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Ensaio
O vazio que persiste à minha beira: sobre o lugar de Deus na poesia contemporânea

«Não tinha nada donde vim. Aqui não encontrei
O que tive e a cadeira não serve o meu repouso.
Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres
O vazio que persiste à minha beira. (1) [Daniel Faria]

 

1. Há uns anos, em «A primitiva labareda» (2), José Tolentino Mendonça repetiu a pergunta de Jean-Claude Pinson, em Habiter en poète (3): «Que relação pode ainda estabelecer a poesia moderna com qualquer coisa da ordem do sagrado?» E repetiu-a não como quem se dispõe a encontrar uma resposta, mas como quem se propõe a adentrar-se na pergunta. Não quero distanciar-me de «A primitiva labareda» de Tolentino Mendonça, não porque aí encontre uma resposta, mas porque me permite recentrar o problema na densidade premente da pergunta.

Refletir sobre o lugar de Deus na literatura contemporânea excede largamente qualquer propósito académico. É quase um exercício de ininteligibilidade propositada, uma espécie de cegueira consentida, na medida em que se não consigo abranger a extensão do conceito literatura contemporânea, como poderei conceber a inteligibilidade da expressão lugar de Deus? Mesmo se circunscrevesse esta reflexão à literatura portuguesa contemporânea, continuaria com um conceito excessivamente extenso. E mesmo que circunscrevesse esta reflexão à obra de um autor, como poderia situar Deus nessa obra?

Mais do que tentar perceber o lugar de Deus na literatura contemporânea, creio que se trata de saber se [concretamente na literatura] Deus é ainda um nome possível. E esta não é necessariamente uma formulação mais simples (4). Esta questão não é simples em nenhuma das suas formulações possíveis, independentemente do enquadramento temporal ou dos processos de redução contextual da reflexão.

 

2. Quando perguntamos sobre o lugar de Deus na literatura contemporânea, talvez admitamos mais ou menos conscientemente a existência de um pressuposto: o lugar de Deus na literatura é temporalmente variável. Ou seja: na literatura antiga ou medieval, Deus ocupava um lugar diferente daquele que ocupou na literatura moderna ou que ocupa na literatura contemporânea [do nosso tempo, pós-moderna… dos últimos 25 anos, se tivermos a queda do Muro de Berlim como referência histórico-simbólica do fim da modernidade]. Com efeito, não é difícil aceitarmos o facto de Dostoiévski não ser contemporâneo, mas talvez a questão epocal não seja tão evidente, por exemplo, no caso de Sartre.

Não quero esclarecer esta questão, propositadamente. Até porque o lugar de Deus – seja na literatura, na filosofia ou nas mais prosaicas expressões do quotidiano – é uma questão enfatizada pelo processo de secularização, que a modernidade redimensionou até ao final do século XIX e durante o século XX, se legitimamente considerarmos que a Idade Moderna não termina com a Revolução Francesa [no final do século XVIII], nem com a morte de Nietzsche [em 1900]. E se não quero esclarecer propositadamente esta questão, é fundamentalmente porque me parece uma questão acessória: afirmar que o processo de secularização expulsou Deus da literatura resulta numa observação tão fácil quanto qualquer generalização precipitada. Não é necessariamente um sofisma, apenas uma aparência tentadora com expectativas de lugar-comum. Apenas isso.

E não se trata de saber se hoje se escrevem [ou leem] mais ou menos livros sobre Deus, ou se os seus títulos, explícita ou implicitamente, integram o semantema Deus. Não se trata de um estudo com o objetivo de saber se proporcionalmente Deus é mais ou menos evocado, refletido, afirmado ou negado em obras medievais, nos versos de um poeta romântico ou nas páginas de um ficcionista contemporâneo. Um estudo desse género teria certamente algum interesse, mas é fundamentalmente irrelevante para sabermos se Deus é ainda [na literatura do nosso tempo] um nome possível.

 

3. Com efeito, poderíamos tentar situar o problema na expressão do semantema Deus num contexto mais circunscrito. Por exemplo, na poesia portuguesa publicada em 2010. Sabemos que foram publicados cerca de vinte mil livros em Portugal em 2010; precisaríamos saber quantos desses livros imprimiram poesia e teríamos que, depois de uma leitura criteriosamente analítica e hermenêutica, quantificar ocorrências, identificar contextos, estabelecer similitudes semânticas e, por fim, apresentar estatísticas.

Porém, não importa tanto saber quanto espaço o semantema Deus ocupou nas páginas dos livros de um género literário específico num determinado período ou numa perspetiva histórico-literária mais geral. Creio que importa tentar perceber o modo como Deus tem habitado não só as páginas dos livros, mas também o imaginário dos seus autores, seja na homilética barroca, de caráter essencialmente moralizante, seja nos sombrios labirintos dos existencialistas ou nas derivas de poetas experimentalistas. E perceber o modo como Deus tem habitado o imaginário dos escritores, implica de alguma maneira tentar perceber o modo como tem habitado o imaginário dos leitores.

 

4. Existe a consciência generalizada de que nos nossos dias Deus [ou a ideia de Deus, ou a em Deus] é uma questão secundária. Pergunto-me se na Idade Média [tão insistentemente caracterizada e compartimentarizada como teocêntrica] os contemporâneos de Francisco de Assis experimentaram a intensidade incendida da sua espiritualidade ou se os contemporâneos de Tomás de Aquino discutiram as implicações da sua Suma Teológica. É evidente que o comportamento de Francisco de Assis constituía um escândalo para a generalidade os seus contemporâneos, sobretudo nos meios eclesiásticos mais piedosos, onde não faltou quem o considerasse herético; do mesmo modo, foram raros os interlocutores intelectuais de Tomás de Aquino e terão sido mais os que reagiram à fama da sua eloquência do que os que se adentraram nas profundezas do seu pensamento teológico e filosófico.

É difícil aceitarmos que em todas as sociedades existe uma percentagem pouco relevante e mais ou menos estável de pessoas para quem a questão de Deus é uma dimensão importante nas suas vidas. Com efeito, é evidente que, independentemente da diversidade e da especificidade dos contextos sociológicos, eclesiais e histórico-culturais, a generalidade das pessoas não considera a questão de Deus como uma questão estruturante e existencialmente fundamental, seja na Idade Média ou nos nossos dias. E considerar a questão de Deus como uma questão estruturante e existencialmente fundamental não depende das igrejas estarem cheias ou vazias, não depende de se tratar de um meio urbano ou de um meio rural, nem de se tratar de uma sociedade com mais ou menos promiscuidade institucional entre a Igreja e o Estado. Um idoso dizia-me, recentemente, que hoje já não há respeito por Deus, porque no seu tempo os homens tiravam o chapéu quando passavam diante de uma igreja. Resta saber se a atitude de tirar o chapéu quando se passa diante de uma igreja torna a questão de Deus uma questão estruturante e existencialmente fundamental.

Basta alguma honestidade intelectual para percebermos que em Portugal o número de batizados [ou mesmo o número de pessoas com o mínimo de implicação eclesial] não é determinante para revalorizar a questão de Deus nas suas implicações e expressões éticas ou estéticas. Quero com isto relativizar o argumento espácio-temporal, ou seja: creio que a questão de Deus não é necessariamente mais considerada num contexto medieval ou rural [em que a Igreja tem uma presença institucional, sociológica e tradicional mais evidente], do que nos labirintos desta indefinida pós-modernidade, nas encruzilhadas das nossas grandes cidades. Do mesmo modo, uma literatura em que o substantivo Deus é recorrente não considera necessariamente mais a questão de Deus do que numa literatura em que esse substantivo é fundamentalmente omisso.

Importa ainda afirmar que a questão de Deus está longe de ser uma questão circunscrita aos meios religiosos sociologicamente demarcados. No caso concreto da literatura portuguesa dos últimos duzentos anos [muito marcada por autores considerados ateus, agnósticos ou simplesmente anticlericais], o seu contributo para a reflexão sobre a questão de Deus não foi menos profundo ou consequente do que o pensamento teológico em contexto académico ou eclesial.

 

Este artigo será publicado integralmente na revista "Igreja e Missão".

 


(1) Daniel Faria, Poesia [Assírio & Alvim, 2012, p. 57].

(2) Prefácio do livro Três vezes Deus, de Ana Marques Gastão, António Rego Chaves e Armando Silva Carvalho [Assírio & Alvim, 2001].

(3) Jean-Claude Pinson, Habiter en poète, Champ Vallon, 1995.

(4) Como escreveu Nabokov a propósito da suposta simplicidade de A morte de Ivan Iliitch,de Tolstói: «a simplicidade é oca. Nenhum grande escritor é simples. O jornal é simples. O jornalês é simples. Upton Lewis é simples. A mamã é simples. Os resumos são simples. A porcaria é simples. Mas os Toltóis e os Melvilles não são simples.” Vladimir Nabocov, «Posfácio», in Lev Tolstói, A morte de Ivan Iliitch, Relógio d’Água, 2007, p. 102.

 

 

José Rui Teixeira
Professor na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, diretor da Universidade Católica Editora (Porto), membro do Secretariado Diocesano da Pastoral da Cultura (Porto)
04.06.13

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Paul Klee, Der Seiltänzer, 1923

 

 

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