Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

Poesia: Treze palavras para Emily Dickinson

Imagem Emily Dickinson | D.R.

Poesia: Treze palavras para Emily Dickinson

Uma vida passada inteiramente numa grande casa de New England, uma existência pobre de acontecimentos exteriores, a de Emily Dickinson, poetisa nascida em Amherst, Massachussets, EUA, em 1830; mas uma produção de cerca de 1800 poesias testemunha a intensidade de uma alma vizinha do infinito.

Num livro intitulado "A ceia do coração. Treze palavras para Emily Dickinson" ("La cena del cuore. Tredici parole per Emily Dickinson", ed. rueBallu, 2015, 112 pp.), a escritora e tradutora italiana Beatrice Masini introduz a figura e a obra da autora norte-americana a um público dos oito anos em diante.

Este propósito é realizado através de um percurso constituído por treze etapas significativas, que individuam a experiência humana e poética de uma jovem artista ignorada pelos seus contemporâneos. O volume é acompanhado por desenhos evocativos de Pia Valentinis, ilustradora várias vezes vencedora do Prémio Andersen.

A primeira palavra escolhida por Beatrice Masini é «casa». Não podia ser outra, visto que Emily Dickinson passa a maior parte da sua vida no seu quarto, sem nunca sair da Dickinson Homestead, a não ser para descer ao jardim e eventualmente atravessá-lo para chegar à casa ao lado, do amado irmão Austin e da adorada cunhada Susan.

Todavia, não obstante a banalidade de uma existência segregada, inativa, aparentemente privada de qualquer estímulo individual, os seus versos exprimem um sentido vital poderoso e crescente.

Em lugares infinitésimos, como o seu quarto, cheio de folhas e folhinhas repletas de anotações, ou o jardim cheio de flores e abelhas, Emily contemplava uma beleza que desvelava infinito e transcendência. Aquele que podia parecer o pequeno mundo restrito da classe média americana tornava-se, restituído pelo olhar de Emily, um microcosmo no qual se dialoga com a beleza da natureza e viver relações humanas de extraordinária intensidade, ainda que em grande parte imaginárias.

No capítulo 8, intitulado «amor», Beatrice Masini, com simplicidade e delicadeza, define o amor experimentado por Emily como paixão, chama, incandescência; contudo, este sentimento nunca encontrou saídas concretas, mas permanece confinado no seu quarto, no seu mundo de papel.

Em 1855, Emily Dickinson encontrou, dele se enamorando, o reverendo Charles Wadsworth, pastor da Igreja presbiteriana, casado, com filhos. Este amor permaneceu no plano do ideal, representando durante longo tempo um ponto de referência da sua inspiração poética. Basta pensar que em 1862, com 32 anos, num só ano, Emily compõe 366 poesias. Mas os críticos da época, ainda que tocados pela sua personalidade, continuam desconcertados pelos seus versos e julgam-nos negativamente.

E não podia faltar neste volume o capítulo dedicado à palavra «sucesso»: um sucesso que nunca chegou, causando amargura e desilusão, até à drástica decisão de nunca mais publicar.

Ainda em 1862, a Thomas Higginson, crítico literário, Emily escreve: «O senhor está demasiado ocupado para me dizer se os meus versos têm vida, se os meus versos respiram?». Mas os seus versos, capazes de acender lâmpadas e destilar significados, estavam totalmente fora dos esquemas do tempo.

Daquele ano em diante acentuou-se a reclusão e Emily começou a vestir exclusivamente um hábito branco, como a querer simbolizar o seu voluntário retiro num mundo exclusivo da alma, um mundo dominado só por aquela procura do essencial que emerge claramente em toda a sua poesia.

Após quinze anos de isolamento, Emily sairá de casa apenas para se deslocar aos Evergreen, a casa do irmão Austin, depois da morte do seu amantíssimo neto Gilbert. Foi a sua última saída.

A sua poesia está intricadamente ligada à meditação sobre a morte, a que é dedicado o penúltimo capítulo deste livro. Para Emily, a morte era uma experiência verdadeira e concreta, devido ao desaparecimento dos seus pais, do neto, de vários conhecidos, do reverendo Wadsworth, de uma cara amiga que sempre a tinha incentivado, única entre tantas, a publicar os seus versos.

A esta experiência, esmagadora e terrível, reage a sua poesia, dando voz à esperança numa vida posterior e tocando assim o nervo de uma complexa relação com Deus, intuída de modo natural, para além da pertença a uma religião específica.

A viagem da alma de Emily Dickinson, com efeito, encontra em Deus, ainda se por vezes indiretamente, o interlocutor principal, o hóspede predileto a convidar para aquela «ceia do coração», que de tudo se quer alimentar para permanecer vivo. Porque, como recitam os versos de "Eu vivo na possibilidade", uma das suas poesias mais belas, «a minha vida é esta:/ alargar as minhas pequenas mãos/ para acolher o Paraíso».

Em Portugal, a obra de Emily Dickinson (m. 1886), analisada na tese de doutoramento da poetisa Ana Luísa Amaral ("Emily Dickinson: uma poética de excesso". 1995), pode ser conhecida, por exemplo, no livro "Duzentos poemas" (ed. Relógio d'Água, 2014, 496 pp.).

 

Elena Buia Rutt
In "L'Osservatore Romano", 12-13.10.2015
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 25.10.2015

 

 
Imagem Emily Dickinson | D.R.
Aquele que podia parecer o pequeno mundo restrito da classe média americana tornava-se, restituído pelo olhar de Emily, um microcosmo no qual se dialoga com a beleza da natureza e viver relações humanas de extraordinária intensidade
Ainda em 1862, a Thomas Higginson, crítico literário, Emily escreve: «O senhor está demasiado ocupado para me dizer se os meus versos têm vida, se os meus versos respiram?». Mas os seus versos, capazes de acender lâmpadas e destilar significados, estavam totalmente fora dos esquemas do tempo
A viagem da alma de Emily Dickinson, com efeito, encontra em Deus, ainda se por vezes indiretamente, o interlocutor principal, o hóspede predileto a convidar para aquela «ceia do coração»
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Teologia e beleza
Impressão digital
Pedras angulares
Paisagens
Umbrais
Evangelho
Vídeos