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Divina paz

Divina paz

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Crendo profundamente na grandeza da misericórdia divina, que não depende reativamente de coisa alguma, mas se consubstancia em toda a relação criadora entre Deus e o mundo, o Papa Francisco publicou uma luminosa mensagem para o dia da paz, ano de 2018.

Nesta quinquagésima primeira mensagem, incorpora o espírito de vontade de bem de todos os seus predecessores, incluindo João XIII, anterior à existência destas mensagens, mas inspirador do movimento cordial que a elas conduziu.

A riqueza do que Francisco põe neste seu texto ultrapassa o que pode ser aqui devidamente refletido, pelo que se vai apenas apreciar um pequeno excerto, todavia fundamental.

Diz assim o Papa, ainda no primeiro parágrafo: «Almejo paz a todo o homem, mulher, menino e menina, e rezo para que a imagem e semelhança de Deus em cada pessoa nos permitam reconhecer-nos mutuamente como dons sagrados com uma dignidade imensa.».

Como é patente em todos os escritos publicados desde que assumiu o pontificado da Igreja Católica, Francisco manifesta claramente quer o seu desejo quer a sua vontade de paz. O termo português «almejo» faz jus à grandeza do que está em causa. Não se trata apenas de um desejo, ainda que profundo ao ponto de se confundir com o próprio desejo de ser de quem o patenteia, isto é, não é apenas a dinâmica mais profunda de ser que Francisco publica como algo de fundamental em sua pessoa, mas, transcendendo a pura passionalidade do desejo, Francisco manifesta também o ato de querer a paz.

Este ato é a vontade de paz.

Para Francisco, a paz assume a dupla valência ontológica e onto-antropológica de uma passionalidade profunda e de uma ação, de uma prática ética e política no sentido, longamente tratado nesta mensagem, da vida segundo um modo não-violento.



A paz, como qualquer outra forma de bem, apenas se consegue se se partir de um desejo de esse bem para chegar a um ato no sentido da realização de esse bem



Torna-se, assim, claro que não nos basta, como a muitos, desejar a paz, isto é, ter uma posição passiva relativamente à questão, esperando que, magicamente, a violência desapareça, pois o desejo simples é absolutamente ineficaz, quer dizer, não opera, não produz ou usa mediações. Ora, o pensamento mágico é o que espera realizações sem mediações, algo de ontologicamente impossível.

Para evitar a magia, o ser humano, por exemplo na questão da paz, tem de, para além de ter ou ser «desejo de paz», querer a paz. E só se quer algo quando se realiza esse algo, pelo menos tentativamente, ainda que se falhe, mas, ainda que falhando, entrando em ação, em ato. Sem este ato, não há senão desejo e, apenas como desejo, o ser humano não passa de algo meramente passivo, como se não tivesse ser próprio.

Deste modo, a paz, como qualquer outra forma de bem, apenas se consegue se se partir de um desejo de esse bem para chegar a um ato no sentido da realização de esse bem.

Na realização ativa do bem, o ser humano auto-constrói-se propriamente como ser humano; ser humano em ato.

Mas o Papa, precisamente como concretização ativa do sentido da paz, não se limita a desejá-la e a querê-la apenas para algo vago como «a humanidade»: é ao concreto de isso que constitui a humanidade que liga o seu desejo e ato: «a todo o homem, mulher, menino e menina».



A sacralidade religiosa de cada ser humano como dom de Deus recobre a sacralidade laica de cada ser humano como dom absoluto de bem para todos os outros, como sua incontornável e insubstituível condição de possibilidade de ser



Franciscanamente, mas porque evangelicamente, os votos de Francisco abraçam cada pessoa, sem exceção, como o restante texto da mensagem se encarrega de demonstrar. Francisco alarga esta conceção unitária e universal da humanidade a toda a manifestação cultural, incluindo as próprias religiões, que, como caminhos para o bem, percebe isentas de violência. Esta última é uma perversão, nunca uma estrutura positiva.

O Papa fundamenta a sua posição na assunção da universalidade de toda a individualidade humana, eliminando toda a perversidade antropológica e política dos etnocentrismos, como presença em cada ser humano da marca criatural, que liberta, pois deifica sem confusão cada ser humano, deifica-o como pessoa, porque ser pessoa é ter no mais fundo de seu ser «a imagem e semelhança de Deus». É esta comum pertença filial-criatural que faz de cada ser humano e de todos os seres humanos uma comunidade «católica», «universal», de entidades todas elas dotadas de uma imensa dignidade» própria, irredutível.

Mas é na inteligência humana que Francisco põe a sua humana esperança, sabendo que tal mesma inteligência é, também ela, dom de Deus, e sua imagem e semelhança: é através desta inteligência que podemos reconhecer-nos, e de forma universalmente mútua, como «dons sagrados».

Cada ser humano é um dom sagrado.

No entanto, esta possível intuição não é apenas algo de tipo religioso, antes algo paradigmaticamente antropológico: não somos «dons sagrados» apenas como «dons de Deus», mas somos dons sagrados como «coisa humana», como entes próprios uns para os outros, e sem a comum presença dos quais não é possível haver humanidade, isto é, não é possível haver quaisquer seres humanos.

Deste modo, a sacralidade religiosa de cada ser humano como dom de Deus recobre a sacralidade laica de cada ser humano como dom absoluto de bem para todos os outros, como sua incontornável e insubstituível condição de possibilidade de ser.

É esta condição ontológica e antropológica, mas também fundamentalmente política que os violentos não compreendem, numa forma de justiça poética que, em suprema ironia, ameaça resolver o problema da ausência de paz através da ausência dos agentes da violência, os seres humanos.

Esperemos que os votos santos de Francisco se concretizem.



 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 02.01.2018 | Atualizado em 25.04.2023

 

 
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