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«Nós precisamos de vós»: Paulo VI e os artistas

«Frequentei sempre os artistas, amei-os sempre secretamente, e quando posso, malgrado o seu pudor feroz, procuro falar com eles»: se se tivesse de sintetizar numa só frase a sincera e profunda atenção demonstrada por Giovanni Battista Montini, ao longo de toda a sua vida, em relação aos artistas (e, através deles, a todo o panorama artístico do seu tempo), dificilmente se poderiam encontrar palavras mais eficazes do que estas, por ele pronunciadas e reportadas por Jean Guitton nos “Diálogos com Paulo VI”.

Nesta rápida fulguração, com efeito, estão condensados os conceitos do diálogo instaurado por Montini com os artistas, a sua familiaridade inclusive pessoal com eles, a paixão espontânea que sentia pela sua arte e, por fim, realmente muito significarivo, o seu esforço contínuo de compreensão do seu trabalho (ao qual até, por vezes, não se furtava a censurar uma excessiva e abstrusa autorreferencialidade provada de capacidade comunicativa, mas sempre numa ótica propositiva e de acolhimento da sua sensibilidade).

Não é de surpreender, tendo em conta que o próprio Paulo VI admitia – sempre segundo o testemunho de Guitton – ter pessoalmente amadurecido na adolescência – juntamente com outras “vocações laicas” (a do compromisso político, mediada pelo pai, a contemplativa, inspirada pela mãe, a das viagens, da comunicação…) – um significativo interesse pela arte, depois de alguma forma sublimado, ou ainda melhor, “reductum ad unum” “acordando” todos estes diferentes chamamentos e aparentemente contraditórios no mais alto e abrangente plano do sacerdócio, o único capaz de os condensar todos («mas o que é seguro» - aponta Guitton - «é que entre as partes que dividiram o jovem Montini, o chamamento à beleza foi imperioso»).



Desde os anos da sua formação, Montini demonstrou sempre uma notável atenção em relação à arte contemporânea, na perspetiva de uma reconciliação entre a produção artística mais atualizada e a esfera da espiritualidade



A exposição “Nós precisamos de vós”, preparada a partir da Coleção Paulo VI, arte contemporânea em Concesio, Itália até 21 de dezembro, pretende celebar jubilosamente, e ao mesmo tempo com a devida solenidade, a canonização do papa, marcada para 14 de outubro, ao qual o museu deve a sua existência, prestando homenagem – em particular – à extraordinária e clarividente reflexão sobre a arte que Montini articulou a partir de 1920, até chegar ao ano da sua morte, exatamente há 40 anos.

Para o efeito, a exposição propõe ao público cerca de 50 obras gráficas (entre desenhos e, sobretudo, incisões) de excecional qualidade assinadas por muitos dos principais protagonistas da arte do século XX, cuidadosamente selecionadas entre as mais de três mil conservadas nos depósitos do museu, e que no entanto – por razões de espaço – não fazem parte do percurso permanente e que, na sua maior parte, nunca foram expostos.

O resultado é uma mostra inesperada e riquíssima, na qual se passa de Matisse a Picasso, da Chagall a De Chirico, da Hartung a Vedova, passando por Dali, Maurice Denis, Casorati, Morandi, Marini, Henry Moore, Graham Sutherland, Guttuso, Cagli, Morlotti, Fiume, Arnaldo Pomodoro, Kokoschka, Zadkine, Fazzini, Radice, Viani, Santomaso e muitos outros.



Em 1963, em pleno concílio Vaticano II, Montini é eleito papa, e nos 15 anos seguintes de pontificado regressa ao tema da arte – de maneira mais ou menos direta – 70 vezes. São memoráveis sobretudo três intervenções



Desde os anos da sua formação, Montini demonstrou sempre uma notável atenção em relação à arte contemporânea, especialmente no seguimento da reflexão estética de Jacques Maritain e na perspetiva de uma reconciliação entre a produção artística mais atualizada e a esfera da espiritualidade.

Já em 1928, por exemplo, Montini contribui para promover um convénio em que entre outros temas se trata da “Moral e arte”, e o seu primeiro texto escrito dedicado especificamente à questão do diálogo entre a arte contemporânea e o “sagrado” remonta a 1929, isto é – com uma antecipação que surpreende – 30 anos antes da abertura do concílio Vaticano II, testemunhando um interesse intelectual muito precoce que nunca desapareceria, e que, aliás, foi mais tarde aprofundado e esclarecido.

Assim, quando se torna arcebispo de Milão, em pleno “boom” económico e se encontra perante o maciço fenómeno de afluência à cidade de populações proveniente de toda a Itália, Montini trabalha para que nos novos bairros surgidos na periferia da cidade histórica não faltem igrejas adequadas inclusive à luz da beleza e em correspondência ao espírito da modernidade, promovendo uma imponente campanha de construção de novos tempos na qual são envolvidos de maneira convicta e substancial – e não apenas de fachada – arquitetos e artistas de primeiríssimo plano, aos quais é pedido que interpretem o sentido do sagrado através de soluções capazes de temperar com equilíbrio o seu anseio pessoal à liberdade expressiva (que é salvaguardada e encorajada) e as justas necessidades na liturgia.



O nosso ministério é o de pregar e tornar acessível e compreensível, mais ainda, tocante, o mundo do espírito, do invisível, do inefável, de Deus. E nesta operação, que decanta o mundo invisível em fórmulas acessíveis, inteligíveis, vós sois mestres



Em 1963, em pleno concílio Vaticano II, Montini é eleito papa, e nos 15 anos seguintes de pontificado regressa ao tema da arte – de maneira mais ou menos direta – 70 vezes. São memoráveis sobretudo três intervenções: em primeiro lugar a célebre missa dos artistas de 7 de maio de 1964; depois, a mensagem aos artistas de 8 de dezembro de 1965, na conclusão do concílio; por fim, o discurso proferido em 1973 por ocasião da inauguração da coleção de arte religiosa moderna dos Museus do Vaticano.

E ainda que seja difícil, para não dizer impossível, sintetizar em poucas linhas a riqueza problemática das questões estéticas, teológicas e pastorais colocadas pelo papa Montini nestes três pronunciamentos fundamentais, pode dizer-se que o que neles avulta maioritariamente – em termos gerais – é sobretudo a nova atitude em relação à arte e aos artistas do seu tempo: Paulo Vi foi, efetivamente, o primeiro papa, à distância de séculos dos exemplos iluminados de Quinhentos e Seiscentos, a dirigir-se diretamente aos artistas, a interessar-se autenticamente pelo seu trabalho e pela sua vocação, para restabelecer aquela relação entre arte e Igreja que até ao século XVIII tinha dado frutos maravilhosos, mas que depois se interrompeu por vários motivos, o primeiro dos quais o fechamento da Igreja “oficial” – foi o próprio Paulo VI a admiti-lo em relação às novidades de que os artistas, por índole, sempre se fizeram portadores.

«Nós precisamos de vós», disse aos artistas reunidos na capela Sistia, «o nosso ministério precisa da vossa colaboração. Porque, como sabeis, o nosso ministério é o de pregar e tornar acessível e compreensível, mais ainda, tocante, o mundo do espírito, do invisível, do inefável, de Deus. E nesta operação, que decanta o mundo invisível em fórmulas acessíveis, inteligíveis, vós sois mestres. (…) Vós tendes também esta prerrogativa, pelo facto de tornar acessível e compreensível o mundo do espírito, conservando nesse mundo a sua inefabilidade, o sentido da sua transcendência, o seu ambiente de mistério, a necessidade de o alcançar ao mesmo tempo na facilidade e no esforço». Uma reflexão alimentada por ecos de Maritain, e cuja influência se percebe fortemente inclusive nos pronunciamentos dos papas seguintes.


 

Paolo Sacchini
In L'Osservatore Romano, 28.9.2018
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 28.09.2018 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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