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Nuno Teotónio Pereira

A candidatura de Humberto Delgado e a dissidência católica

Passou há dias o 30° aniversário do assassínio do general Humberto Delgado, e a comemorar a efeméride foi realizado um colóquio promovido pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Tive ocasião nesse colóquio de me referir à importância de Humberto Delgado no desencadear da dissidência de muitos católicos relativamente ao regime salazarista.

O grande papel de Humberto Delgado foi o de fazer despertar os portugueses para os valores da Liberdade e da Democracia e fazê-los acreditar que era possível conquistar esses valores. O caminho que nos é dado pela sua própria biografia foi o que ele ensinou aos portugueses: abrir os olhos para a realidade em que viviam, sob o jugo de um regime ditatorial, que se servia da Censura, da Polícia Política, das Forças Armadas e da própria Igreja para manter o seu poder, e agir em consequência, para que fosse sacudido tal regime e o País conquistasse a liberdade. Liberdade que a partir da sua candidatura se tornou como algo de possível e alcançável. Ao juntar multidões na rua para o aclamarem, Humberto Delgado fez estremecer Salazar e a partir da sua campanha eleitoral os movimentos da oposição ganharam uma nova força, que não deixaria de aumentar até ao 25 de Abril.

A este despertar da consciência política dos portugueses provocada por Humberto Delgado, com a sua corajosa declaração de que demitiria Salazar se fosse eleito Presidente da República, não ficaram alheios muitos católicos. E foi durante a própria campanha, a 19 de maio de 1958, que 28 leigos escreveram ao jornal "Novidades", órgão da Igreja, a protestar contra a sua parcialidade no pleito eleitoral, favorecendo o candidato do governo. Logo a seguir, em junho, Francisco Lino Neto põe a circular um documento em que critica vivamente "a completa falta de esclarecimento doutrinário da grande média dos nossos católicos e, por outro lado, a manifesta falta de consciência cívica e política dos portugueses". Curiosamente, o pai do autor, António Lino Neto, ousara enfrentar Salazar trinta anos antes, como dirigente do Centro Católico, o qual acabou por ser silenciado.

Nesse documento recorda que, "sob a capa de uma proteção ostensiva, se cerceavam as liberdades dos movimentos católicos, como aconteceu concretamente com o jornal "O Trabalhador" e com os congressos da Juventude Operária Católica e da Liga dos Homens Católicos". E acrescentava: "O menos que poderá afirmar-se é que a doutrina e a prática do Estado Novo não podem considerar-se, de qualquer maneira, inspiradas nos princípios cristãos". Estava assim dado o mote para um movimento de rutura entre a consciência de muitos católicos e o regime, apoiado ostensivamente pela Igreja.

Efetivamente, a procissão ainda ia no adro: a 13 de julho, o Bispo do Porto, António Ferreira Gomes, escreve uma longa carta a Salazar, a propósito da campanha eleitoral, reclamando para os católicos a liberdade de se organizarem, à margem da doutrina oficial, para intervirem publicamente em futuras eleições, a partir da sua formação cívico-política, na concreta conjuntura da sociedade portuguesa. Nessa carta, o bispo diz que "a grande e trágica realidade que já se conhecia, mas que a campanha eleitoral revelou de forma irrefragável e escandalosa, é que a Igreja em Portugal está perdendo a confiança dos seus melhores". E a isto D. António atribui a identificação da Igreja com o Estado. Pela primeira vez (e talvez única...) um bispo distanciava-se da doutrina e da prática do Estado Novo.

A carta não foi publicada pelo Bispo, mas cópias dela foram enviadas a alguns amigos. Não tardou, porém, que milhares de exemplares passados ao duplicador circulassem pelo País. Com esta sua carta, que lhe valeu mais tarde um prolongado exílio, o Bispo do Porto cortava as amarras de uma parte da Igreja com o Estado Novo.

A estas atitudes Salazar responderia "haver alguns católicos que romperam a frente nacional". E logo sugere que se as autoridades competentes não puserem as coisas no seu lugar, apresentaria reparos, com graves implicações quanto ao futuro das relações entre o Estado e a Igreja. Estava, pois quebrada a santa aliança entre o regime e os católicos, que vigorava desde os primórdios do Estado Novo. E isto fica a dever-se, sem sombra de dúvida a Humberto Delgado.

Na sequência destes acontecimentos, são divulgados em fevereiro e março de 1959 dois abaixo-assinados, subscritos por 43 católicos, entre os quais seis padres. O primeiro, sobre as relações entre o Estado e a Igreja e a liberdade dos católicos; o segundo, em forma de carta a Salazar, denunciando, com a citação de casos concretos, as violências da polícia política. São sem dúvida ecos próximos da campanha de Humberto Delgado.

Estes dois documentos, também redigidos por Francisco Lino Neto, constituem as bases da dissidência católica em relação ao regime da ditadura salazarista. Apresentados ao Cardeal Cerejeira durante uma audiência, os promotores ouviram conselhos de prudência, como foi sendo seu hábito: "que não deitassem mais achas para a fogueira e que pensassem que tinham famílias e carreiras a defender".

Estes documentos constituíram o pontapé de saída para um movimento que não pararia de crescer até ao 25 de Abril, e de que são pilares importantes o manifesto dos 101 católicos, quando das eleições de 1965, os congressos da JUC e da JOC, a publicação do jornal clandestino "Direito à Informação", a revista "O Tempo e o Modo", a cooperativa cultural PRAGMA, encerrada pela Pide em 1967 e as vigílias da igreja de S. Domingos e da Capela do Rato, esta no final de 1972. Nesta altura muitos católicos, em todo o País, tinham acordado para as suas responsabilidades cívicas e políticas, militando muitas vezes em diferentes partidos e movimentos da oposição à ditadura e ao fascismo.

Hoje, passados 37 anos da campanha de Humberto Delgado, é uma verdade histórica que foi ainda aquela que fez desbloquear uma situação de subserviência e de menoridade política que acorrentava os católicos e a Igreja ao regime salazarista, desde que este surgira em Portugal, na onda dos fascismos e dos regimes autoritários de direita que alastrou pela Europa.

 

Nuno Teotónio Pereira
In Público, 14.02.95
19.06.12

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