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Teologia

O saber feminino de um não-saber

O imperialismo das perspetivas masculinas patriarcais, refratadas a muitas dimensões e exponencialmente desenvolvidas, marcou a fogo as culturas europeias e ocidentais, sobretudo aquelas cujas raízes são em larga medida judeo-cristãs. A maioria das pessoas, para não dizer toda a gente, nas sociedades ocidentais mas não só, impregnadas por um ambiente em que a hierarquia da Igreja católica quase literalmente imperava, foi-se habituando à explícita ou sub-reptícia incorporação nas suas próprias vidas e pensamento de perspetivas exclusivamente masculinas. Essas perspetivas foram sendo moldadas dentro de um sistema criado só por sujeitos homens, sistema que se tornou dominante e que tem sido designado como patriarcal ou falologocêntrico – termo usado por Jacques Derrida, com impacto decisivo no Sitz-im-Leben cristão. O impacto sócio-cultural que teve ao longo da História manifesta- se sobretudo na naturalização do domínio do masculino sobre o feminino, dos homens sobre as mulheres, em quase todas as dimensões da vida individual e coletiva.

É aí que intervém a teologia ou teologias feministas – há que decliná-las no plural, por os pontos de vistas já se terem consideravelmente multiplicado. Como as teólogas se situam noutros campos de visão e com uma outra subjetividade, assumindo as suas próprias experiências enquanto mulheres, a História pôde por elas ser observada sob outros prismas. Daí que os estudos feministas no campo da teologia tenham desconstruído camadas desconhecidas da história do cristianismo, levantando memórias de outros percursos que foram os das mulheres. Elas denunciaram com arrojo a ordem patriarcal, simultaneamente afirmando uma ontológica igualdade e paridade entre homens e mulheres perante o Divino.

O livro de Elizabeth Schüssler-Fiorenza, de 1983, é talvez o primeiro a ser conhecido pelas suas inovadoras práticas hermenêuticas e histórico-críticas, onde fica implicado um gesto político equivalente ao das teologias da libertação – In Memory of Her: A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins. Isto e tudo o mais que a seguir surgiu mostra a importância incalculável do contributo das teólogas feministas em ordem a essa depuração do cristianismo, nas suas vozes e situações e nos seus textos, tantos deles desconhecidos durante séculos devido ao poder discriminatório da hierarquia e sua cultura “patriarcalizada”.

Curioso é que Maria de Lourdes Pintasilgo, antes mesmo de Elizabeth Fiorenza, já tivesse chamado a atenção, em França e em Portugal no início dos anos 80, para o questionamento trazido pelos feminismos à Igreja católica. No seu livro aponta a sucessão de interpretações claramente masculinas dentro da própria Bíblia e denuncia com destemor “a cultura masculina” que enforma a “simbólica primordial cristã”. Entre outras coisas, o seu estudo analisa o modo como a Igreja foi utilizando a figura de Maria em função de formas subtis de subjugação das mulheres. O seu texto é hoje quase desconhecido em Portugal, mas ele foi ousado e pioneiro, não só pela identificação do domínio patriarcal no pensamento e na vida da Igreja como pela formulação precoce de interrogações fulcrais com as quais ainda hoje a Igreja se debate. É de destacar o seu IV capítulo, intitulado: “A simbólica primordial do cristianismo confrontada com o feminismo contemporâneo” (“La symbolique primordiale du christianisme affrontée au féminisme contemporain”.

Os sucessivos levantamentos de véus foram permitindo outros modos de nomeação dos acontecimentos fundantes da mensagem cristã. E algumas das áreas em que diferentes teólogas atuaram mostram véus antes quase impercetíveis que já tinham reduzido, e durante séculos a fio, o potencial contido nos textos e nos acontecimentos fundadores do cristianismo. (...)

Os lugares de mediação para o Indizível são para todos – místicos incluídos – a Terra, o Cosmos, o Mundo, o corpo e o coração de cada um. Esses são os lugares a partir de onde se parte ao encontro do que nos transcende, para lá de tudo, no desconhecimento ou na ignorância (agnosia), no espanto – que é o início do religioso em nós: e “no espanto uma esperança” (Tolentino Mendonça. Os alicerces, ousados e eficazes, das diferentes vozes nas teologias feministas e no feminino hão de ser inclusivos (e não exclusivos), de modo a incorporarem diferença e diversidade, diálogo e debate, bem como hão de apelar a um descentramento do discurso religioso, para que aceite diversas conceções de religião, de ritual e de fé (Lawless).

Julgo que as muitas maneiras de as mulheres habitarem o mundo mudam de facto a narrativa-mestre religiosa, que é totalizante, e com isso contribuem para uma ligação mais essencial ao Divino. Ao olharem para trás na História tanto como para a frente, elas não podem deixar de reconhecer, como lembra Elaine Lawless, nessa narrativa religiosa dominante racismo e sexismo, homofobia e outras muitas exclusões (Lawless). Por isto mesmo, as teologias pensadas por mulheres podem proporcionar um regresso à luminosidade do Mistério, para abrir aí possibilidades de um encontro religioso entre as diferentes tradições, assim intensificando o sentido da responsabilidade pelo mundo e pela vida de todos. Nessas vozes a vir no feminino, expressar-se-á não uma qualquer obediência passiva ao já dito, mas antes a consciência nova, competente e límpida, de um não-saber. Desse não-saber ou ignorância que sabe, mas de outro modo, dão conta as vozes discípulas de Jesus no “Evangelho de Maria”, por exemplo nestes versículos:

«Pierre dit à Marie: "Soeur, nous savons que l’Enseigneur t’a aimée différemment des autres femmes. Dis-nous les paroles qu’Il t’a dites, dont tu te souviens et dont nous n’avons pas connaissance...» («Pedro disse a Maria: “Irmã, nós sabemos que o Mestre te amou diferentemente de a outras mulheres. Diz-nos as palavras que Ele te disse, aquelas de que te lembras e que nós não conhecemos..."»).

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

Isabel Allegro de Magalhães
In Para lá das religiões, ed. Chiado Editora
07.03.14

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