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D. Manuel Clemente: Pensamento, arte, cultura

Imagem D. Manuel Clemente | SNPC/apm | D.R.

D. Manuel Clemente: Pensamento, arte, cultura

D. Manuel Clemente, patriarca de Lisboa, vai ser instituído cardeal neste sábado, 14 de fevereiro, pelo papa Francisco, durante o consistório que decorre até domingo no Vaticano.

O 44.º cardeal português e o quarto a ser criado no século XXI agrega-se ao Colégio Cardinalício, onde vai encontrar os também prelados lusos D. José Saraiva Martins, anterior responsável pela Congregação para as Causas dos Santos, e D. Manuel Monteiro, que foi penitenciário-mor da Santa Sé.

D. Manuel Clemente e D. Manuel Monteiro poderão eleger um novo papa em caso de conclave, por não terem atingido 80 anos.

Na celebração de imposição das insígnias cardinalícias, que vai ser transmitida em direto pela RTP-1 a partir das 10h00, e que contará com a presença do papa emérito Bento XVI, vai estar o vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, e o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier.

No domingo o papa preside à missa com o Colégio Cardinalício na basílica de S. Pedro, às 10h00 locais, celebração que conta com a participação de Paulo Portas. Segue-se um almoço com o cardeal Manuel Clemente e o clero português em Roma, no Colégio Pontifício Português.

A figura do atual presidente da Conferência Episcopal Portuguesa é um referente da cultura nacional, desde logo pelo seu percurso académico ligado à História, iniciado antes de entrar no seminário e ser ordenado padre, e que se prolonga até hoje, marcando muitas das suas intervenções.

O conhecimento do patriarca de Lisboa traduz-se em dezenas de livros, artigos e conferências dentro e fora da Igreja católica, merecendo destaque o Prémio Pessoa 2009, distinção que realça um percurso relevante e inovador na vida artística, literária ou científica portuguesa.

«Eu não sei onde chegam as minhas considerações. E foi com grande surpresa que recebi o anúncio do Prémio. Dar um sinal público de que estamos atentos a tudo, isso com certeza. Essa é a missão da Igreja, que está no mundo como um sinal ativo de atenção e de esperança», afirmou, ao comentar a distinção.

O itinerário de D. Manuel Clemente cruza-se também com a história do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. Em 2002, então bispo auxiliar de Lisboa, tornou-se promotor da Pastoral da Cultura no âmbito da Conferência Episcopal Portuguesa, tendo sido sob a sua orientação que foi criada a Comissão Episcopal da Cultura.

No contexto da reorganização do episcopado, este departamento viria a denominar-se Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, a que D. Manuel Clemente presidiu entre 2005 e 2011, e os três serviços englobados pela nova estrutura assumiram o estatuto de secretariados nacionais, que mantêm até hoje.

Associando-nos à entrada de D. Manuel Clemente no Colégio Cardinalício, instância de aconselhamento do papa, recordamos algumas das suas intervenções no campo da cultura e do pensamento.

 

«A cultura leva por diante a compreensão da vida, no que esta tem de mais palpitante e urgente. Ganha tudo em ser preenchida de saber e de saberes; mas para se responder a si mesma, como existência e autoconsciência inadiáveis. Ora o que o Padre Archer nos tem oferecido é o testemunho riquíssimo da sua demanda – que é também a demanda de si mesmo, na unidade construída do crente e do cientista, do artista e do pastor. E nada há tão oportuno agora, na nossa fragmentada Europa cultural, como este reencontro de si, para além das sínteses rudimentares do passado remoto ou das desistências recentes de encontrar um sentido, mais preenchido este com o que entretanto soubemos e pudemos, irremediavelmente e, apesar de tudo, promissoramente.»

Ato de entrega do prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes ao padre Luís Archer, novembro 2006

 

«É urgente evangelizar! Urgente evangelizar o meio envolvente, que tanto ganhará no reencontro com o Evangelho de Cristo! Urgente evangelizar a cultura e evangelizar na cultura, para que os diversos setores e ambientes se refresquem na água viva do Espírito! Urgente incentivar o testemunho laical, da família à escola, da escola à profissão, da prisão ao hospital, ao tempo livre até, para que realmente liberte.»

Março 2008

 

«A relação que mantemos com Portugal é, fundamentalmente, bíblica. Olhamos Portugal como uma personalidade coletiva portadora de uma alma, no sentido romântico do termo, ainda que referido a algo muito anterior ao Romantismo. E a relação que mantemos com esse gostoso e custoso coletivo vem na esteira de um outro povo, que se descobriu eleito e portador de uma missão universal. [...]

António José Saraiva comparou-nos a um fruto mole na casca e duro por dentro. Tinha razão: temos por dentro muitíssimo mundo, consolidado em sucessivas experiências, em que a convivência acabou por ganhar às lutas. Por isso concentrámos geografias, para as maleabilizar depois. E será talvez sob este aspeto que melhor nos damos com Portugal. [...]

Aliás, oscilamos entre a beleza das coisas pequenas e uma persistente disponibilidade para os grandes momentos. Um certo "regresso ao campo", de fim de semana, férias ou reforma; a inesgotável popularidade dos filmes de há sessenta anos; o reencontro do artesanato; a constante utilização do sufixozinho/a, mesmo nas coisas mais utilitárias e prosaicas: tudo nos reencontra num certo "Portugal dos pequeninos", oxalá próximo da primeira bem-aventurança. O imenso gosto pela festa, como interrupção das linearidades, traz-nos um devaneio que suporta o dia a dia. Aliado a algum sentido prático, tem originado empreendimentos criativos e consequentes, que vão muito além de ocasionais recordes do Guiness, prémios de inventores e registos de patentes. [...]

Um bom indício do modo como nos relacionamos com Portugal são as nossas autofigurações, as feitas e as por fazer. Quanto às feitas, reparemos em duas, uma popular e outra erudita.

A popular é certamente o Zé Povinho. Desde que Bordalo a pintou, foi constantemente reproduzida e encontramo-la em todo o lado. Mas que significa ao certo? Ignorância ou esperteza? De tudo um pouco, como se tem dito e escrito, em análises rápidas ou de maior fôlego. Mas é exatamente nessa indefinição que ela pode servir para caracterizar a relação que mantemos com nós mesmos, ou com o País no seu todo. Coexistimos uns com os outros – e, cada vez mais, com os estrangeiros – em subalternidade e atraso, ou em esperteza, razoável desconfiança e quase "retranca" galega?

A erudita encontra-se nos painéis de Nuno Gonçalves. Quando foram, também eles, "descobertos", logo atraíram como um íman uma atenção crescente e vivaz. Passou um século e continuam a olhar-nos, com aquelas dezenas de olhos que nos perscrutam e avisam, não sabemos bem de quê. Nunca uma obra de arte nos interrogou tanto, motivando sucessivas interpretações, tanto dela como nossas. Interpretações, aliás, que aparecem quase como urgentes, para decifrarem finalmente um enigma que é existencial e de nós todos. Como se Portugal de depreendesse dali, como "mensagem", para falar segundo Pessoa, ou como "navegação", para falar segundo Sophia…[...]

Aqui chegámos, finalmente. Mais como interrogação do que como certeza. Vamos andando, apesar de tudo. E, muito à portuguesa, "depois se verá". O que também é já um grande saber de experiência feito.»

"Portugal e os portugueses", Assírio & Alvim, 2008

 

«Verifica-se facilmente que o contributo cristão foi de facto "matricial", podendo considerar-se determinante para os outros dois aspetos, o cultural e o humanista. O Cristianismo criou a geografia europeia, muito distinta do mundo mediterrânico até ao século V: a Europa foi constituída pela missão cristã subsequente à queda do Império Romano do Ocidente, num longo processo de meio milénio, de Portugal à Rússia, do Mediterrâneo ao Mar do Norte.

Dentro desta geografia, desenvolveu-se uma cultura própria, na síntese feita da herança clássica e outras posteriores, com forte sentido humanista, porque desafiado pela atitude de Cristo face a cada um: face aos escravos, face ao Estado, face aos pobres... Um processo lento, mas relativamente conseguido. Não é por acaso que a linguagem corrente usa as referências evangélicas nas alusões sociais [...].

Dentro da matriz cristã, que valoriza a relação próxima, indo ao muito pelo pouco, como "fermento na massa", inscreve-se o princípio da subsidiariedade, também recolhido pelo tratado europeu [...].»

Maio 2008

 

«Verificamos na sociedade portuguesa um maior investimento no ensino tecnológico, compreensível na atual conjuntura social e económica. Em termos de mentalidade, isto vai a par com a força da ciência, no sentido que ela foi ganhando na Europa moderna.

Tudo muito certo, tudo insuficiente. De facto, nas mais diversas áreas da sociedade e do trabalho, a modernização e os resultados práticos, vistos apenas do ponto de vista científico e técnico, correm o grande risco de perderem a prevalência humanista. Facilmente, a pessoa humana - cada homem e cada mulher em concreto - pode diluir-se na generalidade dos fatores de produção e rendimento. 

Perigo mais do que evidente, pois é gritante hoje em dia. Ora, se o legado clássico tanta coisa nos traz, é exatamente na imensa profundidade de cada ser humano que ele mais se traduz. E é também aqui que a cultura clássica mais se alia com o “Ecce homo!” que Jesus de Nazaré inteiramente realiza e oferece. Aqui também colhe, hoje como sempre, a advertência evangélica: “ – De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma?”.»

Ato de entrega do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes 2008 a Maria Helena da Rocha Pereira, junho 2008

 

«Compreende-se que o melhor Portugal seja poético, ou seja, mais feito do que construído, mais desligado da prosa e das contas. Melhor porque maior, só assim o podendo ser, sem restrição geográfica. Com tanta água territorial, o mais de Portugal é mar...

Talvez por isso mesmo, a melhor ideia que temos de nós próprios provém da poesia e não da prosa. Desta última guardamos sobretudo o que nos distancia de nós próprios, entre a ironia e o sarcasmo. Pensamo-nos mais altamente à maneira de Camões do que à maneira de Eça. Ou, deste último, recolhemos as páginas mais "poéticas" que nos dedicou n’"A cidade e as serras".

Ou seja, quando nos relacionamos bem com Portugal, fazemo-lo com um País mais sentimental do que mentalmente definido, como se a espuma das ondas nos toldasse a visão.

E tanto assim é que o nosso próprio movimento – terrestre que seja – continua a ser marítimo, mesmo para quem nunca sulcou as ondas: estamos sempre a "embarcar", como se a viagem mais trivial se sublimasse também. Até as nossas serras têm "naves"...

É da poesia que advém ainda a nossa permanente disponibilidade para o milagre. O "milagre português", no caso. Não há época da nossa história em que tal não aconteça, emblematicamente.»

Pavilhão da Santa Sé, Expo 98

 

«Durante muito tempo, em ambiente sócio-cultural que o proporcionava, a religiosidade popular ancestral coincidia com a proposta oficial, sendo esta oficialidade tão confessional como cívica: o reconhecimento social fazia-se pelo Batismo, a família constituía-se pelo Matrimónio, as exéquias mantinham o defunto no âmbito eclesial. Para mais, escola, profissão ou saúde, tudo conservava, em muitos lugares, o mesmo espírito e simbólica. Assim se formalizava catolicamente todo o curso da existência pessoal, familiar e social, mesmo quando as convicções e as práticas nem sempre fossem realmente preenchidas pelo credo e as virtudes evangélicas. Porém, de há dois séculos para cá, em termos de movimento geral dos espíritos e das práticas, as coisas foram mudando, vivendo nós hoje num ambiente em que prevalece a preferência individual e até a desconfiança em relação ao que seja herança cultural, institucionalmente sustentada. [...]

Em todos estes campos, tão irrecusáveis como a própria realidade, a verdade cristã original – essa mesma que ouvimos enunciada na sinagoga de Nazaré – tem de ser retomada, "com novo ardor, novos métodos e novas expressões", para que o Evangelho se continue a cumprir "hoje mesmo". Tomemos as atuais dificuldades e urgências como outras tantas oportunidades de evolução pastoral positiva, com paciente pedagogia e lucidez criativa. Seja como for, não avançaremos sem o povo, que aliás integramos; mas com ele, em conversão coletiva, a partir certamente de alguns, que sejam como "fermento na massa". Nunca foi nem será doutro modo.»

Quinta-Feira Santa, Missa Crismal, abril 2009

 

«Numa sociedade como a nossa, os únicos locais onde havia disponibilidade para alguém se dedicar à escrita, à composição musical ou plástica eram os âmbitos eclesiais. Era daí que vinham as propostas de criação para fazer igrejas ou decorá-las, para a música religiosa. O próprio teatro europeu está ligadíssimo aos mistérios medievais. O que aconteceu entretanto foi a secularização da vida. Coisas do âmbito religioso estrito vão, a pouco e pouco, passando para a esfera individual. Não acho que alguma vez se recupere ou deva recuperar o quadro institucional de outras épocas, em que os meios eclesiásticos eram os meios da cultura. É ótimo que isso tenha passado para as pessoas em geral e não é por isso que [a arte] é menos religiosa. Isso não dispensa as comunidades cristãs de enriquecerem a sua expressão cultural e serem criativas. Tudo o que seja intercâmbio nestes vários níveis da cultura, em que as fronteiras entre o sagrado e o profano se diluem, é importante, oportuno e é um ganho. [...]

Mesmo em Quinhentos, tirando alguma euforia inicial, o próprio Camões admira-se com o que pode fazer a “pequena casa portuguesa”. Rapidamente se repara que não estamos à altura de tanta coisa. Esta mescla de se ter feito muito, de não se conseguir aguentar tanto e de se contradizer tantíssimo, está sempre presente na história portuguesa. Um povo que teria um milhão de habitantes no princípio do século XVI, com cem mil homens disponíveis, que vai deste canto da Europa até à quarta parte nova – o Brasil, depois a Ásia – é uma coisa tão desmesurada que fica sempre o sentimento de que somos gente especial. Porque nos calhou a nós? A argumentação geográfica – estamos numa ponta da Europa – não esvazia o sentimento de que há uma desmesura que nos explica. Ainda hoje, Portugal são cinco: de Leiria, para cima, de Leiria para baixo, Madeira, Açores e a diáspora. E com muitas subdivisões. Em qualquer acontecimento, há uma certa deceção do que se faz, uma vontade de se fazer e uma nostalgia de uma grandeza que nunca se atingiu. Isto é o português. A saudade – que tem sentimentos congéneres – vem desta desmesura. As pessoas têm um ideal para o país que é muito maior do que o seu esqueleto.»

"Público", setembro 2009

 

«A cultura, como meio ambiente e mentalidade difusa, propicia a fé ou a descrença. Se houver síntese fé-cultura, a própria sociedade tornará a fé plausível; se acontecer o contrário, decorrerá antes a descrença e ao Catolicismo sociológico contrapor-se-á a descrença sociológica, ambos prévios à assunção pessoal dum e doutra.

A arte é um bom índice - embora não unívoco - para a qualificação religiosa duma cultura. No nosso contexto, parecem inegáveis as dificuldades da cultura e da linguagem em relação ao fim e ao Outro. E o pensamento contemporâneo não parte duma visão confessional do mundo e da vida, sendo difícil acolhê-lo sem mais na reflexão cristã ou no diálogo teologia-cultura. Para realmente dialogarmos, temos de partir do fundo comum de humanidade que compartilhamos agora, comprovando o discurso teológico na experiência concreta do homem contemporâneo.

Sempre houve descrentes. Mas a descrença atual tem características próprias: um caráter massivo, pois deixou de ser um fenómeno de "delinquência intelectual", deparável em certas elites, para se difundir por todos os estratos sociais; relevância cultural, porque se tornou quase num apriorismo do discurso intelectual dominante; autoapresentação como fenómeno historicamente ascendente e humanisticamente positivo, como afirmação e libertação do homem; anti-institucionalisrno, especialmente no campo religiosos.

No que nega e nas razões por que o faz; no que procura, para além dos caminhos que percorre, a cultura contemporânea está incontornavelmente aí, desafiando a fé, fora e dentro de nós próprios. Quando leva as suas questões até ao fim, toca num fundo de humanidade situada que a evangelização também tem de percorrer. Nas palavras de João Paulo II em Coimbra (15 de maio de 1982), "a cultura não é só sujeito de redenção e de elevação; mas pode ter também um papel de mediação e de colaboração"».

"1810-1910-2010. Datas e desafios", Assírio & Alvim, 2009

 

«Espanta e espanta muito ainda agora, ver apresentados como "progressos" alguns retrocessos que seriam, em termos de civilização e de cultura. Isto em relação à vida e à sua dignidade, isto em relação à família e à complementaridade homem-mulher em que se funda, isto em relação à morte e à naturalidade e companhia em que deve suceder… Dificuldades em qualquer destes campos, todos as reconhecemos e queremos levar de vencida. E possibilidades de o fazer, temos nós disponíveis e abertas pela graça de Cristo, mil vezes experimentada. [...]

Como a alma no corpo, assim os cristãos no mundo… Alma no corpo, semente na terra, luz na escuridão: – Quantas imagens e que força nos trazem para a expansão do reino, em palavras certas e vidas comprometidas! Recomecemos, irmãos e irmãs, recomecemos hoje e sempre, para que a nossa cidade e o nosso mundo recomecem também, na verdade que Cristo é e lhes oferece, através de cada um de nós, em quem já reina!»

Solenidade de Cristo-Rei, novembro 2009

 

«A cultura faz-se no dia a dia, em variadíssimas atividades e na criatividade dos homens e mulheres da cultura, da literatura, das artes plásticas, da música. Depois, também é bom que haja uma oportunidade de encontro, que as pessoas se vejam umas às outras. Vem quem quer, ninguém é obrigado a ir, mas rapidamente se encheu a sala, porque não é todos os dias que homens e mulheres da cultura têm oportunidade de se encontrarem com uma grande referência, porque o Papa é uma grande referência cultural. [...]

Jesus Cristo fala da semente lançada à terra, do fermento na massa. Quem é cristão, quem se refere a Jesus não apenas como um episódio, mas como algo substancial, projeta isso na sua maneira de ver o mundo, sentir as coisas.

Se tem uma sensibilidade artística, o exercício de uma arte, isso também se projeto aí e é assim que o Evangelho se transforma em cultura, através dos criadores culturais que também se deixem recriar pela pessoa de Jesus Cristo.

A relação entre Igreja e Cultura, portanto, não se faz de maneira formal, por decreto, mas porque há homens e mulheres profundamente motivados pelo Evangelho de Cristo que depois refletem essa motivação naquilo que criam. [...]

Às vezes a inspiração evangélica é clara, patente, e às vezes é mais subliminar. O que aconteceu na viragem do século XIX para o século XX, em boa parte desse século e ainda no nosso é que essa inspiração religiosa se introverteu mais, não é tão explícita. Não quer dizer que a arte, a cultura, a literatura atuais não tenham uma referência religiosa, ela pode é não ser tão patente, porque a própria religiosidade interiorizou mais.»

Agência Ecclesia, maio 2010

 

«Não é só por conservar no seu escudo as cinco quinas interpretadas como cinco chagas, ou por se ter encontrado fora de si nas velas da cruz de Cristo, que Portugal tem nesse motivo a sua cultura mais argamassada e profunda, pronta a vir surpreendentemente ao de cima, como na última visita papal. Nem é preciso ser muito perspicaz para deparar com alusões cristãs nas mais diversas ocasiões e vicissitudes da vida pessoal ou coletiva, mesmo quando se presumem totalmente laicas e profanas.

As palavras disponíveis estão cristãmente referenciadas, da salvação à redenção, do sacrifício à mensagem, do pródigo ao samaritano, da terra ao céu. E os símbolos disponíveis dificilmente se esvaziam do preenchimento litúrgico que tiveram ou continuam a ter, na linha da encarnação do verbo, no lance para a eternização da circunstância: palavras ditas e cantadas, silêncio e absorção do escutado, presença do sinal causador daquela “comunhão” de amigos – do retrato de quem se lembra aos restos mortais de quem partiu -, esperança alimentada em tudo isto e apesar de tudo…

Em Portugal, qual semente desfeita na terra, o cristianismo – e especialmente o cristianismo católico, tão “sacramental” -, é inevitavelmente cultural, podendo por isso mesmo ser “dramático”, na relação que cada um tenha com ele e com as instituições que mais expressamente o assinalem, como dramáticas são todas as coisas inevitáveis. Felizmente dramático, digo eu, pois isso significa algo de questionador e vivo.»

Ato de entrega do prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes à Diocese de Beja, junho 2010

 

«Para quem não desista de inspirar cristãmente a cultura, o desafio redobra com as atuais fraturas, que só nos abrem a “fraternidades” de escolha e particularíssima escolha, parecendo insanável a rutura entre as antigas solidariedades prévias e as atuais solidariedades de escolha, tendendo estas a serem sucessivas, discrepantes e restritas. Para “outra margem” passa-nos Jesus de Nazaré, começando com um pequeno grupo, em que podiam coexistir publicanos (Mateus) e zelotas (Simão); uma fraternidade tão universal como única é a origem de nós todos, relativizando consequentemente tudo quanto a possa obnubilar: “Quanto a vós, não vos deixeis tratar por ‘Mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos” (Mt 23, 8).

Em termos mais conclusivos e práticos, poderemos insistir numa pastoral assim "cultivada":

1) Na consciencialização da raiz religiosa da fraternidade, com grande incidência ecuménica (unidade da criação). No que ao cristianismo respeita, evidenciar a absoluta fraternidade das atitudes e palavras de Cristo: "Ouvistes o que foi dito: 'Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo'. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. [...] Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste" (Mt 5, 43-45.48). E no reconhecimento da origem e convergência de todo o bem que se faça, seja quem for, seja a quem for: "João tomou a palavra e disse: 'Mestre, vimos alguém expulsar demónios em teu nome e impedimo-lo, porque ele não te segue juntamente connosco'. Jesus disse-lhe: 'Não o impeçais, pois quem não é contra vós é por vós'" (Lc 9, 49-50).

2) No mais lídimo espírito cristão e franciscano - da "Galileia dos gentios" às bodas de prata do "espírito de Assis" (1986 ss) - participar e colaborar em tudo o que aproxime grupos, povos e crenças, com incidência humanista, e ultrapasse antigas e atuais manifestações de segregação, desconfiança e mútuo alheamento. Podendo começar pelas nossas próprias comunidades, na valorização da contribuição diferenciada de cada um dos seus membros e grupos, segundo os respetivos carismas, a bem do todo.
3) No campo das "artes e letras", incidir particularmente em tudo quanto manifeste a unidade de origem e destino da nossa humanidade comum, tão expressa na bondade, verdade e beleza essenciais: "De resto, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é respeitável, tudo o que possa ser virtude e mereça louvor, tendo isso em mente. [...] Então, o Deus da paz estará convosco" (Fl 4, 8-9).»

7.º Encontro Nacional de Referentes da Pastoral da Cultura, Fátima, janeiro 2011

 

«Tinham mãos os salteadores, como as têm hoje. Mas não são mãos de dar, são mãos de roubar bolsas e vidas. Roubaram-lhe tudo o que levava, que no seu caso seria material. Nos caminhos solitários que tantos percorrem hoje, os assaltos são permanentes e não roubam apenas coisas. Rouba-se a transparência dos novos, rouba-se a sabedoria dos velhos; rouba-se o ideal dos jovens, rouba-se o sustento dos adultos; roubam-se disponibilidades, sonhos e projetos…

Não falo em abstrato. Refiro aspetos precisos, como a escassa educação para os valores essenciais da verdade, da bondade e da beleza; refiro a pouca prioridade que se dá à família, como célula base do organismo social, onde se possa aprender com espaço e tempo o convívio intergeracional, a complementaridade masculino – feminino, a memória das coisas e a solidariedade essencial; refiro o pouco respeito pela dignidade da pessoa humana, que não pode ser lesada pela sobrevalorização da imagem, a exorbitância da moda, a secundarização dos menos hábeis ou habilitados, ou a banalização da pornografia, do mau gosto e dos maus consumos. Falo de realidades assim, como podia juntar tantas outras, que assaltam e roubam as pessoas no que têm e no que são, sobretudo porque as apanham sós ou solitárias, mesmo que rodeadas por multidões anónimas. [...]

Trágicos caminhos, grandes solidões, enormes desamparos… E aí fica a humanidade de tantos e tantas, na valeta das nossas indiferenças… Até que passe um “samaritano”, que – na exuberância das atitudes da parábola – realmente veja e repare, se compadeça e aproxime, trate e ligue as feridas, transporte, abrigue e cuide… Felizmente são muitos os samaritanos, mesmo que não sejam bastantes. Neles, Cristo se reconhece e neles se reconstroem as vidas. Só assim. [...]

Prioridade da nova evangelização que agora urge, é percorrer todos os caminhos, recuperar todos os sós e abatidos, recolhê-los em comunidades de hospitalidade e serviço. Os primeiros cuidados do Samaritano foram com azeite e vinho, e assim continuariam com o estalajadeiro, segundo o uso do tempo. O azeite lembra a luz e o vinho a última ceia. Não faltem eles nas nossas comunidades, com a luz da Palavra e o vinho da Eucaristia, a que especialmente vos destinais, caríssimos ordinandos, para o serviço dos irmãos.»

"É este o tempo", Pedra Angular, 2011

 

«Sabemos como, para resolver muito mal-estar, é preciso muito estar-com, mesmo sem resultados imediatos e quantificáveis. Mais ou menos como nos é dito que a floresta variada e longeva importa mais para o futuro do que plantio sucessivo de arvoredo monótono e esgotador…

E o mesmo se diga das nossas cidades, para que realizem tal nome: lugares de “concidadania”, urbanisticamente plasmada e possibilitada, proporcionando encontros em que a “inutilidade” anterior se torne agora da maior “utilidade” futura, para um indispensável e solidário civismo, onde o acontecer nasça do conviver. Conservando também a memória histórica e monumental, essa mesma que já foi sacrificada aos resultados rápidos e funcionais que nos esqueceram a tantos, como devir intergeracional sinalizado.

Entre “pessoas” o tempo nunca é dinheiro, pois cada uma delas é o máximo valor. Com a “inutilidade” que finalmente são, ainda que nisso mesmo sejam úteis à personalidade real de nós todos.»

Conferência de abertura da "Experimentadesign", setembro 2011 

 

«Desde as primeiras manifestações da arte paleocristã até às catedrais góticas, as obras de arte surgiam naturalmente no seio da comunidade eclesial. Percebe-se assim que se tenham superado facilmente alguns conflitos e tensões entre princípios teológicos, litúrgicos ou estéticos. Com efeito, como refere Juan Plazaola, "na Idade Média as obras de arte nasciam muitas vezes do coração e das mãos de monges especialmente dotados para o exercício das artes plásticas".

As relações entre a igreja hierárquica e os artistas tornaram-se mais complexas, quando estes assumiram uma autonomia que, progressivamente, vinha sendo reconhecida na sociedade, ao mesmo tempo que mais nitidamente se delimitavam os universos da arte sacra e da arte profana. [...]

Apesar de vivermos numa sociedade marcadamente secularizada, apesar das dificuldades que o diálogo entre a cultura e a fé naturalmente suscitam, apesar de alguma animosidade com traços mais ideológicos do que teológicos ou estéticos, é justo reconhecer que nas décadas que nos separam do Concílio do Vaticano II foi percorrido um caminho de reaproximação e é justo reconhecer que essa reaproximação não foi inconsequente. Com efeito, existe a consciência de que a nova evangelização, no que se refere à arte, implica um esforço no acolhimento da novidade inerente à pluralidade de linguagens da arte contemporânea.»

Mensagem aos artistas, 2011

 

«O padre Manuel Antunes marcou toda a gente que andava na Faculdade de Letras de Lisboa, entre os anos 60 e o princípio dos anos 70. Era um homem notável, jesuíta. Dava duas cadeiras estruturais, a História da Civilização Romana e a História da Cultura Clássica (esta uma cadeira aberta a vários cursos da Faculdade). Tinha uma profundidade nos temas que abordava e uma exposição clara que nos marcou a todos. Abriu-nos muito os horizontes mentais, sendo uma referência para todos. Era um grande pensador da realidade portuguesa, tendo trabalhado muito na revista "Brotéria", dos Jesuítas, onde redigia números inteiros com vários pseudónimos, por dominar diferentes tabuleiros culturais, desde a análise literária à filosófica ou escritos sobre política. Marcou-nos a todos. E é interessante que, quando falo com contemporâneos da Faculdade de Letras, dos vários cursos, hoje com 60, 70 anos, essa referência permanece.»

"Uma casa aberta a todos", Paulinas, 2013

 

«Na sociedade portuguesa, como noutras, o Cristianismo chegou no séc. III ou IV, tendo por isso séculos de história, com mais ou menos coerência, e transformou-se numa cultura, numa civilização, num molde social. Mas hoje já não é bem assim! Não há um Cristianismo envolvente, nem uma prática que até marcava o ritmo das comunidades e das populações. Hoje vai quem quer, e quem não quer não vai. As ideias e as contradições são muitas. Os média são outra fonte de informação permanente que nem sempre coincide com a proposta evangélica...»

"Uma casa aberta a todos", Paulinas, 2013

 

«Nós estamos numa grande mudança de civilização e de cultura, que vai gerar um outro tipo de organização da vida e de partilha de ideias, na qual nos temos de manter como comunidade cristã. Exatamente como comunidade. Por isso, temos de recompor.

Vamos manter o que há e que funciona, e vamos à procura de coisas novas na maneira de nos reconfigurarmos comunitariamente. Sem isso não há experiência cristã, porque o grande ensinamento de Jesus de Nazaré é que Deus é Amor. O próprio Deus é comunicação, como Ele a vive com Aquele a quem chamou Pai.

Sem haver experiência de comunidade, tanto numa família como numa instituição religiosa de qualquer tipo, associação ou movimento, não há experiência cristã. Não há para os cristãos e não há para os cristãos oferecerem ao mundo.»

"Uma casa aberta a todos", Paulinas, 2013

 

Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 14.02.2015 | Atualizado em 26.04.2023

 

 
Imagem D. Manuel Clemente | SNPC/apm | D.R.
Desde que Bordalo pintou o Zé Povinho, foi constantemente reproduzida e encontramo-la em todo o lado. Mas que significa ao certo? Ignorância ou esperteza? De tudo um pouco
Dentro da geografia europeia desenvolveu-se uma cultura própria, na síntese feita da herança clássica e outras posteriores, com forte sentido humanista, porque desafiado pela atitude de Cristo face a cada um: face aos escravos, face ao Estado, face aos pobres... Um processo lento, mas relativamente conseguido
Nas mais diversas áreas da sociedade e do trabalho, a modernização e os resultados práticos, vistos apenas do ponto de vista científico e técnico, correm o grande risco de perderem a prevalência humanista
A melhor ideia que temos de nós próprios provém da poesia e não da prosa. Desta última guardamos sobretudo o que nos distancia de nós próprios, entre a ironia e o sarcasmo
Numa sociedade como a nossa, os únicos locais onde havia disponibilidade para alguém se dedicar à escrita, à composição musical ou plástica eram os âmbitos eclesiais. Era daí que vinham as propostas de criação para fazer igrejas ou decorá-las, para a música religiosa
Não é só por conservar no seu escudo as cinco quinas interpretadas como cinco chagas, ou por se ter encontrado fora de si nas velas da cruz de Cristo, que Portugal tem nesse motivo a sua cultura mais argamassada e profunda, pronta a vir surpreendentemente ao de cima
A cultura, como meio ambiente e mentalidade difusa, propicia a fé ou a descrença. Se houver síntese fé-cultura, a própria sociedade tornará a fé plausível; se acontecer o contrário, decorrerá antes a descrença e ao Catolicismo sociológico contrapor-se-á a descrença sociológica, ambos prévios à assunção pessoal dum e doutra
A relação entre Igreja e Cultura, portanto, não se faz de maneira formal, por decreto, mas porque há homens e mulheres profundamente motivados pelo Evangelho de Cristo que depois refletem essa motivação naquilo que criam
Apesar de vivermos numa sociedade marcadamente secularizada, apesar das dificuldades que o diálogo entre a cultura e a fé naturalmente suscitam, apesar de alguma animosidade com traços mais ideológicos do que teológicos ou estéticos, é justo reconhecer que nas décadas que nos separam do Concílio do Vaticano II foi percorrido um caminho de reaproximação
Nós estamos numa grande mudança de civilização e de cultura, que vai gerar um outro tipo de organização da vida e de partilha de ideias, na qual nos temos de manter como comunidade cristã. Exatamente como comunidade. Por isso, temos de recompor
Sem haver experiência de comunidade, tanto numa família como numa instituição religiosa de qualquer tipo, associação ou movimento, não há experiência cristã. Não há para os cristãos e não há para os cristãos oferecerem ao mundo
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