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O sabor dos beijos

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O sabor dos beijos

«De ti de ti
eu preciso
para longos Verãos de ti meu amor
e de o dizer estremeço
e não admito pausas
e não cesso de debruçar-me
a pedir-te os dedos
e depois o canto
e cobertos ficam lua e cabelos
como esta noite flui
dormir não é possível. Podemos velar na vida
que agora surge
para seu passo dominarmos.
Finalmente.»
(G, Gianfelici)

A Bíblia apresenta muitos casos de paixão amorosa, mas poucos são os que podemos considerar expressivos do "eros" ou do amor bíblico. Histórias como a de David e Betsabé, ou a de Amnon e da sua irmã Tamar, não encerram uma mensagem sobre o "erotismo" típico da Bíblia.

Para quem não conhecer estas histórias, vamos recordar sinteticamente a trama. A primeira - a de David - é uma história sucedida ao grande rei de Israel que, apesar de ter à disposição quantas mulheres e concubinas desejasse, ficou perdidamente enamorado de uma mulher casada com outro homem. E nem sequer precisou de dormir uma noite sobre o assunto, antes de determinar tomá-la para si. Como a mulher tomava o seu banho em casa, adjacente à casa do rei, este podia espiá-la do terraço, o que o deixava inflamado de desejo por ela. Foi sua cúmplice aquela hora da tarde, em que - como diziam os monges do deserto - se solta o demónio da tentação (cf. 2 Samuel 11).

A segunda história é a de um filho de David (tal pai, tal filho!) de nome Amnon, que se encantou cegamente por uma sua meia-irmã de nome Tamar, e que, para a possuir, meteu-se na cama fingindo-se doente. Como se recusasse a comer, seu pai rogava-lhe que tomasse alimento. Foi então que Amnon disse a David: «Manda a minha irmã Tamar preparar bolos para mim, que eu como da sua mão». Tamar tomou farinha pura, preparou bolos e levou-os a seu irmão. Mas, nesse momento, ele quis ficar a sós com ela e violou-a. No dia seguinte, porém, Amnon já não quis saber de Tamar. Tinha-lhe bastado uma hora para que a sua paixão se extinguisse (cf 2 Samuel 13, 1-22).

Em nenhuma destas histórias podemos sentir o sabor daquele amor autêntico que «derrete os membros», como diriam os líricos gregos, que conduz o amante até um terreno desconhecido, o da pessoa amada, irresistivelmente atraído pelo timbre da sua voz e pelos seus inebriantes perfumes... que o levam a sair de si e a meter-se por arriscados e estranhos caminhos do amor, dos quais nem sempre será capaz de regressar - tão definitiva é a realidade do amor: «forte como a morte é o amor, implacável como os abismos é a paixão» (Ct 8,6).

Fica-se capturado num amor sublime, num êxtase mais que celestial, como aquele que leva um poeta contemporâneo a dizer:

«Há na vida uma doçura
que eu, daquilo que ao Céu pertence,
por nada trocaria.
É quando, sabe-se lá porquê, começam,
entre duas bocas, estranhas até aí,
os tépidos milagres do amor dos beijos.»
(G. Conte)

Há um livro da Bíblia onde de modo especial ressoam as palavras e as palpitações do amor bíblico: o Cântico dos Cânticos. Começa precisamente assim: «Que ele me beije com beijos da sua boca! Melhores são as tuas carícias que o vinho» (1,2). Ressoam aqui os versos abrasados de Catulo à sua Lésbia: «Dá-me mil beijos, em seguida um cento, depois outros mil, depois outra vez cem...».

 

O "Cântico" e a origem da linguagem humana

O "Cântico" é, antes de mais, uma linguagem. A dos beijos, a do corpo. A sua semântica, essa, encontra sementes e sabores numa outra linguagem, sempre típica do "Cântico": a do coração, ou melhor, a do fundo da alma e do espírito.

É certo que a mulher aparece na Bíblia como companheira, como consolação, no seio de uma teia de relações. Adão estava só e triste, e o Senhor amassou a argila e criou a mulher. Para nela encontrar um eco de si, carne que lhe correspondesse.

Com ela nascia para o homem o uso ortodoxo da palavra, o sentido último da linguagem, que não é o de impor nomes, mas o de celebrar a alegria de um Vínculo:

«Esta é, realmente,
carne da minha carne
e ossos dos meus ossos» (Génesis 2,23).

A partir desse momento, o homem deixou de estar só, pois passou a ter com quem falar, tornando-se assim imagem perfeita de um Deus que é, antes de mais, "Palavra". É por isso que a linguagem vai dar origem, a partir da criatura-casal, à própria antropologia bíblica: também por isso, a "língua" encontra no "Cântico" a expressão do seu estatuto fundamental: o de ser veículo de comunicação e de fascínio entre duas pessoas. E, na realidade, as palavras outra coisa não são senão pontes para uma relação.

A língua é, por isso, e acima de tudo, expressão do corpo dos dois: do varão e da mulher. O casal possui, na verdade, um lugar e um meio privilegiado para se falarem, para alcançarem a intimidade, para se apresentarem como visibilidade do amor: o corpo.

 

A linguagem do corpo: "eros" enquanto «palavras»

«Quem é essa que desponta como a aurora,
bela como a Lua, fulgurante como o Sol?» (6,10)
«Ah! Como és bela, minha amiga! Como estás linda!
Teus olhos são pombas...
O teu cabelo é como um rebanho de cabras ...
Como fita escarlate são teus lábios
e o teu falar é encantador;» (4,1ss)
«Como és bela, minha amiga! Como estás linda!»

Antes de mais, o corpo é sedução, por ser "beleza". Primário e irresistível é o fascínio dos olhos, dos cabelos, dos lábios, do pescoço, dos seios, do ventre. Tão sublime que arrebata o coração. Fá-lo avançar, superado o receio, no aposento cobiçado e temido, no jardim cerrado onde florescem romãs e inebriam aromas de nardo, mirra e aloés. É um poço, aquela beleza, de que saem tragos de águas regenerantes. É o corpo banhado de humores fecundos; terra orvalhada para a qual se propende e à qual se torna, para se empapar no êxtase.

O cântico poisa e detém-se em todos os pormenores do corpo da amada:

«Quão formosos são teus pés nas sandálias, ó princesa!...
O teu umbigo é uma taça redonda...» (7,2-3)
«Como és bela, como és desejável...» (7,7).

As palavras dela ecoam isso mesmo:

«Tal como a macieira entre as árvores da floresta
é o meu amado entre os jovens.» (2,3).
«São cachos de palmeira os seus cabelos
negros como o corvo...
As suas faces são canteiros de bálsamo...
Os seus braços são cetros de ouro ...
as suas pernas são pilares de alabastro» (5,10 ss).

São palavras do "eros" e do êxtase. Onde se confundem os sons com as carícias. Onde as palavras são notas de harmonia, no concerto da voz, da alegria do olhar, da dança das mãos e do ventre e dos pés.

É a voz de tudo o que na alma do amante vibra, atravessando-lhe o corpo de uma convulsão de prazer e contemplação.

A beleza atrai o homem e também a mulher, ao ponto de ambos se perderem numa «morte, um sono, ou porventura um sonho» (W. Shakespeare).

A linguagem da beleza transforma e transfigura os corpos e as palavras: ela é um misto de canto, comunhão, expressão de liberdade, palavra inefável e silêncio grávido de novas auroras.

 

O lugar do encontro: um jardim

Cada linha do "Cântico" descreve um tempo e um espaço, um elemento, um gesto ou um movimento preparatório do encontro.

Antes de mais, o tempo, "tempo de primavera":

«Eis que o inverno já passou,
a chuva parou e foi-se embora;
despontam as flores na terra,
chegou o tempo das canções,
e a voz da rola
já se ouve na nossa terra;
a figueira faz brotar os seus figos» (2,11-13).

Tempo de vento:

«Levanta-te vento norte;
vem, vento do sul» (4,16),
ventos primaveris...

Em seguida o lugar: espaço campestre, onde ressoa a voz da rola (2,12), que propicia a intimidade e a confidência; ou um prado, onde o amado apascenta o seu rebanho de ovelhas e cabras:

«Se não tens disso [do meu paradeiro] conhecimento,
ó mais bela das mulheres,
sai no encalço do rebanho
e apascenta as tuas cabrinhas
junto às cabanas dos pastores» (1,8).

Um espaço solitário, remoto e escarpado, como os penhascos das rochas, onde a amada possa esconder-se a ponto de ficar inacessível (uma inacessibilidade que irá ser ulteriormente realçada pela menção de animais ferozes a impedirem o acesso a ela - função que era desempenhada pelo crocodilo nos poemas egípcios), pois o amor não dispensa o jogo da caça, da busca apaixonada:

«Minha pomba, nas fendas do rochedo,
no escondido dos penhascos,
deixa-me ver o teu rosto,
deixa-me ouvir a tua voz.
Pois a tua voz é doce
e o teu rosto, encantador» (2,14).

Ou o deserto aonde as donzelas se dirigem, indo ao encontro da liteira do rei Salomão. O lugar exterior mais não é senão uma moldura simbólica daquilo que realmente é o lugar do encontro: o «meu jardim»; «o meu leito»; «o quarto de minha mãe». O verdadeiro jardim:

«És um jardim fechado, minha irmã e minha esposa,
um jardim fechado, uma fonte selada» (4,12).

Nestes espaços propícios aos jogos amorosos, é intensa e única a evocação de perfumes e óleos: o nardo, o cinamomo, o aloés, a mirra; mas aqui a fragrância de todas as plantas aromáticas do mundo não é senão metáfora da essência ímpar do perfume dela:

«Nardo e açafrão
cálamo e canela,
com toda a espécie de árvores de incenso,
mirra e aloés,
com todos os bálsamos escolhidos» (4,14).

«Entrei no meu jardim,
minha irmã e minha esposa,
colhi a minha mirra e o meu bálsamo» (5,1).

Ou do dele:

«Levanta-te, vento norte; vem, vento do sul;
vem soprar no meu jardim.
Que se espalhem os seus perfumes» (4,16).

As joias: também elas metáfora para dizer essa única joia que é o rosto e a sua força de atração:

«Roubaste-me o coração, minha irmã e minha noiva,...
com um dos teus olhares,
com uma só conta do teu colar» (4,9).

O grande espaço que o "Cântico" concede à preparação do encontro tem por objetivo dar a ideia da importância do próprio encontro, a grande importância que para um encontro tem o ato de esperar e o ato de se preparar.

E isso, não apenas para poder acolher o outro da melhor maneira possível, mas também para curar o melhor possível de si mesmo, para ser parteiros do tesouro pessoal, daquilo que de mais precioso se possui e que é o ser «para».

Quando alguém que ama se embeleza para o amado, está a preparar-se para fazer de espelho da sua beleza. O encontro é um verdadeiro acontecimento: os seus protagonistas saem dele mudados, saem renovados, saem outros. Transformados pelo vigor do amor, uma espécie de comunhão.

A beleza dos amantes do "Cântico" é, por isso, uma criatura que nasce do encontro de ambos, é uma conquista do amor, e não um requisito individual a assegurar que se é amado!

A espera operosa, ativa, é portanto uma espécie de higiene material e espiritual, uma disciplina do corpo e do coração, em que a pessoa exprime a convergência da sua alma para determinada visão de beleza, a visão de beleza da comunhão.

«Leve-me para a sala do banquete,
e se erga diante de mim a sua bandeira de amor.
Sustentem-me com bolos de passas, fortaleçam-me com maçãs,
porque eu desfaleço de amor» (Ct 2,4-5).

No encontro, no êxtase, tem lugar a alegria absoluta dos sentidos: do ouvido (para a voz); da vista (para a beleza); do olfato (para os aromas); do gosto:

«Os teus lábios destilam doçura, ó minha noiva;
há mel e leite sob a tua língua» (4,11);
«Colhi ... do meu favo de mel, bebi o meu vinho e o meu leite» (5,1).

Estranhamente, o sentido menos convocado parece ser o próprio tato! O envolvimento total dos sentidos produz um autêntico estado de embriaguez:

«Bebei e embriagai-vos, ó bem amados!» (5,1).

Um irrenunciável e inefável prazer, uma inquietude quase divina, semelhante à sua descrição pela pena da poetisa grega Safo:

É ver-te um nada e logo nem palavra
consigo soltar.
Antes a minha língua quebra; fino,
súbito, sob a pele, o fogo desliza,
nos olhos nem vislumbre tenho e a zoar
sinto os ouvidos.
Inunda-me o suor, a tremura
toda me toma, verde mais que a erva
me vejo, e que a morte pouco tarda
me parece certo» (Frag. 31).

É por isso que o desejo amoroso se mostra persistente e irredutível. Vemos assim, estirada em seu leito, a noiva que, pela noite fora, busca o amado sem dele ouvir razões.

E porque o desejo obnubila a mente com a memória dos perfumes dele, ela é levada a repetir:

«Melhores são as tuas carícias que o vinho,
ao olfato são agradáveis os teus perfumes» (Cântico 1,2-3).

E esta demanda ardente obriga a sair de todos os redutos, de todos os tabiques, para poder reconstituir-se como criatura única e completa. A mesma demanda leva-o a implorar:

«Deixa-me ver o teu rosto
(e) o teu rosto é encantador» (2,14).

E leva a ir em busca do amante, para lá de todas as vedações:

«Encontraram-me os guardas
que fazem ronda pela cidade
"Vistes aquele que o meu coração ama?"» (3,3).

Leva a dizer:

«Já despi a minha túnica.
Vou tornar-me a vestir?
Já lavei os meus pés.
Vou sujá-los de novo?» (5,3).

Mas, no conjunto do "Cântico", esta nudez vem coberta com o véu do pudor, que é também o da distância.

«As tuas faces são metades de romã
por detrás do teu vé» (4,3).

Há, efetivamente, uma nudez que é solidão, violência; uma nudez impossível de desnudar ... É quando o corpo fica exposto como mera carcaça, «esteticamente» perfeita porventura, só que morta, privada da dignidade de um olhar amoroso, privada daquela correspondência de alma. Há também a nudez de um corpo que é sede de correspondência, pureza de intensa e fortíssima espera pelo outro, a ponto de nem sequer se dar conta de que são duas pessoas, de tão transparentes e leves que ficaram pelo ardor os membros dos amantes. É um corpo que não teme sequer a burca!

 

O sono

Outro lugar simbólico do encontro do noivo com a noiva: o sono. Após a noiva dizer:

«Encontrei aquele que o meu coração ama.
Abracei-o e não o largarei» (3,4).

O noivo compara o abraço dela ao seu sono. Pede às filhas de Jerusalém:

«Eu vos conjuro, mulheres de Jerusalém,
pelas gazelas ou pelas corças do campo:
não desperteis nem perturbeis o meu amor,
até que ele queira» (3,5).

Neste sono dela está estampado o sinal de um abandono feito de repouso e também de frémito. Há no sono um abraço, o êxtase dos amantes. O sonho do amor que arde e aplaca a sede, ao mesmo tempo que multiplica as suas tentações. O sono da "tardemah" (Génesis 2,21), da «sonolência», que é intimidade da qual, no Éden, Deus extraía a vida.

O sono da confiança, do abandono, como diz Charles Péguy:

«Aqui fica o segredo para se ser incansável.
É dormir.
É que os homens nunca o põem em prática.
A todos este segredo eu dei, diz Deus.
Para poderem ser incansáveis como as crianças.
Como a menina esperança.

Quem dorme passa bem a vida.
Quem dorme reza.

Não gosto de quem não dorme, diz Deus.
O sono é o amigo do homem.
O sono é o amigo de Deus.

O sono é talvez a minha criatura mais bela.
Eu próprio repousei
ao sétimo dia.
Quem tem coração puro dorme.
E quem dorme tem coração puro.»
(De: "Pórtico do mistério da segunda virtude").

O céu desse sono é a noite, esse aposento quente e inquieto do amor.

«No meu leito, toda a noite
procurei aquele que o meu coração ama» (3,1).

Penumbra estrelada, ateada por beijos, solidão absoluta da intimidade. Senda do coração, sem quaisquer indicações, janela a dar para a plenitude da vida: a correspondência dos amantes é o jardim que se anima com as flores desabrochadas pelo torpor da noite de amor.

«Anda, meu amado,
corramos ao campo,
passemos a noite sob os cedros;
madruguemos pelos vinhedos,
vejamos se as vides rebentam
e se abrem os seus botões,
e se brotam as romãzeiras.
Ali te darei as minhas carícias» (7,12-13).

O jardim «fechado» é a carne dele a fechar-se sobre a carne dela, tatuando o selo do êxtase. Um selo que anuncia a exclusividade do amor:

«Que é o teu amado
mais do que um amado... ?» (5,9).

É uma pergunta sem resposta, justamente porque o amor é gratuidade absoluta.

«Sessenta são as rainhas,
oitenta as concubinas,
e as donzelas, sem conta» (6,8).

Da noite de um amor único e gratuito irão florir as romãzeiras e nascerá uma nova vida. Pois o amor não se exaure, mas multiplica-se precisamente no ato de se despender. Após o abraço, o noivo dirá:

«Despertei-te, lá onde sentiu as dores a que te deu à luz» (8,5).

Na fonte, na origem da vida.

Nem tem a vida outra coisa melhor em si que essa hora de frescura clara,
«Nem tem a vida outra coisa melhor em si
que essa hora de frescura clara,
a hora de em amor despertar.»
(Ezra Pound)

O acordar da noiva irá encontrá-la inundada de um sonho novo, cheia de frutos. É assim que o amor é selo de vida e de morte, pois da morte ressurge a vida por meio do amor:

«Forte como a morte é o amor.
Nem as águas caudalosas conseguirão apagar o fogo do amor
nem as torrentes o podem submergir» (8,6.7).

Nunca no sono do amor se aplaca o desejo, portanto; nunca esmorece a vigília, pois a vida é vigília!

«Eu dormia,
mas de coração desperto» (5,2).

Tal como o amor e o "eros", também a vida diz:

«Volta sempre e toma-me,
amada palpitação, volta então e toma-me
acorde viva a memória do corpo
e corram no sangue antigos desejos
enquanto os lábios recordam, e também a carne,
e nas mãos um sentir táctil se reacende;
volta sempre e toma-me, à noite,
enquanto os lábios recordam e a carne.»
(C. Kavafis)

E, tal como a vida, também «o amor não possui nem pode ser possuído» (K. Gibran).

«Fui abrir ao meu amado
e o meu amado já tinha desaparecido.
Fora de mim, corro atrás das suas palavras;
procuro e não o encontro,
chamo e não me responde» (5,6).

O amor, que nunca se deixa vulgarizar pela garantia nem pela certeza, é sempre iluminado pelo Sol da gratuidade, que é também gratuidade, desejo sempre mais ardente.

«Sem o gáudio do amor
que paladar tem a vida?
Um rei sem amor, um deus,
não os invejo eu.»
(Simónides, 556 a.C.)

 

O amor do "Cântico" como visão

Na realidade, mesmo que apresente o corpo como lugar da incarnação amorosa e, por isso, berço e guardião da vida, o "Cântico" é um complexo de estilizações. O encontro amoroso não deixa de ser uma espera, primavera de promessas, rito preparatório, tensão, impulso.

O lugar do encontro - afirma Guido Ceronetti - está «vazio» como o Santo dos Santos. Os amantes apenas se encon­tram em relâmpagos objetivamente fugazes.

A presença d'«ele» e d'«ela» insinua-se desde a primeira página através da «voz», essa sílaba de som sussurrada ao ouvido do coração e que desperta o corpo todo, pedindo-lhe que se levante, caminhe e corra, como que ressurgindo em "edénica" primavera.

O "Cântico" tem a função de apresentar o "eros" como sinal e instrumento para manter vivo o desafio do vínculo amoroso.

Este vínculo amoroso nunca deixa, no entanto, de ser um sonho; e é no "Cântico" que a visão desse sonho encontra a sua expressão. Nele se diz a idealidade toda do amor bíblico.

É esta idealidade que, por sua vez, tem de continuar a iluminar e a sustentar a esperança em Deus e na Terra, de modo que, para os homens, o amor se possa afirmar como a única possibilidade de florescerem cheios de vida, de graça e de futuro.

O Deus da Bíblia é teimoso como a noiva do "Cântico", e não se resigna à ausência da amada. Pelo contrário: Ele deixar-se-á - tal como ela - prender pelos guardas da cidade, deixar-se-á trespassar, ferir e despojar do seu manto pelas sentinelas das muralhas. Também Ele, doente de amor, irá querer a todo o custo recuperar a sua amada.

«Ao deserto a conduzirei,
para lhe falar ao coração» (Oseias 2,16).

 


Rosanna Virgili
In "Os aposentos do amor - Amor, casal, matrimónio na Bíblia", ed. Paulinas
Publicado em 20.04.2023

 

 
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Há um livro da Bíblia onde de modo especial ressoam as palavras e as palpitações do amor bíblico: o Cântico dos Cânticos. Começa precisamente assim: «Que ele me beije com beijos da sua boca! Melhores são as tuas carícias que o vinho»
O "Cântico" é, antes de mais, uma linguagem. A dos beijos, a do corpo. A sua semântica, essa, encontra sementes e sabores numa outra linguagem, sempre típica do "Cântico": a do coração, ou melhor, a do fundo da alma e do espírito
Antes de mais, o corpo é sedução, por ser "beleza". Primário e irresistível é o fascínio dos olhos, dos cabelos, dos lábios, do pescoço, dos seios, do ventre. Tão sublime que arrebata o coração. Fá-lo avançar
A linguagem da beleza transforma e transfigura os corpos e as palavras: ela é um misto de canto, comunhão, expressão de liberdade, palavra inefável e silêncio grávido de novas auroras
Nestes espaços propícios aos jogos amorosos, é intensa e única a evocação de perfumes e óleos: o nardo, o cinamomo, o aloés, a mirra; mas aqui a fragrância de todas as plantas aromáticas do mundo não é senão metáfora da essência ímpar do perfume dela
O grande espaço que o "Cântico" concede à preparação do encontro tem por objetivo dar a ideia da importância do próprio encontro, a grande importância que para um encontro tem o ato de esperar e o ato de se preparar
Esta demanda ardente obriga a sair de todos os redutos, de todos os tabiques, para poder reconstituir-se como criatura única e completa. A mesma demanda leva-o a implorar: «Deixa-me ver o teu rosto/ (e) o teu rosto é encantador»
Há também a nudez de um corpo que é sede de correspondência, pureza de intensa e fortíssima espera pelo outro, a ponto de nem sequer se dar conta de que são duas pessoas, de tão transparentes e leves que ficaram pelo ardor os membros dos amantes
Penumbra estrelada, ateada por beijos, solidão absoluta da intimidade. Senda do coração, sem quaisquer indicações, janela a dar para a plenitude da vida: a correspondência dos amantes é o jardim que se anima com as flores desabrochadas pelo torpor da noite de amor
Na realidade, mesmo que apresente o corpo como lugar da incarnação amorosa e, por isso, berço e guardião da vida, o "Cântico" é um complexo de estilizações. O encontro amoroso não deixa de ser uma espera, primavera de promessas, rito preparatório, tensão, impulso
É esta idealidade que, por sua vez, tem de continuar a iluminar e a sustentar a esperança em Deus e na Terra, de modo que, para os homens, o amor se possa afirmar como a única possibilidade de florescerem cheios de vida, de graça e de futuro
O Deus da Bíblia é teimoso como a noiva do "Cântico", e não se resigna à ausência da amada. Pelo contrário: Ele deixar-se-á - tal como ela - prender pelos guardas da cidade, deixar-se-á trespassar, ferir e despojar do seu manto pelas sentinelas das muralhas. Também Ele, doente de amor, irá querer a todo o custo recuperar a sua amada
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