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Arte e espiritualidade: Escolhas culturais do patriarca de Lisboa

Rublev, Nuno Gonçalves, Pärt, Messien, Bruckner e Bach são algumas das escolhas artísticas do patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, para quem a tradição cristã apela constantemente a atitudes de «cesura», que rompem com a normalidade.

As perspetivas do também presidente da Conferência Episcopal Portuguesa sobre cultura e espiritualidade cristã foram partilhadas durante o mais recente encontro “Encruzilhadas da Arte”, que decorreu a 26 de outubro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

A sessão foi moderada pela professora universitária Maria Teresa Dias Furtado, membro do júri do Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes, atribuído anualmente pela Igreja católica através do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

O 51.º encontro “Encruzilhadas da Arte” encerrou o ciclo de palestras “Arte e Fé”, realizado no âmbito do Ano da Fé, que os católicos assinalam até 24 de novembro, último domingo do ano litúrgico.

D. Manuel Clemente, distinguido com o Prémio Pessoa, foi desde abril de 2002 promotor da Pastoral da Cultura na Conferência Episcopal Portuguesa, organismo a que preside atualmente, tendo dirigido a Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais entre 2005 e 2011.

Apresentamos, de seguida, alguns excertos da intervenção de D. Manuel Clemente.

 

O que torna a arte, Arte Sacra?

Estamos no Cinquentenário do Concílio Vaticano II que num documento, sobre Liturgia [Sacrosanctum concilium], nº 122, fala das Belas Artes, especialmente as religiosas, cuja mais alta expressão é a Arte Sacra. Engenho humano, dentro das Belas Artes, dentro delas Artes Religiosas e dentro delas Arte Sacra – sacrum – sagrado, oposto a profano. Não é para uso comum, é consagrado, oferecido a Deus, à divindade.

 
Porque é a Fé inspiradora de modo inesgotável?

Também acontece com o amor… A própria fé é um horizonte inesgotável, abre-nos outras dimensões. A fé é abertura não só à transcendência, é fonte de inspiração constante, mesmo para quem não é confessional. Um compositor português compôs um Requiem, sendo ateu ou agnóstico.

Foto D. Manuel Clemente, Maria Teresa Dias Furtado, Vasco Graça Moura


Que Obra de Arte lhe causou maior impacto?

A “Santíssima Trindade” de A. Rublev, monge russo contemporâneo de Nuno Gonçalves. Estas obras são as que perduram como impacto. De Nuno Gonçalves são os painéis, envoltos em grande polémica, únicos na Arte Europeia de meados do séc. XV. Dezenas de figuras, correspondendo cada uma a uma pessoa. O que estão a dizer e a dizer-nos? Obra aberta, padrão de uma coisa que não sabemos muito bem o que é.


O que acha típico do génio artístico português?

Não o Manuelino, mas o Maneirinho. Todos os estilos, quando chegam aqui ficam mais maneirinhos. Há outra proporção que tem a ver com a orografia, colinas e vales, uma escala mais aconchegada. Temos dificuldade em aceitar Mafra como nossa. As naves dos Jerónimos não são esmagadoras. Os nossos místicos não podem falar mas escrevem que se fartam. Frei Tomé de Jesus, para escrever “Os Trabalhos de Jesus” ficou encerrado numa cela. Quando saímos de Portugal e entramos em casas de portugueses, vemos o que é o Maneirinho.

Há um episódio que também conto num dos meus livros, passado depois de uma celebração de emigrantes portugueses em Paris; um benemérito dessa comunidade convidou-me a ir a sua casa para me mostrar a horta! Isto é muito humano. Portugal não é um país épico, mas tem muitas coisas épicas. «Estava a linda Inês posta em sossego» aparece nos “Lusíadas”. Já Unamuno dizia que comparar um cemitério espanhol a um português era comparar um curral a um jardim.

 

Quando o senhor D. Manuel presidiu ao júri do Prémio Padre Manuel Antunes/Árvore da Vida, dois artistas portugueses apresentavam na sua obra uma especial relação arte-fé: o poeta Fernando Echevarría e o compositor Eurico Carrapatoso. Podia falar-nos de cada um deles?

Fernando Echevarría tem a “cesura” e é aí que o divino entra no humano. A sua poesia anda e para, dá-se a interrupção da normalidade. Também está muito ligado às coisas. No Porto apresentei uma obra do autor em que fala da «alma das coisas», da densidade que as coisas têm, mas para tal é preciso uma cesura, um abalo.

Na composição de Carrapatoso “Magnificat em talha dourada” há uma boa combinação de motivos: tradicionais e clássicos da tradição europeia. Muito inaugural, além da tradição. De cesura em cesura, vai tudo continuar.

Foto

 

Gostaria de destacar algum outro artista inspirado pela fé?

Pärt – depois de morrer Messien, fiquei consolado com Pärt. Mato saudade dos Bruckner, dos Bach. Tem também cesuras. Nós andamos mais por sobressaltos. (…) O Maneirinho é o apropriarmo-nos de maneira pessoal do que é proposto em geral.

Na inspiração no Cristianismo, o Padre Manuel Bernardes refere-se ao Menino Jesus: «Meu Eterno Menino de ainda agora» – isto é muito maneirinho. No séc. XVI, Gil Vicente fala de Nossa Senhora como «estrada no mundo para a divindade». O “Magnificat” é o espanto de uma mulher que se descobre “estrada no mundo para a divindade”.

No Requiem do tempo do fascismo, Lopes Graça encontra o maneirinho. Um elemento do Coro Gulbenkian disse uma vez a outro: «Se vou ensaiar outra vez ainda me converto…». Já estamos na conversão! Saulo de Tarso: aconteceu a sua conversão e nunca mais se calou com isso, foi o único acontecimento da sua vida. A cesura pode vir de dentro (espanto) ou de fora (quando nos para). Não é importante a normalidade, a tradição cristã apela constantemente a não ser assim tão normal. São as cesuras…

 

Acha que a Arte Portuguesa está relacionada com a fé manifestada desde a nacionalidade?

Está. É difícil que um artista português não seja impressionado pela fé. No séc. XV fomos até ao fim do mundo, há camadas civilizacionais e religiosas muito originais. Está tudo muito presente. Gomes Leal, antes ateu, morreu-lhe a mãe nas vésperas da República e essa morte fez dele poeta religioso e místico. Na língua que ficou noutras zonas do mundo, está tudo entrosado. Chave religiosa para interpretação. Numa cerimónia cívica fala-se de um sacerdócio, do bom samaritano, as coisas são consubstanciadas. José Pedro Machado disse que a feira da ladra deve ser o atual poiso de um mercado da Idade Média que se devia realizar já fora de portas, encostado à muralha, onde agora está a igreja de S. Domingos, chama-se feira da Virgem, perto havia a ermida de Nossa Senhora da Escada. AL ADA é Virgem em árabe, a Senhora da Escada.

Imagem"Santíssima Trindade" (Rublev)

 

As obras contemporâneas colocam questões ao público. Para questões religiosas encontra resposta em Cristo. E as questões do homem de hoje, de agora?

Tudo o que é denso interroga; no Centro Cultural de Belém a cultura leva-nos à fronteira do humano. Tudo pode ser pintado, musicado. Como diz o ditado popular: «Quero dizer amor, mas falta-me a boca». A arte tem um toque de mística, já não se pode dizer mais nada. (...) Quando estamos perante acontecimentos verdadeiros interrogamo-nos a nós e a quem está a nosso lado. Não podemos andar sozinhos, temos de conversar, por necessidade e por gratuidade.

 

Ainda que no passado se tenha verificado uma relação fecunda entre arte e Fé, quais lhe parecem ser hoje, neste campo, as perspetivas que se abrem?

É mais abrem do que perspetivas – estas são orientação do olhar – temos poucas, atravessamos uma profunda mudança epocal. Ao longo da História houve várias, entre civilização e cultura (disso tratava o padre Manuel Antunes nas suas aulas e escritos). A civilização vem da cidade. Hoje, quanto a cultura e civilização estamos muito perplexos pela velocidade da informação: há mais massa informativa num dia que há umas décadas atrás num ano. Antes, falava-se de ter uma “enxada” ou “ferramenta” para a vida. Hoje temos muitas ferramentas e enxadas e fazem-se limpezas de prédios. Isto é difícil de gerir.

Há uma interdependência na organização das coisas, já não é o que era. Nesta complexidade, como se pode “avançar”? Murdock: é a imagem do mundo que nos é apresentada amanhã por decisores. Temos de conversar muito, há uma mudança precipitada. Dos que estão nesta sala mais novos: a nova civilização será no tempo dos seus netos. O tempo de hoje não é o tempo de antes. Antes havia a Europa e a sua projeção lá fora. Agora estamos pela primeira vez a mudar à escala planetária. Estamos a criar uma civilização mundial e a respetiva cultura.

Imagem"Painéis de S. Vicente (Nuno Gonçalves, atrib.)

 

Há um problema de fundo em relação ao conceito de Arte: há duas perspetivas, a abstração da transcendência e da mística e a dos artistas arrojados internacionalmente que partiram da transcendência para se aproximarem do mundo. A arte portuguesa encontra vários condicionalismos que funcionam como preconceito que impede o artista de avançar. Refere João Paulo II, “Carta aos Artistas” e o teólogo Spadaro.

As coisas podem andar a par, não necessariamente contra. Monumentos dos séculos XII-XIII, as antigas sés, têm uma ligação entre cultura e civilização, o poder era político e religioso, eram igrejas e castelos. A conjugação entre fazer e dizer só foi possível no século XVI. Surge o Manuelino. D. Manuel tinha muita coisa para dizer e tinha dinheiro para fazer. A Custódia de Belém foi feita com o primeiro ouro lá da Índia. Grande parte dos autores quer escultóricos, quer pictóricos dessa altura, não são portugueses, embora tenhamos o Castilho, o Torralva e o Afonso Domingues (Batalha). D. João V também tinha muito para dizer e como dizer. No séc. XVIII mandou construir o Patriarcado (1716), conjugação entre civilização e cultura. A música portuguesa deste século está a ser recuperada. A partir daí já não falamos a uma voz e quanto ao poder fazer não é a mesma coisa. Vejo estas coisas não em círculo mas em espiral – estamos num período de não coincidência de cultura e civilização, do dizer e do fazer. Não sabemos o que dizer.

 

O património artístico português está em grande parte em igrejas – é da Igreja ou do Estado, a quem compete preservar o património?

Não sou judeu, mas não toquem na sinagoga de Tomar! Património quer dizer dos pais, algo nosso, não deve ser coisificado em Museologia. É coisa minha! Nas Invasões Francesas, em fevereiro de 1808, Junot hasteou a bandeira francesa no castelo de S. Jorge e mandou derreter ouro e prata; o que se salvou na altura foi preservado na casa das pessoas e nos mosteiros. O património real são as coisas nossas. Há desenraizamento quando se transformam em objeto de consumo, de compra e venda.

 

Transcrição, fotografias: Encruzilhadas da Arte
© SNPC | 20.11.13

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