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Migalhas do bem

Migalhas do bem

Imagem dinosmichail/Bigstock.com

Diz o Papa Francisco, no penúltimo parágrafo da sua Carta Apostólica, Misericordia et misera. Na conclusão do Jubileu extraordinário da misericórdia, a propósito do «Dia mundial dos pobres», que:

«Será um dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa (cf. Lc 16, 19-21).».

Trata-se do Lázaro, pedinte, coberto de úlceras e faminto ao ponto de se contentar com comer das migalhas que caíssem da mesa do dono da casa junto da qual estava.

O migrante é sempre uma qualquer forma de Lázaro, não por ser necessariamente pobre em sentido material do termo, mas porque, como Lázaro, está realmente distante dos bens de que necessita, pois a eles não tem acesso, mesmo que esteja fisicamente próximo deles, como é, também, o caso deste Lázaro.

Ora, a sua condição primeira de excluído não é económica, ética ou política, mas antropológica, pois o seu estado – esse sim, económico e político, de origem ética – deve-se a uma desclassificação da sua realidade como propriamente humana, isto é, o seu ser não é julgado como um ser propriamente humano – por isto, está do lado de fora da casa: quem está dentro da casa são os que se consideram a si próprios como verdadeiramente humanos e, por tal, dignos do banquete.



No limite, a migração de um qualquer ser humano acaba sempre por ser uma forma de negação da sua comum humanidade com esses que o forçam a migrar



O primeiro dado, que coincide com o primeiro momento do drama e eventual tragédia do migrante deve-se à redução que sobre ele é imposta em termos onto-antropológicos, isto é, relativos ao seu ser.

No fundo, esse que tem de migrar fá-lo porque a sua humanidade não é própria e devidamente reconhecida.

É considerado menos-humano ou mesmo não-humano. Como tal, não é considerado como merecedor de partilhar o bem disponível para os verdadeiros seres humanos – assim, autoproclamados –, sendo, como Lázaro, mantido afastado desses mesmos bens, ainda que estando na sua proximidade física.

Nada do que existe no problema das migrações de origem não-natural, quer dizer, de origem cultural, necessariamente humana, é devido a questões estritamente físicas, mas, é sempre devido a motivações éticas e políticas, com efeitos mais ou menos diretos, mais ou menos imediatos, sobre a dimensão onto-antropológica, sobre o que cada pessoa e todas as pessoas são como ser e em seu ser próprio e irredutível, humanamente impassível de qualquer forma de redução ou avaliação, enquanto propriamente humanos.

No exemplo do Lázaro citado, não é qualquer razão natural ou económica que justifica o afastamento deste ser humano relativamente ao bem disponível – este bem existe realmente –, mas o facto de já anteriormente ter migrado do comum da sociedade, por alguma razão que não propriamente natural ou económica. Não se diz qual, mas tal não interessa, interessa apenas que há alguém, que é um ser humano, que foi posto distante do comum.



A violência que originou a migração sempre matou algo do que era o mundo anterior próprio da pessoa forçada a migrar; e tal não tem remédio possível



Mesmo que tal migração se devesse a algo que Lázaro tivesse feito, mais propriamente «agido», a recompensa que passasse pela sua erradicação do seio do comum ontológico dos seres humanos seria sempre excessiva, pois a nenhum ser humano compete negar a comum humanidade a qualquer outro. É no seio da mesma comum humanidade que os problemas humanos individuais ou trans-individuais devem ser resolvidos.

No limite, a migração de um qualquer ser humano acaba sempre por ser uma forma de negação da sua comum humanidade com esses que o forçam a migrar.

Lembre-se que, no limite, a morte de alguém por razões políticas é uma forma extrema e irremível de migração: como diz o povo, «vai para o outro mundo», migração com a qual todas as outras migrações têm de ser comparadas, pois, de facto, estas últimas são formas de morte em vida de esses que são levados a migrar. E tal é válido mesmo quando, após algum tempo, isto é, algum movimento de ação integrativa no «novo mundo», se consegue ganhar uma forma própria de integração no bem aí presente. No entanto, a violência que originou a migração sempre matou algo do que era o mundo anterior próprio da pessoa forçada a migrar; e tal não tem remédio possível.

Não há, aqui, reescritas cor-de-rosa do passado, porque a migração não é confundível com algo como a «volta ao mundo em oitenta dias», de Verne, ou com qualquer outra forma de turismo ou de aventura: é sempre uma resposta necessária a um ato de violência ética e política que tem como alvo a antropologia do diferente.

Aquele que é antropologicamente o nosso próximo, relativamente a nós, não migra, viaja.

Com o próximo, partilha-se o pão, quando há e na quantidade que há.



Um grupo de pessoas nunca morre, porque os grupos, que são entidades de tipo lógico, nunca morrem: o que morre é a pessoa A, a pessoa B, em que A e B são nomes de humana carne, não números ou expressões lógicas que escamoteiam a ontologia própria do que acabou de ser mundanamente aniquilado



Se não há pão, de todo, então, nós e o próximo migramos ambos e, assim, somos ambos pacientes e agentes de um mesmo movimento, que pode ser originado pela violência de quem tem pão e não o quer partilhar connosco, porque nos reduz a não-humanos, precisamente ao recusar dar-nos o pão que existe e é partilhável. Se tal movimento for originado por algo de natural, não cabe nesta reflexão.

Este mencionado Lázaro é uma pessoa, um indivíduo humano, não é um «povo», um conjunto, mais ou menos coerente de seres humanos em interação. Poderá representar as grandes migrações, as dos «povos» ou certos tipos de «populações»?

Pode, sim. E pode, porque «povos» e «populações» existem apenas como formas abstratas de nos referirmos ao que, na realidade, existe mesmo, e que são as pessoas e estas, na sua forma realíssima, única, de ser humano individual, pessoal.

Quando surgem nas notícias relatos da morte – ou do resgate – de um determinado número de pessoas, por vezes, tal surge não-quantificado: algo como «numerosas pessoas morreram aquando do naufrágio de uma lancha sobrelotada».

Ora, na realidade, um grupo de pessoas nunca morre, porque os grupos, que são entidades de tipo lógico, nunca morrem: o que morre é a pessoa A, a pessoa B, em que A e B são nomes de humana carne, não números ou expressões lógicas que escamoteiam a ontologia própria do que acabou de ser mundanamente aniquilado e para o que, para quem, já não há humano, mundano, remédio possível; e os demais possíveis remédios, aqui, não nos interessam, pois remetem para realidades atualmente inacessíveis para problemas atuais que, esses, têm de ser atualmente resolvidos aqui e agora.



Não reconhecer o que é humano no outro, propriamente humano no outro, é não reconhecer isso que tem em comum comigo; mas tal significa que não reconheço isso em mim próprio, pois o que me faz humano é o mesmo que faz o outro humano



Se a mundanidade da vida humana é mesmo sem qualquer humano interesse, então que se cesse qualquer ação que promova o bem e seja substituída por uma ação, que até pode ser imediata, de aniquilação da humanidade (basta que, aos pares, os sete mil milões de seres humanos se matem num mesmo gigantesco e absurdo ato de “migração” deste mundo para “o outro”). Não é para isto que a humanidade é, não para ser assassina de si mesma, mas para ser instrumento colaborador de sua mesma salvação, mundana apenas que seja; ainda assim, digna de pessoas, não de bestas.

A ação do possuidor de pão em abundância que tem Lázaro à porta esperando pelas migalhas casuais é própria não de um ser humano, de uma pessoa, mas de um ser humano que age como se besta fora. Ao não reconhecer a humanidade do outro, de esse que está migrado para fora do sítio em que há pão, des-reconhece a sua própria humanidade, pois, de facto, são ambas a mesma, a dele e a do outro, na diferença pessoal que os constitui. Mas que os constitui diferentemente como membros de um mesma humanidade.

Ora, não reconhecer o que é humano no outro, propriamente humano no outro, é não reconhecer isso que tem em comum comigo; mas tal significa que não reconheço isso em mim próprio, pois o que me faz humano é o mesmo que faz o outro humano, e se não o reconheço no outro, não o reconheço simplesmente, pelo que não o posso reconhecer em mim próprio.

Tal significa que o que reconheço em mim como propriamente humano, ao ser diferente do que reconheço no outro, esse que é, apesar de tudo, realmente humano, não é, em mim, verdadeiramente humano, antes fruto de uma qualquer ilusão, que confundo com a realidade humana.



Na raiz de toda a migração cujo motor é um ato humano, há uma dimensão ética: negar o pão a alguém é um ato ético, depende do arbítrio de uma pessoa, não de um cão, não de uma máquina



É a partir desta ilusão que vivo o que defino como «humanidade». É a partir desta redução antropológica, onto-antropológica, que construo o que considero ser o mundo humano, o meu mundo humano, em que incluo esses que considero como propriamente humanos e do qual excluo os que considero como impropriamente humanos ou, mesmo, como de todo não-humanos.

Todas as formas etnocêntricas radicam nesta ilusão onto-antropológica e todas as migrações cuja origem não é natural ou puramente económica por anulação de bens disponíveis, radicam nesta mesma ilusão.

A recusa do pão – nas suas várias formas, que este simboliza, isto é, a riqueza necessária e apropriada para toda e cada pessoa que queira fazer parte do bem-comum – implica sempre uma redução onto-antropológica de esse a quem o pão é recusado. Não se recusa o pão ao amigo.

A recusa do pão é o ato de formação da relação de inimizade. É esta inimizade que implica a necessidade de migração, a fim de preservar a vida ou a sua dignidade, indiscerníveis em termos humanos.

Ora, aquilo que designámos como «ilusão», de facto, não é uma realidade de tipo gnosiológico, um «erro» de visão, de inteligência, de quem olhe para o outro e não consiga ver o que lá está porque tem um problema qualquer de disfunção gnosiológica.

Trata-se de um ato propriamente ético, de uma escolha.



Não há desculpa. Há perdão, sim, mas passamos pela antropológica vergonha de não termos desculpa para a inanidade da nossa ação pessoal e coletiva. No entanto, nisto nos comprazemos



Escolho considerar esse que reduzo em sua humanidade por um ato meu, irredutivelmente meu: estou a ser mau, não estou a errar.

Na raiz de toda a migração cujo motor é um ato humano, há uma dimensão ética: negar o pão a alguém é um ato ético, depende do arbítrio de uma pessoa, não de um cão, não de uma máquina, por exemplo. Sou eu que te nego o acesso ao pão; ao fazê-lo estou a negar a tua humanidade porque te nego o acesso ao pão. O mais são desculpas, algumas das quais bem estudadas por quem é bem pago para as estudar.

Mas, ao passar a ato a escolha que fiz relativamente a ti de te excluir do acesso ao pão – muito ou pouco que seja, os que têm acesso são os humanos, os que não têm acesso são os não humanos e é o acesso que é o critério de humanidade, aqui – crio um ato político.

Deste modo, toda a migração, que depende de atos humanos que a provoca, tem uma finalidade onto-antropológica, tem origem ética e tem operação política.

Não haverá cessação de migrações – não confundir com atos de deslocação puramente voluntários – enquanto os seres humanos, isto é, eu, não deixarem de ver alguns dos seus reais e objetivos semelhantes como algo de dissemelhante, não deixarem de os julgar como tal e não deixarem de agir sobre eles com a finalidade de os afastar de si, da sua riqueza, do seu mundo.

O remédio é conhecido há muito tempo, chama-se ação no sentido do bem-comum, esse que não exclui pessoa alguma (que não queira voluntariamente excluir-se), tendo recebido, por parte de Cristo, a formulação prático-pragmática operacionalizante na forma do ignorado mandamento da universal caridade.

Não há desculpa. Há perdão, sim, mas passamos pela antropológica vergonha de não termos desculpa para a inanidade da nossa ação pessoal e coletiva. No entanto, nisto nos comprazemos.

Migrantes do bem que somos, dele insistimos teimosamente em fugir, quando para ele nos deveríamos encaminhar sem desfalecimento.



 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 12.12.2017

 

 
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