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O sentido do absoluto do bem

O sentido do absoluto do bem

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A partir do nosso sempre limitado conhecimento dos mitos antigos, de várias procedências, podemos dizer que a intuição primeira que a humanidade manifesta é a intuição de algo de ontologicamente positivo, que constitui um absoluto, e que coincide com isso que vai permitir construir o sentido do bem. Neste sentido, pois é precisamente o sentido o que está aqui em causa, podemos dizer que o sentido do bem coincide com a intuição primeira do que é ontologicamente positivo em absoluto, seja isso o que for na sua consubstanciação histórica concreta e pormenorizada.

Isso a que se reporta tal sentido constitui o que será designável e designado como «o divino» ou «deus». Também na concretização histórica destas designações a variedade abunda, numa imensidade de versões adaptadas ao momento histórico, ao «kairos» próprio de cada pessoa, de cada grupo de pessoas, de cada cultura, em sua aceção mais ampla, compreensiva e intensivamente considerada.

Mesmo nos monumentos gráficos que chegaram até nós, como Altamira e Lascaux, entre outros, de impossível hermenêutica rigorosa, podemos observar isso que era de tal modo importante para as pessoas que os criaram que à sua criação dedicaram energias importantes, cujo emprego é inexplicável humanamente se não corresponder a uma relação com algo que justifique tal dispêndio, de outro modo absolutamente entrópico e antieconómico.



O que importa fundamentalmente é que há uma intuição de positividade ontológica absoluta por parte de seres humanos, que os põe imediatamente em relação com algo que, na relação, os transcende, de algum modo, e, em tal ato de relação, se mostra como «o bom», «o bem»



Assim, pode especular-se criticamente que isso que surge grafado e gravado em tais locais é algo de tal modo ontologicamente positivo que valeu humanamente a pena o esforço. É esta relação que constitui o ato que liga semanticamente o ser humano ao que é o «seu bem», o bem entendido como isso cuja importância ontológica justifica o trabalho, a energia, o tempo, a dedicação, a paixão, quiçá, o amor.

Isso que é o correlato do ser humano nesta relação, isso é o bem. E não há outra forma de humanamente definir o que é o bem.

Não se confunda esta impossibilidade com o facto, aparentemente contraditório, de haver milhentas formas de sua concretização, milhentas formas de concretização do que é a «objetualização do bem».

O que importa fundamentalmente é que há uma intuição de positividade ontológica absoluta por parte de seres humanos, que os põe imediatamente em relação com algo que, na relação, os transcende, de algum modo, e, em tal ato de relação, se mostra como «o bom», «o bem».

Note-se que, nada nesta intuição é do âmbito do ético em seu sentido comum. Ora, tal significa que o primeiro dado humano acerca do bem não faz deste uma categoria moral, mas uma categoria anterior a toda a moral, anterior a toda a valoração cultural secundária, que pressupõe logicamente para que possa ocorrer, um absoluto de sentido que sirva de paradigma de comparabilidade. É este absoluto paradigmático de comparabilidade que nos é dado pela intuição do bem, do absoluto ontológico.



Não é possível qualquer forma de fé, laica ou religiosa, sem a intuição do absoluto do bem, sob qualquer forma. É a variação destas formas no concreto da história que tem permitido a vida humana como ato de sentido, a cultura, em primeiríssima instância, na cultura, a religião, na religião, a objetividade de uma relação que não se esgota na ficcionalidade de uma imaginação mágica



Numa perspetiva que, para já, é totalmente laica – se bem que se refira a algo que é básico em termos teológicos, mas num outro nível e num outro contexto –, o texto de nosso conhecimento em que tal surge de forma mais nítida, porque mais simples, clara e direta, é o do Génesis, em que é o próprio Deus criador de tudo o que o transcende que, imediatamente após pôr cada lote de criaturas em ser, proclama a sua bondade, repetidamente, a sua beleza, esplendor da bondade, na versão dos Setenta.

Em termos lógicos e ontológicos, que quer este trecho do mito fundador judaico-cristão dizer? Note-se que não é, de modo algum, necessário partir de um ponto de vista crente para se fazer uma análise lógico-ontológica do que aqui está em causa.

Então, que significa esta afirmação de bondade por parte do obreiro relativamente à sua obra?

Em primeiro lugar, cumpre perguntar: «bom» porquê? Porque o eventual capricho divino assim o decide? Ou a razão é mais profunda, objetiva, transcendente a qualquer subjetividade, mesmo «divina»?

O que é isto do «bem» do criado e de onde se retira esta «qualidade»?

A vantagem epistemológica de se prescindir de uma perspetiva de fé reside em que se evita algo da ordem do erro lógico da chamada «petição de princípio», que se consubstanciaria numa resposta como: «o que é criado é bom porque foi criado por Deus».



O absoluto do bem, em termos universais, é objetivamente isso que possibilita todo o ato, todo o ser, toda a concretização histórica, temporal, no sentido do movimento onto-diferenciador segundo o ato e o ser



Ora, é precisamente o absoluto objetivo da realidade transcendente à sua afirmação que está em causa.

Este absoluto está em causa em qualquer possível afirmação, pelo que, deste modo, ser afirmado por «Deus», por mim ou por um outro afirmante qualquer redunda no mesmo: há que provar de forma logicamente anterior o que é isso do bem como absoluto para poder sustentar que qualquer afirmante é sequer suficientemente «bom» para poder afirmar a bondade de algo que, de alguma forma, o transcenda.

No entanto, se se conseguir provar a necessidade lógica do bem como sustentáculo possível para qualquer afirmação possível de bondade, temos aberto o caminho para todas as formas de constituição de sentido, como absoluto de positividade ontológica, o que implica, imediatamente, a possibilidade da própria Teologia como lógica da fé, quer dizer, como lógica de isso em que se acredita residir o absoluto do bem.

A fé, qualquer seja a sua forma, necessita de uma intuição de absoluto de bondade sobre que se exercer, sem o que não é possível.

Não é, pois, possível qualquer forma de fé, laica ou religiosa, sem a intuição do absoluto do bem, sob qualquer forma. É a variação destas formas no concreto da história que tem permitido a vida humana como ato de sentido, a cultura, em primeiríssima instância, na cultura, a religião, na religião, a objetividade de uma relação que não se esgota na ficcionalidade de uma imaginação mágica, mas se alicerça numa intuição realíssima, a mais preciosa das intuições.



Isso a que se considera como divino ou Deus seja o absoluto ontológico em si e por si, que de nada de estranho a si depende. De uma forma mais mítico-poética ou mais orto-racional, é isto que merece, novamente de muitas formas e com muitos feitios, o nome de divino, que merece o trabalho de Altamira e Lascaux, e todo o labor de adoração realizado por milhares de culturas ao longo da história



Que intuição é esta?

A intuição metafísica de que nada pode vir do nada, absolutamente, pelo que, a haver algo – e há algo – isso que justifica ontologicamente tal ato é infinitamente potente em ato, de modo a que isso que a intuição também nos dá como contraditório de tal ato não passe de isso mesmo, de uma estranha, mas real, intuição da possibilidade da absoluta negação do ato infinito.

Isso que é o ato que “impede” o absoluto do nada, isso é o bem. Na sua infinita grandeza, quando intuída claramente, tem-se dado o que receberá, multiformente, o nome de «divino» ou de «Deus».

Percebe-se, então, o que significa a exclamação do criador genesíaco cada vez que acaba de enriquecer o acervo ontológico com o absoluto de novas criaturas e o absoluto de novas possibilidades: e são estas possibilidades, como condições metafísicas de autoenriquecimento propriamente ontológico do criado, do mundo, que constituem as grandes criaturas.

O maior bem é o bem do possível, que é o absoluto da possibilidade de que tudo depende: sem este absoluto, nada pode ser, porque nada é, em absoluto, possível. O bem como algo de criado é fundamentalmente possibilidade. Não possibilidade no comum sentido fraco que se lhe atribui – néscio –, mas como isso que encerra em si toda a virtualidade ontológica de todo o enriquecimento ontológico do mundo, em seu sentido mais vasto pensável.

O absoluto do bem, em termos universais, é objetivamente isso que possibilita todo o ato, todo o ser, toda a concretização histórica, temporal, no sentido do movimento onto-diferenciador segundo o ato e o ser.

Não admira, assim, que, já numa perspetiva teológica – que pode ser mítico-teológica ou ratio-teológica (e têm sempre de conviver) – se intua que Deus é o bem como possibilidade criatural de todos os bens.

Ora, tal implica que isso a que se considera como divino ou Deus seja o absoluto ontológico em si e por si, que de nada de estranho a si depende. De uma forma mais mítico-poética ou mais orto-racional, é isto que merece, novamente de muitas formas e com muitos feitios, o nome de divino, que merece o trabalho de Altamira e Lascaux, e todo o labor de adoração realizado por milhares de culturas ao longo da história de uma humanidade dividida pelo pormenor da adoração do absoluto do bem, mas unida por um mesmo tipo de intuição do absoluto do bem.



 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 03.04.2017 | Atualizado em 20.04.2023

 

 
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