Aos pés da cruz, onde se consuma o drama da paixão e morte do Salvador, e onde tem início o caminho de redenção de toda a humanidade. É aí que nos conduzem as cantatas que compõem o esplêndido ciclo “Membra Jesu nostri”, reflexões em música que o mestre Dietrich Buxtehude (1637-1707) dedicou aos membros lacerados do corpo de Cristo: partindo dos pés pregados, subindo pelos joelhos, as mãos, o flanco, o peito e o coração, até chegar até ao rosto.
As estações desta Via-sacra são interpretadas pelos músicos e 18 cantores do agrupamento Rosso Porpora, sob a sábia orientação de Walter Testolin, que comparou a partitura a «um longo percurso que começa com uma saída – as duas semicolcheias ascendentes de “Ecce super montes” – e termina com uma ascensão. É uma progressiva focalização, uma lenta tomada de consciência: uma sagrada representação».
Estamos perante um género de drama litúrgico que leva à cena as meditações sobre sete membros do “Corpo Místico”, a que correspondem igual número de cantatas, cujos textos foram atribuídos a Bernardo de Claraval, mas serão, com maior probabilidade, de Arnulfo de Lovaina (c. 1200-1250), a partir de excertos da Bíblia.
Cada trecho apresenta uma estrutura formal unitária ao longo de todo o arco da composição: subdividido em seis episódios, é introduzido por uma “sonata” instrumental, deixando depois espaço a um “concerto” (dedicado ao coro) que abre e depois fecha a secção dedicada às “árias”, confiadas a solistas.
A leitura de Testolin brilha pelo equilíbrio entre as partes, atenção às vozes e som, concertação, inspiração e intenção interpretativa. O resultado final restitui plenamente o sentido último de um imponente fresco poético-musical, alimentado passo a passo através de uma crescente tensão, obtida simbolicamente mediante um caminho de progressiva ascese que envolve o ouvinte até o colocar diante do “sagrado rosto” coroado de espinhos.
Testolin, para quem a questão da transmissão da emoção aos públicos contemporâneos é central, dá desta «lição de anatomia mística» (J.F. Labie) uma visão terna e humana, de tonalidade quase maternal.
O conceito de ciclo evoca as sublimes “Sete últimas palavras [de Cristo na cruz]", de Joseph Haydn, compostas cem anos mais tarde, embora musicalmente uma comparação talvez mais ajustada seriam as “Vésperas” de Monteverdi. Os três trabalhos são expressões de temor e reverência, e os ouvintes que apreciem este estilo de música como ajuda para a oração vão apreciar a composição de Buxtehude.
Andrea Milanesi/”Avvenire”