filosóficas da antiguidade tiveram uma grande importância na síntese de conhecimentos entre o saber filosófico e teológico. As tradições cultuais religiosas e as filosóficas especulativas misturam-se nos neopitagóricos, no platonismo médio e o neoplatonismo, e no cristianismo. A controvérsia anticristã, por exemplo de Celso, facilitou a transformação da filosofia antiga em contemplação mística e religiosa de Deus na linha de Plotino, Porfírio e Proclo. Pensar foi um exercício da razão e um acto religioso dirigido á mesma divindade. Assim, na linha de Séneca, só adora a Deus quem o conhece, e na linha de Santo Agostinho que vincula a religião cristã à filosofia (Ib., 98).

Desde cedo, filosofia e cristianismo foram rivais e companheiros nas grandes questões que preocupam a inteligência humana, com influência mútua que fecundaram a ambos e facilitaram a crítica interna e externa que se traduziu num absorver mútuo do que cada parte poderia oferecer à outra.

Em síntese, o período patrístico oferece à Igreja uma possibilidade de se confrontar com as suas origens, mas ao mesmo tempo também de buscar luz para problemas culturais novos, que tem a sua raiz nesses tempos primordiais do cristianismo. Sem nunca deixar de anunciar o Kerigma cristão, sem nunca deixar de catequizar aqueles que aderiam à fé, os Padres da Igreja souberam integrar-se na cultura e enfrentar os grandes e profundos problemas do pensamento para, em linguagem cultural, expressar os mais profundos mistérios de Deus e do homem. Basta lembrar todo o itinerário de reflexão acerca da compreensão da Trindade Pessoal e da sua Unidade em Deus, revelado em Jesus Cristo; o diálogo e o confronto entre os gnosticismos e a Revelação cristã, nomeadamente nos conceitos de criação, redenção e escatologia; como soube aproveitar e iluminar os sistemas filosóficos reinantes; como ofereceu uma cosmovisão nova de toda a realidade na qual se situa o homem; com tudo isto, soube delinear uma nova antropologia, á luz do Verbo encarnado, com a oferta da vida nova do ressuscitado.

 

6. As possibilidades que a cultura actual oferece à Revelação

O Concílio Vaticano II, na reflexão sobre a condição do homem no mundo actual, afirma a um dado passo: «A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra. Provocadas pela inteligência e actividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e desejos individuais e colectivos, sobre os seus modos de pensar e de agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. De tal modo que podemos já falar duma verdadeira transformação social e cultura, que se reflecte também na vida religiosa» (GS, 4). Na citação que fizemos da Evangelii Nuntiandi refere-se que é necessário evangelizar não de maneira decorativa mas atinge pela força do evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação. Comparando estas duas passagens, a Igreja reconhece que estamos numa época da história nova, com novas expressões culturais, que reivindicam o anúncio do Evangelho ao qual a nova cultura reconhece o seu poder humanizador.

O Concílio continua a análise desta nova fase da história que se apresenta numa cultura cheia de ambiguidades e contradições, que o leva a afirmar: «Marcados por circunstâncias tão complexas, muitos dos nossos contemporâneos são incapazes de discernir os valores verdadeiramente permanentes e de os harmonizar com os novamente descobertos. Daí que, agitados entre a esperança e a angústia, sentem-se oprimidos pela inquietação, quando se interrogam acerca da evolução actual dos acontecimentos. Mas esta desafia o homem, força-o até a uma resposta» (GS, 4). É esta constatação não só dos limites que oferecem os novos horizontes culturais e da perplexidade que eles provocam no ser humano, mas sobretudo da necessidade que o homem sente de encontrar uma resposta plausível e satisfatória para tudo o que o preocupa e sente, que leva à necessidade de encontrar a resposta mais profunda na Revelação que, em cada momento da história, oferece o sentido último de todas as coisas.

O Concílio reconhece também que há múltiplos laços de contacto entre a mensagem da Revelação e a cultura humana. Começa por afirmar que Deus revelando-se ao seu povo até à plena manifestação de Si mesmo no Filho encarnado, falou segundo a cultura própria de cada época (cf. GS, 58). Do mesmo modo, «a Igreja vivendo no decurso dos tempos em diversos condicionalismos, empregou os recursos das diversas culturas para fazer chegar a todas as gentes a mensagem de Cristo, para a explicar, investigar e penetrar mais profundamente e para lhe dar melhor expressão na celebração da Liturgia e na vida da multiforme comunidade dos fiéis» (GS, 58). Aproveitando todas as culturas para fazer ressoar a mensagem do Evangelho, contudo, a Igreja sente que não está ligada a nenhuma cultura em particular, mas em permanente diálogo com cada cultura, enriquecem-se mutuamente.

Mais ainda, a proposta da Revelação, purifica e eleva a própria cultura de cada povo. A este respeito diz o Concílio: «O Evangelho de Cristo renova continuamente a vida e cultura do homem decaído, e combate e elimina os erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar e eleva os costumes dos povos. Fecunda como que por dentro, com os tesouros do alto, as qualidades de espírito e os dotes de todos os povos e tempos; fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo» (GS, 58). Assim, dentro da sua missão, a Igreja estimula e ajuda a civilização, e educa o homem para a liberdade interior.

A verdadeira cultura reconhece o serviço da Revelação porque se orienta para a perfeição integral da pessoa humana, para o bem da comunidade e de toda a sociedade. Por isso, é necessário cultivar o espírito de modo «a desenvolver-lhe a capacidade de admirar, de intuir, de contemplar, de formar um juízo pessoal e de cultivar o sentido religioso, moral e social» (GS, 59).

Uma nova história, um novo humanismo e um novo homem situados, no dizer do concílio, numa encruzilhada, carregada de antinomias. Mais do que entraves são desafios lançados à proclamação adequada da Boa Notícia Revelada em Jesus Cristo. É neste contexto que podemos citar as palavras de João Paulo II: «Deus abre à Igreja horizontes de uma nova humanidade mais preparada para a sementeira do Evangelho» (João Paulo II, Encíclica Redemptoris missio (1990), 3), porque hoje estão mais presentes nos povos os valores evangélicos que Jesus encarnou na sua vida e fazem parte da mensagem do Reino de Deus: a paz, a justiça, a fraternidade, a dedicação aos mais pobres, etc.

O grande quadro de referência no qual se encontram, hoje, situados o homem e o cristão são um mundo unificado e interdependente, um novo humanismo e uma encruzilhada com a urgência de afrontar uma nova história que seja capaz de impulsionar um constante progresso humano e uma ordem mundial que garanta a instauração da paz em toda a humanidade.

A partir do Concílio e do Magistério da Igreja, o reconhecimento e a afirmação universalizados da dignidade de toda a pessoa humana constituem, sem dúvida, a oferta mais importante da nova cultura à humanidade. O reconhecimento efectivo da dignidade da pessoa humana, para além de qualquer tipo de diferenças, torna-se a base fundamental para o encontro, convivência e diálogo entre todos os membros da comunidade humana. Para estas fundamentações muito poderá contribuir a Revelação Bíblica.

Perante o vazio ético, a crise de orientação e de sentido, vale recordar o apelo tantas vezes repetido por João Paulo II, segundo o qual a Europa necessita de um novo espírito e de uma nova consciência.

Nesta nova cultura, surge um novo tipo de personalidade religiosa em sintonia com os valores da nossa cultura actual e qualificadamente num contexto do que se chama pós-modernidade. Seguiremos o pensamento de Antonio González Dorado (cf. António González Dorado, La Buena Noticia Hoy Hacia Una Evangelización Nueva, PPC (1995), 113-114), que em síntese, nos parece muito bem feito. Eis alguns desses traços:

- Necessidade da experiência pessoal da espiritualidade. Na época de cristandade, a fé era um pressuposto para todos os que nasciam no âmbito da Igreja. Hoje, o impulso de uma nova religiosidade numa nova cultura suscita a necessidade de uma nova experiência de conversão pessoal, permanente, gratuita e livre. Busca uma fé que busque a sua força salvífica e libertadora, curativa e que eleve a própria pessoa. A fé não é um suposto mas uma experiência e uma opção.

- Espera da religião um encontro comunitário com outras pessoas, no qual o factor vivo da comunhão fica constituído pela unidade da fé, pela experiência do amor mútuo e pela corresponsabilidade perante uma missão comum. Por isso, os encontros e celebrações litúrgicas, superando qualquer dimensão legalista, terão de ser celebrações da fé, do amor e amizade da comunidade, e da missão.

- A cultura actual, em reacção ao racionalismo anterior, recusa o institucionalismo e o legalismo, ainda que não recuse instituições e leis, que considere necessárias. O que tem bem claro é que a instituição e a lei têm de estar ao serviço da vida e do crescimento da pessoa e da comunidade, com um profundo respeito pela dignidade da consciência pessoal, que em todo o momento há-de estar aberta à busca da verdade e do diálogo.

- A nova cultura busca o apoio aos direitos fundamentais da pessoa humana, mas não o proteccionismo, consciente da sua própria adultez e capacidade.

- A nova religiosidade busca a tensão entre a experiência do mistério e a presença na cultura e ambientes do seu tempo, participando activa e responsavelmente no progresso e na história do seu povo e de toda a família humana.

- No contexto deste homem, ao encontro do qual sai Jesus e também deve sair a Igreja, há-de desenvolver-se uma nova evangelização.

 

7. A Revelação que gera uma nova Cultura

A partir do século XIX e, particularmente, no século XX, a reflexão teológica dedicou um interesse particular à cultura. O Concílio Vaticano II, na sua atitude de diálogo, procurou examinar atenciosamente a cultura moderna e contemporânea e as suas implicações na fé e na proclamação da Boa Nova. No pós-Concílio nem sempre se fugiu ao risco de nos situarmos numa análise puramente cultural da sociedade, reduzindo a tarefa da Igreja a uma adaptação aos modelos culturais vigentes.

Não poderemos, para sermos fiéis à fé cristã que professamos, tal como em épocas passadas, deixar de orientar o labor da Igreja nesta dupla direcção: conhecer bem a cultura de hoje para descobrir o homem a quem se dirige a proposta de salvação, e anunciar explicitamente o Evangelho que, pela capacidade transformadora de tudo o que é humano, purifica e eleva a cultura, e gera uma nova cultura.

A Igreja recebeu de Jesus Cristo o imperativo de anunciar o Evangelho a toda a criatura: «Ide por todo o mundo e anunciai a Boa Nova a toda a criatura» (Mc. 16, 15). Esta mesma obrigação sente S. Paulo ao afirmar «se anuncio o evangelho não tenho de que me gloriar, pois que me foi imposta esta obrigação: ai de mim se não evangelizar» (1Cor. 9, 16).

Para Paulo VI, a evangelização «é uma diligência complexa, em que há variados elementos: renovação da humanidade, testemunho, anúncio explícito, adesão do coração, entrada na comunidade, aceitação dos sinais e iniciativas de apostolado» (EN, 24). O objectivo da tarefa complexa da evangelização é a renovação da humanidade: «Evangelizar, para a Igreja, é levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade, em qualquer meio e latitude, e, pelo seu influxo, transformá-las a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade: “eis que faço de novo todas as coisas”. No entanto não haverá humanidade nova, se não houver em primeiro lugar homens novos, pela novidade do baptismo e da vida segundo o Evangelho» (EN, 18). Daqui sobressai o que Paulo vi quis afirmar com a relação intrínseca da evangelização e a renovação da humanidade, pela qual o Evangelho penetrando no mais íntimo do ser humano reflecte-se nas suas estruturas e nas suas condições de vida quer individuais, quer sociais: «A Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da Mensagem que proclama, ela procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e colectiva dos homens, a actividade em que eles se aplicam, e a vida e o meio concreto que lhes são próprios» (EN, 18). Ressalta-se, neste texto, o conceito de conversão. Pela conversão entramos num processo de proclamação da Palavra e da sua implicação na vida pessoal e colectiva do ser humano.

João Paulo II reconhece que a actividade missionária da Igreja deriva da radical novidade de vida trazida por Cristo e vivida pelos seus discípulos. Deus quer oferecer esta vida nova a todo o ser humano. O homem na sua liberdade pode rejeitar esta proposta de Jesus Cristo. Mas a pergunta que o Papa lança com veemência é se é lícito fazê-lo e em nome de quê o pode fazer (cf. RM, 7).

Para que seja salvadora, a Boa Nova tem de ser oferecida de forma integral, porque só assim transforma. Contra o perigo de reduzir a salvação a uma doutrina humana, João Paulo II afirma: «a tentação hoje é reduzir o cristianismo a uma sabedoria meramente humana, como se fosse a ciência do bom viver. Num mundo fortemente secularizado, surgiu uma “gradual secularização da salvação”, onde se procura lutar, sem dúvida, pelo homem, mas por um homem dividido a meio, reduzido unicamente à dimensão horizontal. Ora nós sabemos que Jesus veio trazer a salvação integral, que abrange o homem todo e todos os homens, abrindo-lhes os horizontes admiráveis da filiação divina» (RM, 11). Eis porque evangelizar é uma tarefa exigente, cuidadosa e fiel, pela qual se presta o melhor serviço à humanidade.

Para que a Revelação gere uma nova cultura, ela tem de atender à realidade concreta em que cada homem vive. Tal como em tempos passados, nos quais a Revelação teve de se encontrar com contextos culturais diversificados, hoje, reconhece João Paulo II, encontramo-nos diante de uma situação religiosa bastante diversificada e mutável: os povos estão em movimento; certas realidades sociais e religiosas, que, tempos atrás, eram claras e definidas, hoje evoluem em situações complexas. Basta pensar em fenómenos tais como o urbanismo, as migrações em massa, a movimentação de refugiados, a descristianização de países com antiga tradição cristã, a influência crescente do evangelho e dos seus valores em países de elevada maioria não cristã, o pulular de messianismo e de seitas religiosas. É uma alteração tal de situações religiosas e sociais, que se torna difícil aplicar em concreto certas distinções e categorias eclesiais a que estávamos habituados (cf. RM, 32).

A época em que vivemos, no dizer do Papa, é, ao mesmo tempo, dramática e fascinante. Porque, se por um lado, parece que os homens andam à procura da prosperidade material, mergulhados no consumismo materialista, manifesta-se, por outro, a angustiante procura de sentido, a necessidade de vida interior. Tenta-se contrapor à desumanização, produzida pelo materialismo, a dimensão espiritual. Estamos perante um fenómeno de ressurgimento religioso, cheio de ambiguidades que traz consigo um convite e uma interpelação que se traduz numa inquietante aspiração de toda a humanidade de hoje que só a Igreja lhe pode dar oferecendo-lhe a Jesus Cristo, manifestação «do Caminho, da Verdade e da Vida».

Neste diálogo da revelação com a cultura e a consequente evangelização das culturas do homem, insiste-se bastante no fenómeno da inculturação. Também este conceito se apresenta, por vezes, com algumas ambiguidades. Para não ficarmos apenas por uma visão superficial, vejamos o que, na “Redemptoris missio”, João Paulo II nos afirma acerca da penetração da Boa Nova nas diversas culturas. Começa por dizer que este processo requer um tempo longo, porque não se trata de uma mera adaptação exterior, mas a inculturação «significa a íntima transformação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no cristianismo, e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas» (RM, 52). Trata-se de um processo profundo e globalizante, mas também um processo difícil, porque não só integra a mensagem cristã com a reflexão e a praxis da Igreja, mas também não pode comprometer de modo nenhum a especificidade e a integridade da fé cristã.

«Pela inculturação, a Igreja encarna o evangelho nas diversas culturas e simultaneamente introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade, transmitindo-lhes os seus próprios valores, assumindo o que de bom nelas existe, e renovando-as a partir de dentro. Por sua vez, a Igreja, pela inculturação, torna-se um sinal mais transparente daquilo que realmente ela é, e um instrumento mais apto para a missão» (RM, 52).

Há alguns elementos fundamentais a ter em conta, tais como, a compatibilidade entre o evangelho e as culturas, sem adulterar a Revelação tal como é professada pela Igreja, a gradualidade deste processo e expressão de todo o Povo de Deus, para que não seja proposta de alguns peritos intelectuais, mas caminho de amadurecimento na fé.

Por último, somos levados a afirmar que a Revelação ao entrar na cultura depara-se com a chamada «preparação do evangelho», isto é, as culturas, como já dissemos atrás, contêm elementos (sementes) que as tornam capazes de reconhecer o Evangelho e de se deixarem transformar por ele. No mundo de hoje, num olhar superficial, fica-nos a impressão de uma super-valorização de factores negativos que parecem impedir que a Revelação penetre na cultura de cada povo. Mas num olhar mais profundo e atento, concluiremos que «Deus está a preparar uma grande primavera cristã, cuja aurora já se antevê. Na verdade tanto no mundo não cristão como naquele de antiga tradição cristã, existe uma progressiva aproximação dos povos aos ideais e valores evangélicos, que a presença e a missão da Igreja se empenha em favorecer» (RM, 86). Quais são esses valores para os quais convergem todos os povos? São eles: a recusa da violência e da guerra; o respeito pela pessoa humana e pelos seus direitos; o desejo de liberdade, de justiça e de fraternidade; a condenação do racismo e dos nacionalismos; a afirmação da dignidade e da valorização da mulher. Este contexto ético é fundamental para a abertura do homem a Deus e à sua Revelação.

 

Síntese conclusiva

João Paulo II convocou a Igreja para uma nova evangelização. A evangelização, para ser autêntica, tem de ser sempre nova. No dizer de Paulo VI, a frescura há-de vir do Evangelho proclamado, escutado e interiorizado. João Paulo II afirma que «a fé que não se converte em cultura é uma fé não plenamente acolhida, não inteiramente pensada, não vivida numa fidelidade total».

É fundamental ter consciência de que o Evangelho é independente de qualquer cultura, mas necessita da cultura e das culturas para ser comunicado. É deste equilíbrio de alteridade e de implicação que urge ter consciência. Isto leva a que quando se dá uma crise cultural no seio da sociedade, como é a nossa que estamos a viver, a proclamação da Revelação ressente-se profundamente. Mas de igual modo, quando se dá um afrouxamento na ordem da proclamação da Revelação, é a cultura que fica empobrecida porque lhe falta o poder de elevação, de purificação e de humanização que só a Revelação lhe pode oferecer. Quando se dá um período de transformação cultural, com aquele que estamos a viver, em que os modelos tradicionais se alteram, os valores mudam e a linguagem começa a expressar algo diferente, cabe uma árdua tarefa à Igreja arauta e proclamadora da Boa Notícia, que pela Revelação lhe foi entregue, descobrir os caminhos mais aptos para evangelizar, sendo fiel à essência da Revelação e à linguagem acessível ao homem concreto.

É o permanente mistério da encarnação que enobrece a Igreja mas que a interpela sem cessar a uma tarefa sempre nova de encontro com o ser humano situado em culturas sempre em mutação.

Por vezes, de forma muito simplista, exige-se mudanças na Revelação, quando o que está a mudar é a cultura. E, deste modo, o que importa é estar atento às crises culturais que convidam, nomeadamente a Igreja, a um atento exame de discernimento.

A cultura moderna, no que diz respeito à relação entre a racionalidade da Revelação e da fé, iniciou um processo que foi continuado na cultura contemporânea, relegando para o privado tudo o que tivesse a ver com o Transcendente. Foi-se constituindo uma cultura imanentista, em que o homem é puramente visto no seu contexto histórico e material, desprovido de tudo o que de transcendente o pode dignificar. O Concílio Vaticano II encetou um caminho de diálogo com a modernidade de modo a compreender e a examinar os calores determinantes desta cultura, a denunciar os seus erros e insuficiências e a assumir o que de bom ela provocou. Mas, apesar disso, a Igreja encontra-se hoje com um fenómeno nada menos preocupante, o indiferentismo perante a Revelação. Há modelos substitutivos, a que poderemos chamar de divindades pagãs, que escravizam o ser humano. É a esta cultura que a Igreja, uma vez consciente das suas inquietações e da sua linguagem, é chamada a anunciar a Jesus Cristo, o único salvador.

Tal como em outras épocas da história, também esta cultura de hoje, com os seus valores e deficiências, tem em si as características necessárias para reconhecer o Verbo de Deus que, uma vez proclamado, há-de atingir a razão e a interioridade do homem, oferecendo sentido à revelação humana. Também hoje, a Revelação é geradora de uma nova cultura e esta, nomeadamente a europeia, tal como se tem sublinhado em tantos documentos do magistério e outros, tem necessidade de ser purificada e elevada pela força da Palavra Revelada.

A evangelização é um processo que a Igreja já experimentou em outras épocas culturais, com incidências especial nos primeiros séculos do cristianismo. Urge implementar um itinerário, longo e difícil, porque exige conversão, que, tal como é apresentado na Evangelii Nuntiandi, transforme os critérios, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida de todos os homens.

Cón. João Lavrador

Secretário da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais

Artigo publicado na revista Estudos teológicos, Janeiro/Dezembro 2006, Coimbra.

Esta transcrição omite as notas de rodapé, excepto as que se referem às fontes das citações.


Publicado em 11.10.2007

 

 

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Foto: Cidade do México, Praça das Três Culturas
Cidade do México:
Praça das Três Culturas
© Macduff Everton/CORBIS




























É fundamental ter consciência de que
o Evangelho é independente
de qualquer cultura,
mas necessita
da cultura e
das culturas para ser comunicado.
É deste equilíbrio
de alteridade
e de implicação
que urge
ter consciência





















Neste artigo
sublinharei a
atenção que
a teologia
deve prestar
à cultura de
cada tempo,
traduzindo,
deste modo, os conceitos de
Revelação em linguagem acessível
ao homem situado
num contexto
cultural concreto























O serviço à pessoa
e à sociedade
humana
exprime-se e
realiza-se através
da criação e
transmissão
da cultura, que, especialmente nos nossos dias,
constitui uma
das mais
graves tarefas da convivência humana
e da evolução social




















A encarnação
humana de Cristo foi também uma encarnação cultural






















A cultura abraça
também as formas através das quais os valores se exprimem e se configuram, como sejam os costumes,
a religião,
a língua, a arte,
a literatura,
as instituições e as estruturas sociais





















A verdade
alcançada
pela via da reflexão filosófica
e a verdade da Revelação não se confundem,
nem uma
torna a outra
supérflua


























A história torna-se,
deste modo, o lugar onde podemos constatar a acção de Deus a favor da humanidade





















A Revelação
coloca no interior
da história e das culturas pontos de referência de que o homem não pode prescindir se quiser compreender
o mistério da sua existência
e do mundo
que o envolve


















A cultura
é do homem,
a partir do homem
e para o homem




















A Igreja
encontra-se hoje
com o indiferentismo perante a Revelação.
É a esta cultura que a Igreja, uma vez consciente das suas inquietações
e da sua linguagem,
é chamada
a anunciar
a Jesus Cristo,
o único salvador.




















A cultura
constrói-se pelo
cultivo dos talentos pessoais,seja a nível individual,
seja a nível social




















O homem é
cooperador
de Deus
na obra da criação
pelo cultivo da terra,
e eleva toda
a sociedade
humana até à contemplação divina,
através do cultivo
das ciências
e das artes






















O objectivo primário
da cultura é o desenvolver o homem enquanto homem,
o homem enquanto pessoa, ou seja,
cada homem
enquanto exemplar único e irrepetível
da família humana




















A Igreja é chamada
a descobrir
os caminhos
mais aptos
para evangelizar,
sendo fiel
à essência
da Revelação
e à linguagem
acessível
ao homem concreto



















A cultura é quanto realiza o homem para fundar com o real circundante vínculos fecundos de colaboração, modos relevantes de unidade




















Os modos mais relevantes
de unidade
constituem
o fenómeno
do encontro






















Ao centrar
no Infinito,
a fé cristã
abre âmbitos
ilimitados
à vida cultural
porque oferece um horizonte
inesgotável
á tarefa de aperfeiçoamento dos vínculos com o real





















Os momentos
mais culminantes da cultura de todos os tempos foram
inspirados
por impulsos
religiosos para a transcendência




















O contributo da Igreja
à cultura não se reduz às obras de inspiração literária, artística, filosófica, teológica,
mas à sua capacidade de introduzir nela a abertura a planos superiores
de existência e convivência





















A fé cristã coloca o homem num campo
de inter-relação
infinita e confere
às suas obras um sentido inesgotável. Deste modo, salva a cultura do risco
sempre presente de curvar-se sobre si mesma e de se
asfixiar na imanência



















A ruptura entre o Evangelho e a cultura
é sem dúvida
o drama da nossa época, como o foi de outras épocas



















Passámos de uma sociedade
impregnada
por uma cultura
religiosa evidente
para uma sociedade
e cultura onde nada disto acontece ou se apresenta como real






















A religião para a modernidade
situa-se no âmbito
do privado,
descentra-se da implicação
da sociedade
e da cultura,
e vai perdendo
firmeza no
coração
dos crentes


















Hoje, como
em épocas passadas,
o Evangelho não só necessita da cultura para se comunicar
mas ele mesmo é fazedor de cultura


















Urge não tanto
o pregar o evangelho
a espaços geográficos cada vez mais vastos mas modificar
pela força
do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam,
os centros
de interesse,
as linhas de pensamento,
as fontes inspiradoras
e os modelos de vida
da humanidade,
que se apresentam
em contraste
com a Palavra
de Deus e com o desígnio da salvação



















Só evangelizando a cultura, e as culturas,
se pode evangelizar
em profundidade




















A cruz de Cristo é, segundo S. Paulo, escândalo e loucura
no contacto com a cultura mas, pela iluminação da Revelação,
transforma-se em sabedoria divina




















Sem nunca deixar de anunciar o Kerigma cristão, sem nunca deixar de catequizar aqueles que aderiam à fé, os Padres da Igreja souberam integrar-se
na cultura e enfrentar
os grandes e
profundos problemas
do pensamento para,
em linguagem cultural, expressar os mais profundos mistérios
de Deus e do homem




















Por vezes, de forma muito simplista,
exige-se mudanças na Revelação, quando o que está a mudar
é a cultura



















Marcados por circunstâncias tão complexas,
muitos dos nossos contemporâneos são incapazes de discernir os valores verdadeiramente permanentes e de os harmonizar com os novamente
descobertos





















No pós-Concílio
nem sempre se fugiu
ao risco de nos situarmos numa
análise puramente cultural da sociedade, reduzindo a tarefa da Igreja a uma
adaptação aos
modelos culturais vigentes



















Duas prioridades: conhecer bem
a cultura de hoje para descobrir o homem a quem se dirige
a proposta de
salvação, e anunciar explicitamente o Evangelho



















A tentação hoje
é reduzir
o cristianismo a uma sabedoria meramente humana, como
se fosse a ciência
do bom viver





















É uma alteração tal
de situações
religiosas e sociais,
que se torna difícil aplicar em concreto certas distinções e categorias eclesiais a que estávamos habituados



















Se por um lado
parece que os
homens andam à procura da
prosperidade material, mergulhados no consumismo materialista,
manifesta-se,
por outro,
a angustiante procura
de sentido,
a necessidade
de vida interior



















O contexto ético é fundamental para a abertura do homem
a Deus e à sua Revelação



















A fé que não
se converte
em cultura é uma fé
não plenamente acolhida, não inteiramente pensada, não vivida numa fidelidade total


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