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Charlie Chaplin: Da inspiração de Cristo à sátira social

Charlie Chaplin: Da inspiração de Cristo à sátira social

Imagem "Tempos modernos" | D.R.

«Recordo uma noite, em Londres, no quartinho da nossa cave, eu, convalescente na cama, e a minha mãe. Ela lia, recitava e explicava o Novo Testamento de uma maneira inimitável, transmitindo-me o amor e a piedade de Cristo pelos pobres e pelas crianças.

Falou da sua tolerante compreensão pelos pecadores, da mulher que devia ser apedrejada e das palavras que Cristo disse à multidão: “Quem de vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”. Falou do ódio e do ciúme dos sumos-sacerdotes e dos fariseus.

Falou de como o despojaram e flagelaram, colocando-lhe na cabeça uma coroa de espinhos. Cobriram-no de insultos; falou de Barrabás, o ladrão que morria com Ele na cruz a pedir perdão, e de Jesus que dizia: “Hoje estarás comigo no Paraíso”. E de quando, no fim da sua excruciante agonia, gritou: “Meu Deus, porque me abandonaste?”. E nessa altura irrompemos os dois em lágrimas.»

Na “Autobiografia” (1964), Charlie Chaplin detém-se na sua difícil infância em Londres, depois que o pai, ator, alcoólico, abandonou a sua mãe, o seu irmão Sydney (cinco anos mais velho) e a ele.

Não sabemos se a crase entre Barrabás e o bom ladrão foi obra da mãe, Hanna, ou sua. O facto é que a formação pastoral e no Novo Testamento da criança, cuidada pela atriz de “vaudeville” Lily Harley (nome artístico da mãe, que se pensa ter morrido por causa de sifílis: nova Madalena, que se prostituía para manter os filhos – Chaplin, nos seus escritos, ocultará este aspeto), deixará traços no seu cinema.



Chaplin, com a criação da personagem Charlot – o terno vagabundo, o tímido rejeitado, o maltrapilho educado –, dava vida a uma original “figura Christi”: pobre, solitária, pronta para amar o próximo, inclusive os animais abandonados



Quem, em 1921, teria ousado inserir o fotograma (três segundos) de um grupo escultórico com um Cristo gigante dobrado sob o peso de uma volumosa cruz, para significar o futuro sofrimento de uma desventurada jovem mãe, acabada de ser mandada embora do Charity Hospital, depois de ter dado à luz o “fruto da culpa”: “O miúdo”)? Com tal imagem “fora de contexto”, semanticamente inconcebível para os realizadores do tempo, Chaplin introduzia, na retórica do cinema, a metáfora fílmica (que Eisenstein, astutamente, copiará).

Quem teria ousado fechar um filme, “Uma mulher de Paris”, 1923, com duas mulheres sós (sogra e nora, o jovem homem suicidou-se por amor) que montaram uma casa-família, “ante litteram”, na qual criaram crianças abandonadas?

Mas, sobretudo, Chaplin, com a criação da personagem Charlot – o terno vagabundo, o tímido rejeitado, o maltrapilho educado –, dava vida a uma original “figura Christi”: pobre, solitária, pronta para amar o próximo, inclusive os animais abandonados (“Vida de cão”). Tão bom que sabia realizar “milagres”: tem piedade de uma pobre emigrante oferecendo-lhe um almoço no restaurante sem ter um cêntimo (“A emigrante”); volta a dar vida a um recém-nascido salvo da rua e adota-o (“O miúdo”); permite a uma bela jovem cega recuperar a vista (“Luzes da cidade”).

Charlot, todavia, não deixa de ser também um forte personagem laico. Goza com o poder na figura do polícia (“O fugitivo”, “O miúdo”); satiriza os países militaristas durante a Grande Guerra (“Shoulder arms”); escarnece dos imponentes monumentos e ritos civis vazios (princípio de “Luzes da cidade”); derrama ironia na burguesia viciosa e nas suas fátuas festas (“A mulher de Paris”, “A febre do ouro”, “Luzes da cidade”); “desmonta” ferozmente a produção em série associada ao “fordismo” (“Tempos modernos”), ridiculariza os déspotas (“O grande ditador”).



Depois de ter “resistido” ao cinema sonoro até 1935 (o último filme mudo é o perfeito social-humanista “Tempos modernos”), encarará o cinema falado com grande habilidade: de “O grande ditador”, hino à democracia e à igualdade, passando pelo filosófico “Senhor Verdoux”, até ao existencialista “Luzes da ribalta”



Por esta sua força libertadora e “revolucionária”; pelas suas ações rápidas (futurista), sem lógica aparente (dadaísta), projetadas em cada direção (cubista: veja-se como Fernand Léger o retrata), que se abrem a estranhos sonhos (surrealista) provenientes do insconsciente coletivo, Charlot, essência do séc. XX, será amado por todos os intelectuais das vanguardas europeias: dos dadaístas de Zurique aos expressionistas berlinenses; dos zenitistas jugoslavos aos soviéticos da LEF (Frente de Esquerda da Artes); dos poetas de Praga aos futuristas romenos.

Blaise Cendrars recordará como «a fama de Charlot se difunde na frente graças aos soldados com licença de saída: regressavam rubicundos depois de terem visto os seus filmes: “Charlot no Music Hall”, “Charlot boxeur”, “Charlot marinheiro”, etc.». Philippe Soupoult define “Vida de cão” como «o poema mais emocionante jamais visto, autêntica tragédia de um pobre coitado». Lúcia Joyce (filha do grande escritor James), após a exibição de “O miúdo”, exclamou: «Que mistura de grotesco e sublime!».

Depois de ter “resistido” ao cinema sonoro até 1935 (o último filme mudo é o perfeito social-humanista “Tempos modernos”), encarará o cinema falado com grande habilidade: de “O grande ditador”, hino à democracia e à igualdade, passando pelo filosófico “Senhor Verdoux”, até ao existencialista “Luzes da ribalta”.

A 24 de dezembro de 1977 Charlie Chaplin extinguia-se serenamente no sono, na Suíça, em Corsier-sur-Vevey, onde tinha escolhido viver a sua velhice, com a sua terceira mulher, Oona O’Neill, sem nunca ter obtido o passaporte norte-americano. Alguns meses depois um bando de ladrões desastrados (desvanecida cópia dos dois patifes que roubam o automóvel com o recém-nascido em “O miúdo”) levava os seus restos mortais do cemitério, tentando obter um resgate, mas o golpe não é bem sucedido. Charlot, com uma elegante pirueta, sorrindo debaixo do seu bigodinho, lançava do céu um cumprimento.



 

Eusebio Ciccotti
In "Avvenire"
Trad. / edição: SNPC
Publicado em 15.12.2017

 

 
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