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Diocese do Funchal: 500 anos de evangelização e cultura

Do vicariato à diocese

A tradição histórica, veiculada por Francisco Alcoforado, anota que a 2 de julho de 1420 João Gonçalves Zarco desembarcou no vale de Machico procedendo, de imediato, à posse da terra em nome do rei, à sua sagração com a primeira missa pelos franciscanos que o acompanhavam.

Em maio do ano seguinte, o mesmo navegador regressou à ilha com três navios e a disposição de proceder ao seu povoamento. De novo o desembarque em Machico e «a primeira cousa que fez foy traçar huma igreja de Invocação de Xpo». Seguiu-se, depois, o reconhecimento da costa para assentamento posterior de colonos.

Todos estes atos foram precedidos da construção de uma igreja ou ermida. No Funchal tivemos as capelas de Santa Catarina e de Nossa Senhora do Calhau, sendo a última considerada pelo autor «prymeyra casa de igreja que se fez na ilha». Mais além, em Câmara de Lobos a do Espírito Santo, na Quinta Grande a de Vera Cruz, nos Canhas a de Santiago, na Estrela (Calheta) a de Nossa Senhora de Estrela.

Tudo isto nos parece indicar que o povoamento da Madeira e a organização da estrutura eclesiástica foram concretizados de acordo com um plano definido, pois Jerónimo Dias Leite refere que o objetivo dos primeiros madeirenses era «pôr em obra a edificação das igrejas e das vilas e lugares e lavrança de terras».

Note-se que no período de 1433 a 1514 as administrações civil e religiosa estavam a cargo do mestre da Ordem de Cristo que, no caso da alçada religiosa, determinara a sua superintendência pelo vigário da vila de Tomar. De acordo com a bula de 1456, as novas áreas atlânticas eram consideradas nullius diocesis, estando dependentes daquele vigário. Era ele que determinava a construção das primeiras igrejas e nomeava os prelados para o serviço religioso.

 

Bispado

O rei concedera o direito de padroado à Ordem de Cristo, integrando na sua alçada em 1433 o arquipélago da Madeira, que depois foi alargada, em 1454, a todos os territórios descobertos, situação confirmada por bula papal de 17 de março de 1456.

O governo espiritual ficou entregue ao vigário de Tomar, sede da Ordem de Cristo, e na condição de nullius diocese, enquanto ao administrador da ordem competia a construção dos templos, nomear os ministros e pagar o seu vencimento. À parte isso, em todas as ilhas se estabeleceram ouvidorias com o objetivo de organizar e exercer governo eclesiástico.

A situação mudou em 1514 com a criação do bispado do Funchal, e depois, em 30 de dezembro de 1551, com o regresso à Coroa do padroado. Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo, através do vigário de Tomar, continuou a superintender o governo eclesiástico das ilhas até que em 12 de junho de 1514, pela bula Pro excellenti, foi criado o bispado do Funchal com jurisdição sobre toda, a área ocupada pelos Portugueses no Atlântico e no Índico. Até este momento todo o serviço episcopal era feito por bispos titulares aí enviados pelo referido vigário, como sucedeu em 1507 e 1508.

Mas o progresso económico e social deste espaço levou à criação, em 1534, de novas dioceses, cujas áreas foram desanexadas do Funchal: isto é, as de Goa, Angra, Santiago e São Tomé. Mais tarde, a 31 de janeiro de 1533, a diocese do Funchal foi elevada à categoria de metropolitana e primaz, englobando «a Madeira e Porto Santo, as ilhas Desertas e Selvagens, aquela parte continental de Africa, que entesta com a diocese de Safi[m] e bem assim as terras do Brasil, tanto as já descobertas, como as que se vierem a descobrir».

Estamos perante uma situação passageira. Além disso, a bula papal não foi expedida do Vaticano, por a Coroa não ter pago, o que coloca a dúvida da existência real do arcebispado do Funchal.

Em 1551, o papa Júlio III revogou a situação, passando o Funchal para simples bispado sufragâneo de Lisboa, que passou a assumir a função de primaz das terras atlânticas, enquanto o de Goa preencherá funções idênticas para as terras orientais. Apenas em 1560 lhe foi associado o Castelo de Arguim.

A construção do templo que serviu de sede à nova diocese não foi rápida: o duque ordenou-a em 1485 mas as obras só se iniciaram em 1493, e ainda continuavam em 1515, sendo o novo templo sagrado no ano imediato. Estavam assim definidas as condições que haviam de corporizar a estrutura institucional da nova dioce­se que iria deparar-se, no entanto, com algumas dificuldades.

O século XVI é definido em termos de estrutura religiosa da Cristandade ocidental como um momento de ativo protagonismo. O absentismo era evidente na diocese do Funchal. Os bispos eleitos recusavam-se a assumir o governo do episcopado, pre­erindo a vida mundana da corte. Os primeiros nomeados para as dioceses insulares nunca pisaram o solo e daqueles que se fixaram foram poucos os que procederam à indispensável visita às paróquias.

O primeiro bispo a pisar o solo da diocese foi D. Ambrósio Brandão, em nome do arcebispo D. Martinho de Portugal, que aí esteve em 1538 acompanhado de dois visitadores (Jordão Jorge e Álvaro Dias). Foi a partir daí que se reorganizaram as paróquias, estabelecendo-se normas rigorosas para a sua fixação nas igrejas e moralização dos atos através dos livros de registo. Depois da sua morte, em 1547, a sé permaneceu vaga até 1551.

Neste período esteve no Funchal o bispo D. Sarello, das Canárias, que deu «ordens a muitas pessoas e correu a ilha toda crismando comummente a todos os que disso tinham necessidade». E, em 1552, foi provido D. Frei Gaspar do Casal, que não residiu na ilha, sendo o facto mais saliente da sua ação o ter participado no Concílio de Trento.

O sucessor, D. Jorge de Lemos, nomeado em 1556, foi quem, na verdade, deu forma à aplicação das ordens do concílio, sendo seguido depois por D. Jerónimo Barreto (1574-1585) e D. Luís de Figueiredo de Lemos (1586-1608), considerados os verdadeiros obreiros desta reforma na Madeira.

A reorganização das instituições religiosas e do ritual religioso, iniciada em 1578 por D. Jerónimo Barreto, teve continuidade com D. Luís Figueiredo de Lemos (1597, 1602), Frei Lourenço de Távora (1615), D. Fernando Jerónimo (1622, 1629, 1634), D. Frei António da Silva Teles e D. Frei José de Santa Maria (1610).

Todos estes prelados realizaram um sínodo onde foram aprovadas diversas constituições, mas apenas se publicaram as de 1578 e 1597 e conhecem-se as de outro, manuscritas, tendo-se perdido as restantes. Estas medidas correspondem ao apelo da própria estrutura da Igreja e dos leigos que em 1546, através da câmara, fizeram ouvir a sua voz de descontentamento junto da Coroa.

 

Paróquias

As sedes das capitanias, em data que desconhecemos, tiveram o primeiro vigário; depois, o progresso e a consequente pressão do movimento demográfico conduziram ao aparecimento de novas igrejas e paróquias. O templo religioso é o ponto de divergência do processo de povoamento e foi em torno dele que surgiram as primeiras habitações de madeira para dar abrigo aos colonos.

De acordo com a doação régia de 26 de setembro de 1433 o Infante, como mestre da Ordem de Cristo, recebeu também a capacidade de intervenção na espiritualidade do novo espaço. O vigário de Tomar, local sede da ordem, era quem, em nome do Infante, estabelecia a estrutura religiosa, provendo os seus ministros. Apenas a arrecadação dos dízimos eclesiásticos permanecia a cargo do almoxarife do Infante.

Para cada capitania foi nomeado um vigário, que dependia diretamente do de Tomar, tendo como função administrar a espiritualidade no recinto da sua jurisdição. Destes conhece-se o nome dos de Machico e Funchal, respetivamente Frei João Garcia e João Gonçalves.

O próprio Infante preocupou-se com a administração religiosa do arquipélago, ordenando a construção de igrejas e capelas, conforme se deduz do seu testamento de 1460. Parece que a situação perdurou por todo o governo do infante D. Henrique, uma vez que em 1461 uma das exigências dos moradores do Funchal era o aumento do clero, de modo a que fosse assegurado o serviço religioso aos moradores de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Arco da Calheta. (...)

As primeiras paróquias surgem no século xv a partir dos principais núcleos de fixação litoral - Câmara de Lobos, Calheta, Funchal, Machico, Ponta do Sol e Ribeira Brava. E destas freguesias se retiraram outras na primeira metade da centúria seguinte: Cam­panário, Estreito de Câmara de Lobos, Faial, Gaula, Ponta do Pargo, Santana e Santo António, secundadas na década de 70 por novas: Porto da Cruz, Canhas, Madalena do Mar, São Roque e São Martinho.

Nos séculos posteriores são reduzidas as alterações a este quadro, com as paróquias de Boaventura (1733), São Roque do Faial (1746), Curral das Freiras (1790), Quinta Grande (1820).

A grande mudança ocorreu já no século XX, em 1954, com a criação da paróquia do Imaculado Coração de Maria e depois em 1960 com mais 51 novas paróquias, por iniciativa de D. Frei David de Sousa.

 

Conventos

Não agradou ao Infante a pretensão dos Franciscanos, oriundos das Canárias, de se introduzirem na ilha, ficando subordinados ao vigário da sua província, tal como o estabelecia a letra dum ad prellara do papa Nicolau V em 10 de dezembro de 1450, entendida como uma ingerência nos direitos adquiridos pela Ordem de Cristo e uma afronta, tendo em conta o empenho do Infante na conquista de algumas das Canárias.

Alguns desentendimentos destes com o vigário de Tomar conduziram a que abandonassem a Madeira em 1459, fixando-se em Xabregas. Para colmatar a sua ausência, o papa Pio II concedeu em 1462 licença aos frades da Regra de São Jerónimo para fundar um mosteiro na Madeira, o que não teve efeito.

Os Franciscanos regressaram em 1474 ao seu cenóbio de São João da Ribeira e acabaram por adquirir uma posição relevante na ilha. Mais tarde, em 1485, retirou-se na ilha Frei Pedro da Guarda, criando o pequeno Eremitério de São Bernardino em Câmara de Lobos.

Este franciscano, conhecido como o santo servo de Deus, ficou célebre na ilha pelas suas virtudes e milagres, o que motivou um culto arreigado às populações de Câmara de Lobos, que se manteve até 1835, ano em que foi proibido.

A ordem seráfica firmou-se na vida religiosa madeirense criando conventos, cenóbios ou oratórios no Funchal (1480), Câmara de Lobos (1450), Santa Cruz (1527), Ribeira Brava (1724), Calheta (1670) e Machico (1462). No Funchal relevam-se o Convento de São Francisco do Funchal e o de Santa Clara. O primeiro foi construído a partir de 1474, enquanto o segundo, feminino, foi erguido por iniciativa de João Gonçalves Câmara, segundo capitão do Funchal (...).

Da mesma ordem é, registe-se, o Convento de Nossa Senhora da Piedade, fundado por legado estabelecido no testamento (1518) de Urbano Lomelino numa granja sua, situada no local onde hoje se encontra o aeroporto do Funchal. Idêntico ideal moveu o cónego Henrique Calaça de Viveiros, que em 1650 ergueu o Convento de Nossa Senhora da Encarnação em honra da restauração da independência. Este foi o segundo convento feminino da regra franciscana de Santa Clara. Mais tarde, em 1654, Gaspar Berenguer de Andrade fundou o das Mercês. No Funchal tivemos ainda o Hospício de Nossa Senhora do Monte do Carmo (1562) e o Recolhimento do Bom Jesus da Ribeira (1655).

Os conventos são uma presença assídua na história da Madeira, persistindo ainda hoje alguns de pé. A sua pujança é testemunhada, quer através da dimensão económica das suas quintas, resultantes de dotes e legados, quer pela adesão das principais famílias madeirenses, onde foram recrutados muitos dos noviços e noviças.

A revolução liberal e a República representaram para as referidas ordens um duro golpe. Assim, em 1834, o Estado tomou conta de todos os edifícios e património, situação que só foi alterada em 1896 para voltar à primeira forma com a República, alterada com o Estado Novo.

Todavia, o futuro de muitos destes símbolos de clausura estava irremediavelmente traçado pela destruição: o Convento de São Francisco foi demolido em 1866 para dar lugar ao Jardim e Teatro Municipal, o de Nossa Senhora da Encarnação deu lugar em 1905 ao novo seminário e o das Mercês foi em parte demolido em 1911 para em seu lugar se construir o Auxílio Maternal. De pé continua ainda o imponente claustro do Convento de Santa Clara. (...)

 

 

Formas de devoção e piedade

Tal como refere Henrique Henriques de Noronha, as imagens «afervoram a devoção dos moradores», sendo por isso neste domínio que se encontram aspetos particulares da religiosidade madeirense.

Neste caso estão as chamadas imagens milagrosas que acolhem à sua volta inúmeros devotos e são sempre motivo de súplica em momentos de aflição. Nossa Senhora do Monte assume aqui um lugar cimeiro.

A par disso insiste-se numa devoção institucionalizada pelo município, resultante da peste que assolou a ilha no primeiro quartel do século XVI. A devoção a São Sebastião, São Roque e São Tiago Menor é fruto disso, mantendo-se a última até à atualidade.

As romagens completam esta exteriorização da religiosidade popular, ganhando protagonismo diverso ao longo dos séculos. A mais antiga é a de Nossa Senhora do Faial ou da Natividade, a 8 de setembro, que se perdeu no tempo. Ainda de vetusta tradição são as romagens do Bom Jesus da Ponta Delgada e de Nossa Senhora do Monte, a que se deverá associar o culto a Nossa Senhora do Rosário, do Loreto e dos Milagres.

O sacro e o profano aliavam-se na definição de um calendário ritual em toda a ilha. A Contra-Reforma, a Inquisição e, mais perto de nós, o Vaticano II, tentaram apagar sem sucesso muitas das crenças populares. Por isso, a solução foi tentar impor critérios e práticas de acomodação.

Neste contexto são de destacar as constituições sinodais funchalenses do século XVI que consideram a superstição como sinónimo de feitiçaria, sortilégios, agoiros, benzedura, idolatria e pacto com o Demónio. Nas constituições sinodais dos séculos XVI e XVII é manifesta essa atitude de oposição, sendo condenadas quaisquer manifestações de sortilégio, agoiro, benzedura.

Em 1618 o inquisidor de visita à ilha viu-se confrontado com generalizada prática supersticiosa, tendo condenado 13 mulheres por feitiçaria. O facto mais evidente é que todos tinham consciência de que estas situações eram proibidas. O conhecimento desta realidade passa mais pelas visitas paroquiais e as consequentes recomendações dos prelados do que pelas orientações definidas pelas constituições sinodais. Nestas é possível rastrear a forma de expressão da religiosidade popular e a intervenção do bispo no sentido da sua erradicação. Estamos perante um campo em aberto que aguarda por uma pesquisa aturada nos arquivos paroquiais.

Acabar com esta situação só seria possível através do ensino da doutrina. Neste caso são de salientar as recomendações ao ensino aos gentios, expressa na intervenção face aos negros acolhidos na ilha. A primeira recomendação neste sentido foi expressa em 1592 pelo bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, aquando da visita à paróquia da Fajã da Ovelha. Ai refere-se a presença no bispado de inúmeros escravos gentios que, por isso mesmo, deveriam merecer a atenção dos vigários. Deste modo as recomendações aos curas e párocos são no sentido de um maior cuidado, fazendo com que os escravos saibam «a doutrina christam e ao menos a oração Pater Noster e Ave Maria, os artigos de fé e os mandamentos da Lei de Deus». O facto de alguns manifestarem o desejo de professar a religião cristã era o indicativo seguro dos cuidados a ter e dos frutos da sua doutrinação.

Aos fregueses eram também atribuídas responsabilidades neste âmbito, ordenando-se que aos escravos de mais de sete anos «lhes fação com muita diligência ensinar a doutrina». Por outro lado recomendava-se aos párocos que se informassem sobre os escravos da freguesia «e achando que não sabem o Pater Noster e Ave Maria, os artigos de fé e mandamentos de lei de Deus proceda(m) contra seus senhores pera que ensinem ou fação ensinar a dita doutrina, e os mandem a igreja aprendella ao tempo que a ensinarem».

Esta insistência da Igreja na doutrinação e prática religiosa dos escravos esbarrava com inúmeras resistências tanto da parte dos proprietários como dos próprios escravos, que se mantinham arraigados aos rituais africanos, ou islamizados. Mesmo assim, na Madeira foi reduzido o número de refratários ao catolicismo, tal como nos testemunham as poucas denunciações feitas, aquando das visitas do Santo Oficio à Madeira, em 1591 e 1618.

Os mais evidentes aferidores da religiosidade dos Madeirenses são, sem dúvida, os testemunhos exarados, primeiro nos diversos livros das visitações e depois nos processos perante o Santo Oficio. A Inquisição exercia a atividade através do Tribunal de Lisboa, a quem pertencia todo o espaço atlântico. A ação do tribunal nestas paragens não era permanente e fazia-se através de visitadores aí enviados.

Na Madeira e nos Açores realizaram-se apenas duas visitas: em 1591-1593 por Jerónimo Teixeira Cabral e em 1618-1619 por Francisco Cardoso Toméo. Entretanto, no intervalo de tempo entre as visitas, o tribunal fazia-se representar pelo bispo, clero, reitores do Colégio dos Jesuítas, «familiares» e comissários do Santo Oficio.

Nas ilhas é manifesta a conivência das autoridades com a presença da comunidade judaica, o que poderá resultar das facilidades iniciais à sua fixação. Deste modo, o tribunal interveio apenas nas primeiras ilhas levando a tribunal alguns judeus, mas poucos, a avaliar pela comunidade aí existente e insistente permanência. (...)

A presença da comunidade judaica era evidente. Os judeus, maioritariamente comerciantes, estavam ligados, desde o início, ao sistema de trocas nas ilhas, sendo os principais animadores do relacionamento e comércio a longa distância.

A criação do Tribunal do Santo Oficio em Lisboa conduziu a que avançassem no Atlântico: primeiro nas ilhas e depois no Brasil. Tal diáspora fez-se de acordo com os vetores da economia atlântica, pelo que deixavam atrás um rasto evidente na sua rede de negócios. O açúcar foi sem dúvida um dos principais móbiles da sua atividade, quer nas ilhas, quer no Brasil.

A par disso, o relacionamento destes espaços com os portos nórdicos conduziu a uma maior permeabilidade às ideias protestantes, o que gerou inúmeros cuidados por parte do clero e do Santo Oficio. Analisadas as denúncias e confissões de madeirenses e açorianos perante os inquisidores conclui-se por uma incapaz intervenção do clero no ensino da doutrina aos leigos. A maioria dos réus é resultado da ignorância dos cânones católicos

A mesma ideia é-nos transmitida através das visitas paroquiais, disponíveis e já divulgadas. Deste modo, poder-se-á afirmar que as orientações tridentinas [Concílio de Trento, 1545-1563] tardaram em chegar às ilhas e que a inércia e o fraco nivel cultural do clero terão sido os principais responsáveis disso.

Em 1689 é a vez de um protestante britânico, John Ovington, de visita à Madeira, apontar o estado de formação e comportamento social do clero e leigos. O primeiro refere que os Jesuítas «apenas um em três com quem conversei compreendia o latim», enquanto os cónegos da sé «são hábeis na sua capacidade de inventar razões para defenderem a sua indolência» e «todos fingem um grande ardor na sua fé».

A presença da comunidade britânica era evidente, mas nunca foi alvo de qualquer perseguição por questões religiosas, a exceção é a complacência e discrição de todos. (...)

 

Ensino e cultura

Até às reformas pombalinas o ensino manteve-se na alçada da Igreja, exercendo aqui a Companhia de Jesus uma ação relevante. Deste modo, onde estavam os Jesuítas poderíamos contar com presença de escolas organizadas e um elevado grau de alfabetização de certos grupos, o que contribuiu para elevar o ambiente cultural, propiciador do aparecimento de importantes vultos das letras.

Os Jesuítas surgem também na Madeira, criando na cidade um dos colégios mais importantes, que abriu as suas portas a 6 de maio de 1570 e se manteve até 1759, altura em que os Jesuítas foram expulsos da ilha para nunca mais regressarem.

Os colégios dos Jesuítas permitiram a continuidade dos estudos àqueles que haviam dado os primeiros passos nas escolas de paróquia e abriu-lhes a possibilidade de cursarem nas universidades do reino e estrangeiras.

As bases do ensino paroquial e as condições económicas da ilha foram responsáveis pela formação desta elite cultural, inevitavelmente ligada às principais famílias madeirenses.

A opulência atingida com o comércio do açúcar permitiu que alguns dos filhos desses grandes proprietários de canaviais pudessem cursar em Coimbra, Salamanca ou Paris. Daqui resultou um grupo numeroso de literatos, na sua maioria jesuítas, que firmou uma posição de relevo no panorama nacional. São exemplo o padre Manuel Alvares (1526-1583), Leão Henriques, Frei Remígio de Assunção, Sebastião de Moraes, Jerónimo Dias Leite e Martim e Luís Gonçalves da Câmara.

O padre Manuel Álvares, natural da Ribeira Brava, ficou célebre pela Gramática latina (1598), que teve muitas edições e serviu por mais de duzentos anos de manual para o ensino do latim. Esta presença do clero irradiou até à produção literária madeirense.

No caso da história é de assinalar o Descobrimento da ilha da Madeira e discurso da vida e feitos dos capitães da dita ilha de Jerónimo Dias Leite, o texto de Manuel Constantino, publicado em 1598.

Na segunda metade do século XIX a Igreja serve-se da imprensa para a sua afirmação e expressão doutrinal. Todavia, a fruição por parte da Igreja deste meio faz-se mais por meio de folhetos volantes e pela imprensa.

Certamente que o facto mais evidente é a presença de elementos do clero na criação de alguns dos mais importantes periódicos da ilha: o padre João Crisóstomo Espindola de Macedo fundou o Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei (1823-1824); em 1876 o cónego Alberto César de Oliveira surge com o primeiro jornal diário da Madeira, o Diário de Notícias; e o Jornal, fundado em 1906 pelo cónego António Manuel Pereira Ribeiro, que desde 1932 passou a chamar-se Jornal da Madeira, hoje propriedade da diocese do Funchal. É um momento importante da história da Igreja madeirense que está ainda por estudar.

 

Arte religiosa

As riquezas geradas pelo comércio do açúcar propiciaram à Coroa e aos Madeirenses os dinheiros necessários para erguer templos sumptuosos e recheá-los de ricas pinturas flamengas e alfaias religiosas em ouro e prata.

Aliás, a riqueza da arte sacra madeirense e a monumentalidade da arquitetura religiosa nos séculos xv e XVI estão em relação direta com esta realidade, sendo testemunho o recheio do Museu de Arte Sacra no Funchal

 

Assistência

Outra das vertentes que pautou a intervenção da Igreja nas ilhas foi a prestação de serviços de assistência aos cristãos e cativos. As cidades portuárias ficaram servidas de hospitais, que davam o necessário apoio aos marinheiros e demais gentes de passagem.

A par disso, os problemas resultantes da fome, mendicidade e peste levaram à criação de inúmeras instituições de beneficência por iniciativa de particulares, que, depois, passaram à alçada da Igreja.

A história testemunha o empenho de Zarco em fazer construir em 1454 um hospital junto à Capela de São Paulo, mas não sabemos se o seu desejo foi por diante. A isto juntam-se referências a outros dois hospitais também de iniciativa de particulares, sendo um na Rua de Boa Viagem.

Entretanto, tivemos as mercearias, sendo a do Funchal fundada por Constança Rodrigues, mulher de João Gonçalves Zarco, em 1484.

A partir de 1485, com a bula de Inocêncio VIII ln iunctum nobis, a estrutura assistencial ganha uma nova forma. De acordo com esse espírito a Coroa criou em 1498 o hospital de Lisboa, que veio congregar todos os menores aí existentes.

O mesmo espírito foi seguido para todas as vilas do reino, por autorização papal de 23 de outubro de 1501 e expresso na carta régia de 4 de maio de 1507. As ordenações. régias definiam a sua superintência aos bispos. E neste contexto que surgem idênticas instituições nas ilhas.

Na Madeira, primeiro o Funchal (1507), e depois também Machico, Calheta, Santa Cruz e Porto Santo tiveram um hospital da Misericórdia. A função assistencial completa-se com as confrarias, autênticas associações de solidariedade social e espiritual, sendo os irmãos recrutados pela sua situação socioprofissional ou pela sua devoção ao santo patrono. (...)

 

 

 

A diocese do Funchal foi criada a 12 de junho de 1514.

 

Alberto Vieira
In Dicionário de História Religiosa de Portugal, ed. Círculo de Leitores
12.06.14

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