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Fátima: Hoje há mais beleza, mas leitura científica e cultural continua presa ao passado

Fátima: Hoje há mais beleza, mas leitura científica e cultural continua presa ao passado

Imagem Painel de Marko Ivan Rupnik (det.) | Basílica da Santíssima Trindade, Fátima | ribeiroantonio/Bigstock.com

«Se, provavelmente, Saramago continua a ter razão, e a experiência do peregrino em Fátima não é a de alguém ferido e arrebatado pela beleza, o estado das coisas já não é exatamente o mesmo.»

É com estas palavras, publicadas no "Expresso" de hoje, que Alfredo Teixeira e José Tolentino Mendonça sintetizam a mudança estética e artística operada em Fátima nos últimos anos.

«No que respeita ao santuário, é reconhecer que a inauguração da nova Basílica dedicada à Santíssima Trindade, no ano de 2007, marcam, sem erradicar fragilidades persistentes, uma nova etapa», escrevem os membros do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa.

A nova basílica, do grego Alexandros Tombazis, «tem uma vocação arquitetónica indiscutível, e abre-se à colaboração de artistas de primeiro plano para a parte iconográfica, com destaque para a magnífica cruz de aço, que está no exterior, da autoria do escultor alemão Robert Schad.



Continuam a faltar biografias de referência dos videntes, bem como estudos nas áreas da antropologia, etnografia, religião e teologia; «igual lamento se estende aos domínios literários e vocacionais»



São igualmente destacados os azulejos sobre os apóstolos Pedro e Paulo com desenho de Álvaro Siza, o painel em terracora dourada construído pela equipa do esloveno Marko Ivan Rupnik e a porta principal e os painéis alusivos aos mistérios do Rosário, de Pedro Calapez.

No campo do património imaterial, tem havido «uma atenção cuidada e até invulgar, se o confrontarmos com aquilo que é o panorama do país», com o envolvimento de compositores como Arvo Pärt, James MacMillan, Eurico Carrapatoso - prémio Árvore da Vida-Padre Manuel Antunes - e João Pedro Oliveira.

 

Interpretar Fátima

O "boom" editorial sobre Fátima que tem ocorrido nos últimos meses, ainda que «incorrendo em muita repetição», desempenha «um contributo importante até porque o fenómeno de Fátima tem crescido nestas décadas muito desacompanhado por parte do mundo universitário e cultural português».

«Há uma espécie de reserva intelectual não dita, que é cada vez mais incompreensível, pois Fátima posiciona-se como um observatório precioso da modernidade, mais interessante do que aquilo que velhos enfoques e estereótipos captam», observam Alfredo Teixeira e Tolentino Mendonça.



«Documento escrito à mão por uma mulher quase analfabeta, produzido em grande medida para corresponder a interrogatórios de várias proveniências, mas expressando uma inteligência e um timbre profético notáveis, mesmo no que tem de confuso, lacunar, fragmentário, mimético e dispersivo»



Por seu lado, os serviços do santuário têm «concentrado esforços» na documentação crítica, composta até agora por 14 tomos e mais de oito mil páginas, «o que é uma tarefa morosa e decisiva, nomeadamente pelo que fica aberto ao trabalho de futuros investigadores», a par da realização de congressos e publicação de atas.

Mas, consideram os autores, continuam a faltar biografias de referência dos videntes, bem como estudos nas áreas da antropologia, etnografia, religião e teologia; «igual lamento se estende aos domínios literários e vocacionais», acrescentam.

Um dos «títulos basilares» para interpretar as aparições é constituído pelas memórias da vidente Lúcia de Jesus Santos (1907-2005), «já que a ela se deve a fixação oral e escrita do conteúdo das visões»: «Na sua estranheza, é um dos grandes livros do século XX».

«Documento escrito à mão por uma mulher quase analfabeta, produzido em grande medida para corresponder a interrogatórios de várias proveniências, mas expressando uma inteligência e um timbre profético notáveis, mesmo no que tem de confuso, lacunar, fragmentário, mimético e dispersivo», consideram os professores da Faculdade de Teologia.



Fátima é «lugar de convergência de três traços determinantes no imaginário nacional: a estreita relação com uma figura materna de proteção divina», «o sentido messiânico de uma nação portuguesa com um papel singular no desígnio de universalização da cristandade» e a «valorização de um sentido religioso de salvação»



Outro instrumento «fundamental» para a abordagem da mensagem de Fátima é o "Comentário Teológico" assinado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, na qualidade de responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé.

«Um sumário das ideais presentes neste texto, a quase vinte anos da sua publicação, pode ainda surpreender muita gente, pois purifica o discurso oficial de um devocionismo sempre pronto a tombar para o lado da crendice e do maravilhoso», referem Alfredo Teixeira e Tolentino Mendonça, que enunciam o documento, «telegraficamente», em cinco pontos.

O texto do agora papa emérito Bento XVI avizinha-se «daquela que havia sido já a conclusão de José Saramago, em 1995: "Só a fé poderá salvar Fátima": Isto é, o que Fátima foi desde o início, e nestes cem anos se tem ampliado, é a oferta de uma visão crente da história e a criatividade com que isso se traduz nas trajetórias singulares, onde um extraordinário potencial de transformação se ativa. Interessa talvez, por isso, observar a fé de Fátima com outros olhos».

 

Fátima antes e agora

O artigo cita o historiador António Matos Ferreira, para quem Fátima é «lugar de convergência de três traços determinantes no imaginário nacional: a estreita relação com uma figura materna de proteção divina», «o sentido messiânico de uma nação portuguesa com um papel singular no desígnio de universalização da cristandade» e a «valorização de um sentido religioso de salvação, em que o mundo se vê marcado pelo pecado, apelando à necessidade de reparação».



Fátima se tornou «um excelente observatório» para um «choque de paradigmas» entre dos modelos de religiosidade, a «estável do "praticante regular"» e a «modular do "crente itinerante"», que todavia «não existem em estado puro» mas «misturam-se na trajetórias individuais» e em espaços como o santuário



A integração «de algumas das práticas mais centrais no repertório devocional português, como o rosário, a adoração eucarística e a peregrinação», a concentração numa mensagem, «privilegiando as dimensões comunicacionais em detrimento dos conteúdos ritualizados», o apelo à conversão individual, «que acompanha os itinerários de individuação e subjetivização» característicos da «modernidade religiosa», mas sem deixar de integrar práticas tradicionais, antes «amarradas a estruturas locais e regionais, e agora fragilizadas por novas mobilidades», contribuem para que Fátima seja hoje central no catolicismo em Portugal.

A dimensão internacional da Cova da Iria afirmou-se particularmente com a coroação de Nossa Senhora de Fátima como "rainha do mundo" (1946) e a primeira visita de um papa, Paulo VI, em 1967.

A estes factores acrescem a centralidade geográfica, a domicialização de muitas congregações religiosas e seminários para formação de futuros padres, a construção de estruturas para congressos católicos.

Alfredo Teixeira e Tolentino Mendonça salientam que Fátima se tornou «um excelente observatório» para um «choque de paradigmas» entre dos modelos de religiosidade, a «estável do "praticante regular"» e a «modular do "crente itinerante"», que todavia «não existem em estado puro» mas «misturam-se na trajetórias individuais» e em espaços como o santuário «de uma forma muito complexa».

Os autores concluem que «demasiadas vezes Fátima é relida com chaves do passado», o que «é um erro», porque o santuário «é um laboratório para as modernidades múltiplas, no campo religioso, claro, mas não só». Por isso «é preciso olhar para Fátima de outro modo».



 

SNPC
Fonte: "Expresso"
Publicado em 06.05.2017

 

 
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