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Luís Miguel Cintra diz que ciclo "O Nome de Deus" é «quase um manifesto» contra «momento de trevas» na Cornucópia e nas artes em Portugal

O cofundador e diretor do Teatro da Cornucópia, Luís Miguel Cintra, considera que o ciclo "O Nome de Deus", que começou este sábado, «é quase um manifesto» perante o «momento particularmente grave na evolução do trabalho da companhia».

«A recente desvalorização explícita da utilidade pública do teatro e das artes em geral como consequência da declarada crise financeira, este momento de trevas em que não sabemos se teremos condições para continuar, vem precipitar uma indispensável reflexão sobre o nosso ofício que passa para nós pela reafirmação de uma evidência: a natureza política do nosso trabalho», lê-se na folha de sala correspondente à leitura de Gennariello, do italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975).

«A procura por tanta gente de um regresso a valores de natureza religiosa que me parece notar-se e até, de certa maneira, estar a ser aproveitado (porquê?) pela Igreja Católica, creio inserir-se também nessa procura de uma nova maneira de viver. E até de combater», sublinha o ator e encenador.

No texto enviado ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC), que reproduzimos na íntegra, Luís Miguel Cintra está convicto de que «a Arte pode ser fundamental na reinvenção da sociedade»

A leitura pública de Gennariello por parte do diretor da Cornucópia, sediada em Lisboa, insere-se num conjunto de atividades que antecedem a estreia, a 7 de fevereiro, da peça O Estado do Bosque, do padre e poeta José Tolentino Mendonça, diretor do SNPC.

O ciclo prossegue este domingo, às 16h00, com nova leitura do texto do cineasta italiano, prosseguindo a 26 e 27 de janeiro, respetivamente às 21h30 e 16h00, com a leitura, também por Luís Miguel Cintra, de Duas Cartas, do francês Paul Claudel (1868-1955).

 

Gennariello: sinopse
Teatro da Cornucópia

O texto Gennariello está integrado no volume Lettere luterane, (Cartas Luteranas) editado pela primeira vez em 1976 e agora editado em Português pela Assírio e Alvim. Gennariello foi publicado «em episódios», no dizer de Pasolini, no semanário Il Mondo entre março e junho de 1975. As datas inseridas no fim de cada um desses «episódios» são as da sua saída no referido semanário. Conservaram-se, quando existiam, os títulos dados pelo autor aos parágrafos em que vinha a articular-se o seu discurso pedagó­gico; enquanto para os restantes se manteve o título redac­torial com que Il Mondo os publicou.

 

Gennariello: as razões de uma leitura pública
Luís Miguel Cintra

A leitura pública por mim, diretor desta companhia de teatro, de Gennariello de Pasolini no cenário da Cristina, também diretora da casa, na sala aparentemente vazia onde trabalhamos quase há 40 anos, abre um pequeno ciclo suscitado pela programação da peça O Estado do Bosque de Tolentino de Mendonça, e corresponde a um momento particularmente grave na evolução do trabalho da companhia; e o ciclo a que chamámos O Nome de Deus é quase um manifesto. A recente desvalorização explícita da utilidade pública do teatro e das artes em geral como consequência da declarada crise financeira, este momento de trevas em que não sabemos se teremos condições para continuar, vem precipitar uma indispensável reflexão sobre o nosso ofício que passa para nós pela reafirmação de uma evidência: a natureza política do nosso trabalho. Estamos inseridos numa sociedade que também está a tomar consciência de um vazio. É patente o sentimento de que cada um terá cada vez mais de saber o que quer e que é fundamental a revisão dos valores por que nos queremos reger porque a mentira do sistema político começa a ser evidente para todos e todos, ou quase todos, percebem que é necessário inventar outra vida, outra política, se queremos viver o que somos e sermos felizes. A procura por tanta gente de um regresso a valores de natureza religiosa que me parece notar-se e até, de certa maneira, estar a ser aproveitado (porquê?) pela Igreja Católica, creio inserir-se também nessa procura de uma nova maneira de viver. E até de combater. O primeiro passo será talvez cada um pensar o que quer. Para nos virmos a reencontrar numa nova solidariedade, nalguma vontade de agir. Creio que a Arte pode ser fundamental na reinvenção da sociedade. E seja como for que nos portarmos, estamos a tomar posição.

A reflexão sobre o nosso ofício será feita à nossa maneira, com os outros, e não à porta fechada. O nosso trabalho, o teatro, é por definição uma maneira de estar com os outros. A programação da peça de Tolentino, uma estreia absoluta de um texto dramático português, insere-se nesse momento particularmente importante e que no caso da Cornucópia coincide com a celebração de 40 anos de atividade de um ofício de utilidade pública.

O nome de Deus vem-nos à boca em todos os momentos graves. Quando se trata de pensar a vida não se pode deixar de passar por aí. Ou de aí ficarmos. Ou de partir daí. A peça de Tolentino, que só uma vez pronuncia a palavra Deus, descreve este processo poeticamente, corresponde para mim a uma descrição da “crise” e creio que pensa contribuir para a maneira de a viver, apesar de escrita antes dela se manifestar. Mas já outros, noutras épocas procuraram debater-se de outras maneiras com a mesma questão. Julgámos importante enquadrá-la por outros dois textos que são representativos de atitudes completamente diferentes mas de um desejo comum, o regresso a uma vida mais próxima da natureza humana. Escolhemos dois textos que por sinal assumem a forma de cartas. Cartas a gente mais nova portadora de futuro. São de facto textos políticos. Cada tempo falará e pensará de maneira diferente. No caso de Claudel, cartas à filha, e já isso diz qualquer coisa. No caso de Pasolini a um jovem napolitano imaginado, desejado. A quem chama Gennariello por causa do santo padroeiro da cidade San Gennaro. O mais pecador católico ortodoxo e o mais santo dos ateus. Pasolini escrevia enquanto em Portugal vivíamos uma situação revolucionária: 1975, o ano depois do 25 de Abril, a minha juventude. Protesta contra a dessacralização e a dessentimentalização da vida pelo consumismo. Todos falam afinal de uma incarnação. A luta de Pasolini foi a de tentar incarnar o pensamento. Ensinou-me a viver. Mas o tempo muda e cada pessoa é diferente. Que tarefas inventará o nosso tempo?

Quisemos a presença da música nos 3 casos, música a que se refere Tolentino no seu texto como se fosse parte da vida. Escolhemos 3 compositores diferentes e já do século XX mas o mesmo instrumento: o clarinete. Talvez porque, em português pelo menos, tem um nome masculino e por não ser sentimental e ter um som tão próprio que mesmo integrado numa orquestra, sempre parece ter nascido para solista.

Também são 3 textos que refletem sobre a relação da palavra com a vida. Para nós é também o que está em causa. A reflexão sobre a metáfora, que o teatro também é, não excluirá a reflexão de uma religião que diz de si própria: “No princípio era o Verbo… e o verbo se fez carne e habitou entre nós.”

 

Oração encomendada
Pier Paolo Pasolini
Trad.: Isabel de St. Aubyn, in Pier Paolo Pasolini, As Últimas Palavras de um Ímpio, Distri Editora, 1985

I
Deus, e agora?
A quem deitarei as sementes por cima do meu ombro esquerdo?
Será que posso desmembrar um morto
E enterrar os pedaços nos campos?
Será que em sonhos os mortos me aparecem
como máscaras ou ratos?
E depois, talvez eu tenha medo de que o Sol,
mais cedo ou mais tarde,
deixe de nascer, ou de que a erva deixe de crescer?
Vivo nesta contínua inquietação?
O ano é um tempo determinado,
Com princípio e fim,
E portanto com morte e ressurreição?
Terá a semente importância na minha vida?
Pensarei que a orgia no túmulo se segue à colheita?
Quanto à Lua, considero-a solidária com a serpente?
Estarei enganado, Deus,
Ou o tempo reabre-se
E já não tem a forma de um ovo?
Estarei enganado ou é o tempo dos ceifeiros que volta
(tão cheios de bondade)
E todo um sistema de religiões se desmorona?
Estarei enganado, ou deverei pensar
Que se fecha o parêntesis milenário
E que o problema dos camponeses
Apenas diz respeito aos ministros dos negócios estrangeiros?
E portanto que tu, o filho, já não és uma vítima
ungida de manteiga derretida
Enquanto a tua mãe já não é a que sobe ou se eleva
Pelos degraus da grande escadaria?
Não será a separação que começa entre mim e a terra?
As nossas mortes, ou melhor, as nossas letargias
Não deixaram de ser comuns?
Esta... história... exterior que começa a extinguir-se
Não será em breve completamente estranha,
Para quem não ler obras sobre a era camponesa
E portanto sobre certos pormenores desprezíveis da
história palestina?
Não serei o último a cumprir os rituais desta história
(resumidos em sintomas que só têm significado para os que
compreendem)?
E tu, não serás hoje o que eu não sei nem sinto?
Isto é, mais no futuro do que no passado?
E eu rezo-te? E encomendo estas orações?
Ah! antepassados ceifeiros que não sabíeis lançar a semente,
Nem sentíeis a obrigação de conservar a vida
Dos que para comer (ter a vida) abatíeis,
Sereis novamente atuais? Os meus próprios contemporâneos?

 

Imagem

 

Teatro da Cornucópia / SNPC
© SNPC | 19.01.13

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FotoLuís Miguel Cintra

 

 

 

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