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"Diáspora": poesia de José Rui Teixeira

Em Diáspora reimprimem-se poemas de Oráculo (2006), O fogo e outros utensílios da luz (2005), Assim na terra (2005) e Para morrer (2004), alguns de acordo com as primeiras edições, outros alterados, outros praticamente reescritos. A estes junatm-se os inéditos de Ataúde (2008) e Zerbino (2006).

José Rui Teixeira (Porto, 1974) é professor na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa (UCP). Leciona nas áreas do humanismo cristão, história da cultura e da arte, literatura e filosofia. É licenciado em Teologia pela UCP, mestre em Filosofia e doutorado em Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

É investigador do Centro de Estudos do Pensamento Português, da UCP, e integra o Secretariado da Pastoral da Cultura da diocese do Porto.

De Diáspora, edição trilingue,transcrevemos a introdução, assinada por Valter Hugo Mãe, e sete poemas.

 

A memória de Deus
Valter Hugo Mãe

Cobiço muito que Deus exista para o José Rui Teixeira. Fico como que à espreita, a ver nos seus poemas se entendo o caminho, porque me impressiona a firmeza da sua convicção, isso faz com que os versos sejam como preces solenes, entregas sérias a uma existência maior.

Começo por cobiçar essa convicção, porque acreditar na transcendência tem de ser a maior fortuna que a vida pode alcançar, e entendo este como o ponto fundamental da poesia do José Rui Teixeira, a vida como uma fortuna consciente de que não se esgotará.

As pessoas que acreditam assim em Deus, as que acreditam de verdade, deviam andar com um cofre em redor do coração, porque parece coisa tão preciosa que dá medo que possa ser roubada. Ainda bem que o amor por algo não é exatamente ouro, para escapar à avidez dos homens. Ainda bem que acreditar e amar não se pesa na balança e não nos pode ser levado a meio da noite por alguém que parta o vidro da porta da cozinha.

Por outro lado, quem roubaria Deus do coração de alguém, pergunto. O que diria Deus depois de roubado. Para que servi­ria, se fosse roubado, continuaria a ser Deus para o ladrão, pergunto. Um Deus roubado do coração de alguém tem de perder o sentido, a identidade, deixar de o ser. Estragar-se de alguma forma, talvez para sempre.

Penso que os poemas do José Rui são como um certo cofre em redor do coração. Não porque ele tema, como eu, que alguém lhe roube as convicções e o amor, mas porque os poemas vão fortalecendo as convicções e o amor como se murassem cada sentimento. Como se garantissem, através desse muro, os sentimentos contra o enfraquecimento.

A poesia do José Rui Teixeira é uma luta contra o enfraquecimento porque é criação de memória, reiteração de cada momento, perdurabilidade. Falo da memória, mas não dessa ideia linear de que os poetas andam à cata da eternidade, de uma lembrança concreta de si mesmos. Aqui não se trata disso, até porque quem acredita em Deus é eterno por definição e tem tal gula resolvida. Trata-se de uma memória como para algo universal e eminentemente votada aos outros, algo que emana de um indivíduo e da sua particular experiência e que pode ser dado ao coletivo dos homens, como um testemunho para a plenitude da existência com todo o seu terror e maravilha. Como um ensinamento. Esta poesia é o percurso da aprendizagem e a vontade de retirar um ensinamento. Por isso se pode universalizar, dizer respeito a todos.

Neste sentido, gosto muito que os poemas do José Rui arranquem tantas vezes dos seus dias, entre recordações de infância, epifanias da vida adulta, mas sempre muito medidos pela noção de família, pelo referencial das pertenças, das perdas, dos afetos tão sagrados quanto Deus. Os afetos são tão sagrados quanto Deus, porque é através deles que nos consumamos como gente, como pessoas. Até antes dos afetos somos apenas animais, instintivos e sem grande valor. Só a capacidade do amor nos faz pessoas e divinos.

Lembro com muito carinho o tempo em que o José Rui me visitava com o João, o seu primeiro filho, ainda menino muito pequeno, e o sentava no meu colo a fazer desenhos na minha secretária. Lembro-me de pensar que as formas descontrola­das dos desenhos infantis eram como auscultações místicas, umas certas coisas do acaso que poderiam descortinar muito insondável e sempre mais maravilha. As crianças são para isso, derrubar o modo redutor como vemos o quotidiano, porque no quotidiano há profunda maravilha e este nunca deve ser reduzido a menos do que isso.

E leio com o mesmo carinho o que vai nos poemas acerca da infância, da maternidade, da urgência e intensidade dos instan­tes. Isto porque vejo a poesia, e em especial esta poesia, como um método de também auscultar a mística de tudo, um méto­do de fazer magia a partir de estar vivo que, afinal, não pode ser mesmo considerado uma coisa qualquer.

Acho que os desenhos do João eram já um modo de gostar. Ele ia errante pelas formas porque gostava de, errante, espe­rar descobrir. Era como esperar das formas uma resposta, algo que viesse, surpreendentemente ao encontro do seu agrado. As crianças começam por desenhar assim, no absoluto domínio da procura, sem certezas. Pois, a poesia é exatamente igual. Uma procura. Uma aproximação por infinitas probabilidades que, resolvida em profunda subjetividade, responde ainda que a uma ínfima questão do poeta e da vida.

Acredito que a poesia é toda ela mística, ainda que já tenha afastado de mim a crença na transcendência. E se cobiço que Deus exista para o José Rui Teixeira é porque, em certa medi­da, percebo que o poder da poesia possa contribuir para criar tal convicção. Como se a poesia, mais ainda do que construir o cofre, pudesse construir o próprio coração.

Diáspora é o modo de, múltiplo, o poeta partir ao encontro de todos. Tem a universalidade dos homens, dos lugares e dos tempos em aberto, e a sua voz é uma despida proposta de en­contro. Vejo assim o que resulta do que o José Rui Teixeira escreve. Uma partida que radica no facto de ter sabido acreditar e amar. Diz-se no livro que partimos sempre mais do que chegamos. Talvez porque o regresso nunca é completo, algo de nós se vai disseminando pelos lugares e pelo tempo, mas, por outro lado, algo de nós também é entregue, partilhado. Como algo que por definição se oferece aos outros, como estou em crer que é o grande propósito desta poesia. Este livro é-nos entregue com toda a sua candura e ferida exposta. Aquilo que nos diz respeito a todos, uma candura e alguma ferida exposta.

 

"Diáspora": poesia
José Rui Teixeira

Houve um tempo em que eu desconhecia o medo.
Deus ainda amava os filhos dos homens
quando, anos mais tarde, parou de chover.
Caiu-te um livro das mãos como um presságio.

É verdade que espero ainda o rumor branco
das planícies, a superfície da manhã,
a tua boca como o estio.

...

Caem invariavelmente sobre a superfície
acidentada do outono. Pesam-lhes nas mãos
os cutelos e guardam o futuro em campânulas
como se fosse uma metáfora ou não houvesse
tempo. Mas tu disseste-me: o coração
é um órgão incendiado sobre telhados
de ardósia. Eu apertei a carne contra os ossos,
recolhi pérolas e azulejos no rasto do fogo,
descansei as têmporas sobre as mãos.

...

Amo-te como buganvílias caídas ao redor
das casas ou o luar branco dos caminhos,
ou a substância audível da tua respiração.

...

Lembro-me de líquenes dourados na superfície
do granito, dos sedimentos de súplica
nos teus olhos, do Espírito de Deus
a pairar sobre as águas.
Lembro-me do movimento enfático dos corpos
na iminência do outono, da natureza migratória
do desejo por esses dias, da omissão de algo
que enterrei há muito e ainda assim sangra.

...

Lembro-me da terra seca sob a esperança
que tínhamos nas manhãs de agosto,
dos objetos inertes, suspensos no vestíbulo,
dos estandartes, dos turíbulos, do ar rarefeito;
lembro-me dos peixes dourados por baixo
de Deus, do equilíbrios dos livros
sobre as gavetas onde guardava fósseis
e fotografias; lembro-me do assombro no corredor
quando o silêncio anunciou a tua morte.
Pressenti a noite arqueada no interior das artérias,
trigo caído de fome e solidão sobre a mesa da sala,
anjos a mastigar os ciclames junto à janela
do quarto, como num aquário,
do lado de fora da ideia que temos
de estar no interior habitável dos lugares.

...

Zerbino era desprezível, mas amava Deus como todo o seu coração e com címbalos de bronze louvava sempre o Senhor; trazia-o consigo como cães amarrados às pernas ou pássaros mortos sobre mesas côncavas de fome, mas não suportava o peso de crucifixos.

...

Durante muito tempo errou na periferia de poços e taludes. Cresceram-lhe êmbolos no abdómen como fúschsias na densidade de maio. Durante muito tempo Zerbino fugiu da crueldade de homens piedosos. Amava ainda Deus com todo o seu coração, como se amam cães sem dono ou mulheres silenciosas. Caim matara o justo Abel por esses dias, mas Zerbino desconhecia a ciência circunscrita dos venenos ou a hermenêutica das máscaras.

 

In Diáspora, ed. Cosmorama
20.05.13

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Capa

Diáspora

Autor
José Rui Teixeira

Editora
Cosmorama

Ano
2013

Páginas
204

Preço
15,00 €

ISBN
978-989-8029-52-2

 

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