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"Biblioteca Indispensável": Nova coleção propõe «clássicos do espírito cristão»

Imagem D.R.

"Biblioteca Indispensável": Nova coleção propõe «clássicos do espírito cristão»

"Biblioteca Indispensável" é a designação da nova coleção dirigida pelo padre José Tolentino Mendonça que a Paulinas Editora lançou recentemente, na qual incluirá «clássicos do espírito cristão, ou simplesmente do espírito».

A coleção, «que pretende testemunhar a vitalidade, a diversidade e a surpresa da experiência de Deus», seleciona títulos «que o passado do cristianismo lega ao presente», que por sua vez é «chamado a reencontrar» e a «transmitir ao futuro», refere uma nota enviada ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

Na capa e contracapa predomina em fundo a cor preta, «contrastando com outras cores (em relevo) indicativas do género literário da obra», enquanto que os elementos decorativos se baseiam «em motivos clássicos portugueses, redesenhados na atualidade, com subtis referências à iconografia cristã».

Os três primeiros volumes da coleção são "Os portais do mistério da segunda virtude", de Charles Péguy (tradução de Armando Silva Carvalho), "A pedreira e outros poemas", de S. João Paulo II (tradução de Henryk Siewierski, José Blanc de Portugal, Manuela Domingos, Maria de Lurdes Belchior Pontes, Maria Teresa Dias Furtado e Teresa Bação Fernandes), e "Eu e tu", de Martin Buber (tradução de Artur Mourão e Sofia Favila).

"Os portais do mistério da segunda virtude" (184 pág., 13,00 €) «é porventura o mais assombroso poema sobre a esperança de toda a literatura contemporânea», escreve José Tolentino Mendonça.

Hans urs von Balthasar, um dos maiores teólogos católicos contemporâneos, escreveu que  «Péguy é indivisível, ele mantém-se dentro e fora da Igreja, ele é a Igreja "in partibus infidelium", lá onde a Igreja deve estar... lá onde mundo e Igreja, mundo e Graça se encontram e se interpenetram, até ao ponto em que se torna impossível distingui-los».

«O realismo bíblico e a integridade de pensamento conferem a Péguy [1873-1914] uma clarividência sem costuras, para olhar o mundo exatamente como ele é: grande e miserável», assinalou o sacerdote suíço.

Martin Buber (1878-1965), autor de "Eu e tu" (136 pág., 11,50 €), foi «profundamente marcado pela sabedoria hassídica», tendo-se batido «pela causa sionista, mas no respeito pelo Outro, defendendo por isso a criação de um Estado judaico «binacional, israelita-palestino», indica a editora, acrescentando que «a sua filosofia é devedora de várias influências, com especial destaque para a de Kierkegaard».

O filósofo francês Gaston Bachelard escreveu que «é preciso ter conhecido Martin Buber pessoalmente para se compreender num instante a filosofia do encontro, essa síntese do evento e da eternidade», enquanto que Joseph Ratzinger, o papa emérito Bento XVI, revelou: «A descoberta do personalismo, que se encontrava com uma convicção nova no grande pensador judeu Martin Buber, foi para mim uma experiência intelectual marcante».

Do livro de João Paulo II (128 pág., 11,50 €), uma das tradutoras da obra, Maria Teresa Dias Furtado, anota que «o fluxo dos poemas wojtylianos é amplo, em sequências de grande fôlego e de um pensamento habituado às imagens, mescladas com os sentimentos mais fortes e até antitéticos do homem (amor/ódio), progride a partir tanto dos factos como da visão, aspirando sempre a um bem maior e a uma linguagem inovadora».

«Ainda que tenha motivos religiosos, não se trata de uma poesia religiosa ou confessional, antes é plenamente laical, transbordante de humanidade e de solidariedade com os outros», assinala a investigadora, sublinhando que Karol Wojtyla (1920-2005) se torna «convincente pela sua linguagem e pela experiência que a suporta, como é o caso do seu trabalho numa pedreira».

Maria Teresa Dias Furtado, membro do júri do Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes, atribuído anualmente pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, realça ainda que «muitos dos temas» abordados no volume «vêm a ser, mais tarde, objeto de documentos do seu magistério (como é o caso do poema “A Pedreira” e a Encíclica "Laborem exercens")».

João Paulo II «foi também um homem de letras – poeta, dramaturgo e ensaísta –, uma faceta da sua vida que, para muitos, permanece ainda desconhecida. Como poeta, as suas primeiras obras oscilam entre as baladas populares e textos mais religiosos e interrogativos, tocando com sensibilidade as questões centrais da existência humana (o trabalho, o sagrado, a experiência do amor humano)».

«A partir de meados dos anos 60 (depois da sua participação no Concílio Vaticano II), passam para primeiro plano uma atenção ao mistério da Igreja. Sendo constituídos de sequências de grande fôlego, os poemas "wojtylianos" conciliam uma clara vocação artística com uma solicitude pelo outro, transparecendo um profundo e raro humanismo.»

É precisamente deste livro que transcrevemos o primeiro dos poemas.

 

A pedreira
João Paulo II
In "A pedreira e outros poemas", ed. Paulinas

I
Os Materiais

1.
Escuta bem, escuta as pancadas do martelo, a sua monótona cadência.
O ruído permite sentir por dentro a força, a intensidade das pancadas.
Escuta bem, a corrente elétrica corta um rio de pedra
e um pensamento vai tomando forma, dia após dia:
toda a grandeza do trabalho vem do interior do homem.
A mão calejada, gretada, afeiçoa-se ao martelo
e o pensamento, pelo contrário, dilui-se na pedra
quando a energia do homem se separa da sua força
que atinge, no lugar preciso, a artéria a sangrar.
Busca amor na ira, acesa em fogo,
que se instila no alento como rio pelo vento impelido,
quase embarga a voz, afetando as cordas vocais.
Os que passam dispersam-se pelo portão
e alguém murmura: no entanto, como era forte!

2.
Juntos se encontram os blocos de pedra, a corrente débil
não corta tão profundamente como o chicote invisível.
As pedras conhecem essa violência
quando um sopro intangível fende a sua máxima coesão
que as arranca de súbito à sua eternidade simples.
As pedras conhecem essa violência.
Mas não é a corrente elétrica que cinde com toda a sua potência,
mas sim aquele que nas mãos detém essa força:
o operário.

3.
As mãos são a paisagem do coração. Por vezes ficam gretadas
como ravinas, por vaga força revolvidas.
Estas mesmas mãos que o homem só abre
quando repletas de dor
e vê que, graças a ele, outros podem afastar-se tranquilos.
As mãos são paisagem. Quando gretadas,
invade-as a dor com intensidade, livre como uma torrente.
Mas o homem não pensa na dor.
A dor não é, por si mesma, grandeza,
e para dizer a sua verdadeira grandeza não há palavras.

4.
Não são apenas as mãos que lançam o peso do martelo,
nem apenas o tronco que se dilata ou os músculos que o desenham,
mas também o pensamento profundo, no trabalho mergulhado,
que faz rugas na testa
e liga sobre a cabeça ombros e veias em abóbada gótica.
Assim, subitamente, torna-se secção de edifício gótico
que penetra a vertical nascida do pensamento e do olhar;
não é apenas um perfil!
Não é apenas uma forma entre Deus e a pedra
destinada à grandeza e sujeita ao erro!

 

II
A inspiração

1.
Por dentro começa o trabalho e no exterior ganha tanto espaço
que logo se apodera das mãos e depois do último alento.
Repara. A tua vontade chega ao fundo do sino da pedra.
Quando o pensamento atingir a certeza,
nessa altura o coração e as mãos, em conjunto, alcançam o veio mais alto.

Uma mão generosa paga o preço
desta vertical, deste pensamento e deste olhar seguros.
A pedra entrega a sua força, o homem amadurece através do trabalho
que traz consigo a inspiração de um bem árduo.

E do trabalho nasce tudo o que cresce no coração e no pensamento,
tudo o que sustenta grandes acontecimentos e multidões.
Que amor este que amadurece ao ritmo dos martelos!
Grupos de crianças transportam-no para o futuro,
cantando: «No coração de nossos pais cumpria-se, sem limites, o trabalho.»

2.
Esta inspiração não acaba nas mãos. Até às medulas da pedra
ela desce através do coração do homem que aí forma medulas isoladas.
E, a partir deste coração, cresce na terra a história das pedras
e no homem cresce o equilíbrio entre a ira e o amor.

Ambos dirigem o homem, nunca nele se esgotarão,
nem hão de cessar na tensão dos seus ombros,
nem no gesto oculto do seu coração;
amor e ira nascem um do outro, completam-se mutuamente
como alavanca que une pensamento e ação num círculo indestrutível.

Assim, vindo de longe, se queres alcançar e entrar no homem e habitá-lo,
tens de unir estas duas forças na sua simplicíssima língua
(e a tua fala não pode fugir às tensões da alavanca
que amor e ira formam).
Então nada te arrebatará do homem, ninguém te afastará dele.

 

III
A participação

A luz desta tábua tosca, há pouco do tronco separada,
verte nas tuas mãos a imensidão do trabalho.
E a tensão dessa mão faz parte do Ato
que tudo leva ao interior do homem, aperfeiçoando-o.

O homem de olhos cansados e sobrancelhas cerradas.
As pedras têm arestas aguçadas como navalhas,
a corrente elétrica fustiga as paredes cortando-as como látego invisível,
e o sol, o sol de julho: branco incêndio na pedra.

Pertencerão as minhas mãos à luz que corta em estilhaços
os carris, as picaretas e, lá em cima, as valas?
As minhas mãos pertencem ao coração e o coração nunca amaldiçoa.
(Afasta o coração dos lábios quando eles amaldiçoarem!)

Conheço-vos, boa gente, gente sem modos nem maneiras.
Sei olhar ao coração do homem sem máscaras nem dissimulações.
Há mãos consagradas ao trabalho, há mãos consagradas à cruz.
Lá em cima encontram-se as valas, as picaretas espalhadas nos carris.

Há espaços vazios nas rochas, não te aproximes!
Desfazem-se os pilares cortados pela corrente.
Os jovens buscam um caminho. Ao meu coração
chegam todos os caminhos. Perdoar-me-ão as pedras?

Escuta: e se o mundo se imobilizasse neste equilíbrio das mãos
que tu, a cada explosão do homem e da pedra,
colocas sobre a vala, sempre, a alguns passos daqui…
(Por vezes há uma criança descuidada que para lá corre.)

Mas este equilíbrio que tu e só tu manténs,
parece estar ao mesmo tempo demasiado longe e demasiado perto.
Temos de nos dobrar e, simultaneamente, nos erguer.
(A criança é descuidada e facilmente para lá corre.)

E de novo o silêncio reina entre coração, pedra e árvore.
Todos podem entrar. Quem entrar permanece igual a si próprio.
Quem não entra não participará em todas as coisas da terra,
apesar das aparências.

 

IV
À memória de um companheiro de trabalho

1.
Não estava só. Os seus músculos tinham raízes na multidão
quando erguia os martelos e palpitavam de energia.
Tudo isso prosseguiu até ele cair por terra a seus pés,
até que a pedra lhe esmagou as fontes
e lhe atingiu um ventrículo do coração.

2.
Levantaram o corpo, avançaram em silenciosa fila.

3.
Ainda dele emanava o trabalho e algum queixume.
Todos tinham blusas cinzentas e botas enlameadas.
Em rigor exibiam tudo aquilo
que entre os homens não deveria acontecer.

4.
O tempo daquele companheiro parou abruptamente. Nos mostradores a corrente era fraca,
os ponteiros oscilaram e voltaram ao zero.
A pedra branca cravou-se nele e devorou-o
e dominou-o de tal modo que ele ficou de pedra.

5.
Quem rolou a pedra? Quem volta a despertar os pensamentos
nas fontes definitivamente quebradas como estuque?
Em silêncio depuseram-no sobre uma mortalha de carvalho.
Chega, atormentada, a mulher, o filho regressa da escola.

6.
Até onde se derramará agora a sua ira sobre os outros?
Não amadureciam nele o amor e a verdade?
As gerações vindouras dele se servirão,
despojado já da sua essência mais profunda, única e pessoal?

7.
Voltam a carregar pedras. Um vagão está coberto de flores.
A corrente elétrica volta a rasgar a fundo os muros.
Mas o homem leva consigo a estrutura interior do mundo;
quanto mais a ira o satura, tanto mais alto explode o amor.

 

Rui Jorge Martins
Publicado em 02.11.2014

 

 

 
Imagem D.R.
Hans urs von Balthasar, um dos maiores teólogos católicos contemporâneos, escreveu que «Péguy é indivisível, ele mantém-se dentro e fora da Igreja, ele é a Igreja "in partibus infidelium", lá onde a Igreja deve estar... lá onde mundo e Igreja, mundo e Graça se encontram e se interpenetram, até ao ponto em que se torna impossível distingui-los».
«É preciso ter conhecido Martin Buber pessoalmente para se compreender num instante a filosofia do encontro, essa síntese do evento e da eternidade», escreveu Bachelard, enquanto que Joseph Ratzinger, o papa emérito Bento XVI, revelou: «A descoberta do personalismo, que se encontrava com uma convicção nova no grande pensador judeu Martin Buber, foi para mim uma experiência intelectual marcante».
«Ainda que tenha motivos religiosos, não se trata de uma poesia religiosa ou confessional, antes é plenamente laical, transbordante de humanidade e de solidariedade com os outros», assinala Maria Teresa Dias Furtado, sublinhando que Karol Wojtyla (1920-2005) se torna «convincente pela sua linguagem e pela experiência que a suporta, como é o caso do seu trabalho numa pedreira».
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