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Jornada Nacional da Pastoral da Cultura

Juventude e cidadania: entre o "cara" e o "careta"

Surpreende-me como, na linguagem corrente, os brasileiros se tratam entre si: por “caras”. Ao referirem-se a alguém como “cara” estão implicitamente a reconhecer uma individualidade, com sua inerente subjetividade, sua cara própria. Aliás, não por acaso, “cara” está etimologicamente presente no caráter. Entretanto, os jovens descobriram um outro termo cuja riqueza simbólica vale a pena explorar: “careta” — expressão que designa uma pessoa cheia de condicionamentos e preconceitos, intérprete de valores ultrapassados, fora de moda.

Aos verdadeiros “caras” associa-se um estatuto de legitimidade (cara legal!). A outra face da moeda, “coroa”, designa uma pessoa de idade avançada e ideias retrógradas. Desse mundo consensual fazem parte os “caretas” — embora não seja certo que todo o consenso esteja incorporado em tal designação (Vianna, 1997: 14). Contra o regime “careta” de estar na vida (dominado pelos “coroas”) há jovens que reivindicam novas experiências de vida, implicando ser “descarado” — isto é, atuar com atrevimento, com imprudência até, “metendo” ou “dando a cara”, “escancaradamente”.

O lado “coroa” da política não lhes interessa. Num documento publicado recentemente pelo Conselho da Europa sobre a participação política dos jovens europeus (Lauritzen, Forbrig e Hoskins, 2004), o retrato que nos é dado é o de uma juventude desencantada com as instituições e os modos tradicionais de participação política. A confiança nas instituições políticas está em decréscimo, o que se reflete num significativo abstencionismo eleitoral (Galland e Roudet, 2001).

No Brasil, como em Portugal, o panorama não é diferente. (...) Para estes jovens, o poder careta procura enquadrá-los no regime dominado pelos caretas, não por acaso também designados de “quadrados”. Em contrapartida, os jovens sugerem ser por estes vistos como “desenquadrados”, “desalinhados”, “marginais”, termos que apontam para uma exclusão que muitos jovens transformam em oportunidade para reafirmarem, exacerbadamente, suas identidades.

Falar de cidadania implica falar de caras, de identidades. De identidades individuais (de uma pessoa, de uma voz, de uma posição, de uma subjetividade) e de identidades grupais (“nós”, que nos assemelhamos, em relação a “outros” que de nós se diferenciam). Ora a cidadania tem sido tradicionalmente referida a uma pessoa “universalizada”, a um “cara” impessoal. Haverá cidadania sem o reconhecimento da identidade de um “cara”? Em que medida os atributos universalistas geralmente associados à noção de cidadania dão guarida à reivindicação de subjetividades e identidades grupais? Será que o ideal de cidadania se cumpre apenas na defesa da igualdade ou, também, no reconhecimento da diferença (Benhabib, 1996).

Esta cidadania que defende a autonomia do “cara”, implica o reconhecimento da afirmação de uma identidade, de uma vontade própria, de um poder de decisão (Franck, 1999). Por que razão os jovens investem tanto na sua imagem? Porque as identidades são uma construção que se logra no visual, na linguagem, nas formas de comunicação e de consumo, com recurso a múltiplas estratégias cénicas (Canclini, 1995). O corpo é palco de investimentos crescentes por parte dos jovens: tatuam-se, drogam-se, perfuram-se, adelgaçam-se, musculam-se, bronzeiam-se, depilam-se… As caras maquilham-se, perfumam-se, exibem-se com óculos originais, carregam penteados exóticos e coloridos (Pais e Cabral, 2004).

Entre as duas Grandes Guerras a moda era governada por uma funcionalidade racional que a tornava uniforme, previsível, conformista. Hoje em dia, os jovens olham tais vigências como moda careta. O que conta é o cultivo da imagem de si, investida em toda a sua expressividade e sensibilidade (Negrin, 1999). O que hoje ressalta é um “ecletismo estilístico” (Connor, 1991) que efemeriza a própria moda e viabiliza a performativização de identidades construídas como marcas de uma pretensa individualidade.

Não estamos apenas perante uma questão de modas (incorporadas) mas também ante a necessidade de afirmação de identidades (intervencionadas). De identidades que são socialmente ritualizadas e, nesse sentido, as tatuagens, piercings e outras intervenções corporais são marcas individuais, sem deixarem de ser grupais. Elas individualizam os corpos marcados mas também demarcam, originando uma diversidade de afiliações grupais (Haenfler, 2004), modos diversos de fazer falar o corpo, de multiplicar a sua capacidade linguareira. Elas reclamam formas de participação e disputa cívica baseadas na relevância do corpo e do controlo sobre o mesmo.

Num cenário de forte reivindicação de direito ao uso livre do corpo, a cidadania problematiza-se cada vez mais nos domínios do self e da sexualidade, refletindo a individualização da cultura. Como sustenta Giddens (1997: 56), “os assuntos da política de vida fornecem a agenda central para o institucionalmente reprimido”. Os direitos mais apelativos são os que interferem no bem-estar individual, como é o caso dos direitos do consumidor ou dos que se centram em questões relacionadas com o género, a sexualidade, os estilos de vida, a qualidade da mesma.

A possibilidade de a reprodução e a sexualidade se separarem abriu também caminho a uma variedade de vivências de afeto e de opções de vida. Assistimos cada vez mais a uma privatização dos dilemas do viver quotidiano. Dilemas que envolvem a afirmação de identidades individuais no plano da sexualidade, da expressão corporal, dos sentimentos, da realização pessoal. Os direitos sociais são mobilizadores na medida em que expressam direitos individuais. Muitos dos movimentos sociais contemporâneos são manifestações de rebeldia perante formas institucionais de repressão da individualidade (Muggleton, 2000). Realização pessoal e transformação social não são reivindicações mutuamente exclusivas (Calhoun, 1994).

Em suma, não devemos atentar apenas nos atributos (epigramas) que caracterizavam o modo tradicional e abstrato de encarar a cidadania (direitos, responsabilidades, obrigações, prerrogativas, etc.) fortemente ancorados a um “referencial adultocêntrico” (Castro, 2001: 13). Quando pensada por referência aos jovens, a cidadania não deve estar apenas vinculada ao discurso da “integração”, passando ao lado do reconhecimento da diversidade” (Moya, 2003: 10). Ou seja, importa também explorar os movimentos juvenis de expressão cultural, sem esquecer os sentimentos de pertença e as subjetividades que se investem nas relações de sociabilidade.

Uma compreensão cultural desta “cidadania da intimidade”(Plummer, 2003), que contemple o universo dos sentimentos e das fantasias, ajudar-nos-á a perceber melhor a natureza dos investimentos emocionais dos jovens quando estão em jogo identidades (individuais e grupais) não determinadas por interesses racionais (Frosh, 2001).

O “mostrar a cara” tem evidentes vantagens — afirmação de uma vontade própria —, mas arrasta também a inevitabilidade de confronto com caras de ideias diferentes. Ao serem muitas vezes olhados de lado, os jovens acabam por devolver, em ricochete, as rejeições de que são alvo. Daí a contraposição do cara (legal) ao coroa, careta ou quadrado. A cidadania tem sido tradicionalmente pensada em forma de quadratura. Ela tem-se definido, em cada época, pelos limites que se impõe a si mesma. Daí os conceitos decorrentes de inclusão (dentro da quadratura) e de exclusão (fora da quadratura).

Mas deve o exercício de cidadania ficar confinado a estratégias de encerramento — as que apenas apelam a um enquadramento cujas virtudes não se discutem? A hipótese que se debate é a do exercício da cidadania poder também expressar-se no poder inventivo das margens que se manifestam insurretas em relação às estratégias de encerramento e que ganham todo o seu fulgor nos jogos de abertura.

As lógicas de encerramento e de abertura enfrentam-se em variadíssimos domínios da vida, como o da própria comunicação linguística (Deleuze e Guattari, 1994: 103-104). Veja-se como a língua portuguesa dos tempos coloniais se tentou impor — sem plenamente o ter conseguido — às culturas caipiras do Brasil (Martins, 2004b). A língua é uma realidade variável heterogénea, mas ela aparece normalmente subjugada por uma política de encerramento. Por isso ela vê-se homogeneizada, centralizada, estandardizada. A gramaticalidade de uma língua é um marcador de poder antes de ser um marcador sintático. A unidade de uma língua é fundamentalmente política. Mas, na sua vivência quotidiana, a língua participa em “jogos de abertura” — particularmente entre os que estão à margem do poder.

Na fala dos jovens é comum o surgimento de uma linguagem que conota com seus próprios valores. Eles produzem uma relexicalização da linguagem; promovem um fluir de vozes que se renovam constantemente; criam palavras novas, deformam-nas ou dão novos significados às existentes. (...) Sempre as gírias linguísticas se constituíram em linguagens de resistência quando se soltam nas margens sociais (Burke e Porter, 1996). A gíria dos jovens é disso prova quando contrapõem o “cara legal” ao “coroa” ou “careta”. A ironia é muitas vezes usada para criar distâncias por parte de quem se sente olhado à distância. O cara legal pode até ser um bandido, mas não deixa de ser um cara legal. Pode falar legal, embora dominando mal a língua portuguesa. Pode ter um trabalho ilícito que é olhado como legal (prazenteiro), ou ter um trabalho que não é legal (no sentido de alienante) embora vinculado juridicamente a um contrato legal. A
fala das margens recorre frequentemente a antifrases, isto é, expressões carregadas de ironia que exprimem o contrário do convencional. O cara legal pode exprimir uma legalidade na marginalidade, fiel aos códigos estabelecidos por esta, à margem da legalidade de outros mundos sociais. (...)

Nada garante que a melhor forma do exercício da cidadania seja a do comprometimento cego com todo ou qualquer tipo de “constantes”, da mesma forma que nada nos garante que todo ou qualquer tipo de “variação” corresponde a uma efetiva emancipação social.

Tradicionalmente, o conceito de cidadania estabelece fronteiras e margens entre sociedades e grupos. Uns são enquadrados (os “incluídos”), outros desenquadrados (os excluídos, os marginais). Mas as margens são definidas a partir do centro, isto é, de valores que são próprios de “nós” (os enquadrados) por contraposição a “eles” (os excluídos). Evidentemente que há uma cidadania de direitos estabelecidos que, legitimamente, são olhados como estáveis, consensuais, constantes.

O direito de voto (outrora conquistado) é um bom exemplo de direito estabelecido. Mas há também uma cidadania de novos direitos conquistados, cuja premência é justificada pelas circunstâncias ou necessidades mutáveis da vida. Neste caso podemos falar de uma cidadania inovadoramente participada.

 

O sociólogo José Machado Pais, autor deste texto, é um dos intervenientes na 9.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, que a 21 de junho analisa em Fátima o tema "Culturas Juvenis Emergentes".

 

José Machado Pais
Comunicação apresentada na sessão inaugural do Simpósio Internacional sobre a Juventude, no Rio de Janeiro, UFRJ, outubro de 2004.
In Sociologia, problemas e práticas, n. 49, pp. 53-70
10.06.13

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