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Contemporaneidade

Reinventar a Solidariedade (em tempo de crise) - As razões do Simpósio

Atenta à atual conjuntura nacional e mundial, a Conferência Episcopal Portuguesa decidiu promover um simpósio de interpelação da sociedade portuguesa, convocando todos os cidadãos para uma reflexão alargada e profunda sobre o futuro da solidariedade e o modelo de desenvolvimento das sociedades hodiernas.

Mais do que encontrar formas de ultrapassar a atual crise, pretende-se debater premissas, ideias e iniciativas que possam contribuir para um modelo de desenvolvimento mais humano e solidário. A crise deve ser, sobretudo, uma oportunidade de passagem para um paradigma de desenvolvimento que permita o pleno e sustentável desenvolvimento do Homem e das sociedades.

Pretende-se não só inspirar e mobilizar para a ação a sociedade portuguesa, como reconhecer as centenas de gestos e iniciativas que, quotidianamente, são expressão de solidariedade, dentro e fora da Igreja.

O desafio, para o qual se convocam todos os cidadãos, é o de se encontrarem novos modos e expressões para a solidariedade, ou seja, para que cada um de nós, individual e coletivamente, seja capaz de reinventar a solidariedade. Solidariedade entendida como expressão de Amor pelo próximo, mas também por todas as formas de vida e pelas futuras gerações.

Sob o título «Reinventar a Solidariedade (em tempo de crise)», o simpósio terá lugar no dia 15 de maio e enquadra-se nas celebrações do cinquentenário do Santuário de Cristo Rei (de Almada). A Igreja portuguesa assinala a efeméride com três iniciativas distintas: de reflexão - o simpósio, no dia 15 de maio -, de oração e celebração - nos dias 16 e 17 de maio -, e de ação social - que se concretizará na iniciativa “Igreja Solidária”, a decorrer nos meses seguintes.

 

Um dia com memória

O dia 15 de maio é, desde logo, uma data simbólica para a realização do simpósio pois evoca uma longa tradição de encíclicas sobre a realidade social, das quais a primeira foi a “Rerum Novarum”, de Leão XIII, publicada a 15 de maio de 1891, e à qual se seguiram a “Quadragesimo Anno” (Pio XI), a “Mater et Magistra” (João XXIII), a “Octogesima Adveniens” (Paulo VI), a “Laborem Exercens” (João Paulo II), e a “Centesimus Annus” (João Paulo II), todas publicadas, no decorrer do século XX, no dia 15 de maio.

 

Evitar leituras superficiais ou economicistas de um fenómeno mais vasto e profundo

O mundo encontra-se numa fase de descontinuidade e acelerada mudança. Os líderes parecem frágeis e titubeantes. Num contexto de incerteza e profundas transformações económicas, sociais e políticas a nossa consciência não pode deixar de estar alerta.

Como referiu a Comissão Nacional Justiça e Paz, na sua Reflexão Quaresmal, a presente crise mundial, sendo financeira, económica e social, é também política, civilizacional, ambiental, moral e espiritual. E, portanto, é fundamental que todas essas dimensões se conjuguem na análise e na busca de soluções. Só assim se evitarão leituras superficiais ou economicistas de um fenómeno bem mais vasto e profundo.

Um dos fatores que limita a nossa capacidade, individual e coletiva, para reinventar os modelos atuais de organização económica, política ou social, é a existência de “ideias padrão”, de circulação rápida, mediática e, aparentemente, consensual. Inebriados pelos holofotes dessas ideias, temos dificuldade em ser criativos, em desviar o olhar para territórios na obscuridade e neles encontrar o perfil de outras realidades e possibilidades.

A lógica da corrente principal modela excessivamente o nosso imaginário, o horizonte do possível, impedindo-nos de vislumbrar alternativas. Reinventar seja o que for, nomeadamente os nossos modelos de organização económica, social e política ou a solidariedade, obriga-nos a resistir ao poder inebriante das ideias padrão, pois só do que ainda jaz na sombra poderão emergir soluções alternativas.

A reinvenção da solidariedade e do capitalismo não depende tanto dos temas da atualidade, designadamente de melhores modelos de governação e regulação e de métodos de moralização do capitalismo e das lideranças, mas do empenho de cada um de nós numa sociedade mais humana e solidária. Por outro lado, a reinvenção da economia ou do capitalismo, não passa tanto pelos modelos dominantes - sejam eles o intervencionismo público (de Keynes), o liberalismo (dos neoclássicos), ou mesmo a “destruição criativa” (de Schumpeter). Ela depende, sobretudo, da adoção de modelos alternativos aos modelos económicos vigentes, nomeadamente da adoção em larga escala de soluções de economia solidária.

Alguns ainda acreditam que uma cirurgia rápida poderá restaurar o «status quo», repondo um sistema baseado em pressupostos com origem na Revolução Industrial. Mas, cada vez mais, para uma maioria, estamos num daqueles raros pontos de inflexão em que nada vai voltar a ser como antes.

Parece cada vez mais consensual que os pressupostos na base do progresso das sociedades desenvolvidas ruíram. Os invulgares níveis de crescimento económico de alguns países ao longo dos "trinta anos gloriosos", que se seguiram à II Guerra Mundial, e do período neoliberal que lhes sucedeu, assentavam em pressupostos e crenças insustentáveis. A saber: o economicismo (a ideia de que é suficiente haver crescimento económico para haver desenvolvimento e bem-estar); o crescimento contínuo (a ideia de que é vital a riqueza/produção crescer continuamente); o consumismo (a ideia de que só níveis crescentes de consumo podem assegurar crescimentos contínuos); o produtivismo (a ideia de que o crescimento contínuo depende de ganhos contínuos de eficiência); o quantitativismo (a obsessão pelos “números” e pelos indicadores económicos em detrimento de outros); o uniformismo (a ideia de uniformizar para obter ganhos de eficiência); o etnocentrismo (a ideia de que há "receitas de sucesso" para as “outras” sociedades menos desenvolvidas); o antropocentrismo (a ideia de que o Homem está no centro da Vida); o racionalismo (como pilar de todo o progresso científico, tecnológico e social); a linearidade em vez da complexidade.

Mas se os pressupostos e os sonhos das últimas décadas feneceram, que outros pressupostos e sonhos nos esperam na sombra? Irá o capitalismo adaptar-se ou deverá colocar-se a questão: o que poderá vir depois do capitalismo? O triunfo do capitalismo parecia inequívoco e definitivo. Tão certo e natural como a eletricidade. As empresas multinacionais eram tidas por grandes impérios com mais poder do que certas nações. Até já se invocava o “fim da história” (Fukuyama). Contudo, como escreveu Marx, “tudo o que é sólido se dissolve no ar”. Ou seja, o capitalismo, estará sempre sujeito a inúmeras forças que não controla, e por isso o seu futuro será sempre incerto.

 

É possível e necessário outro tipo de economia

Uma das consequências da perda de vigor do capitalismo será a substituição do Produto Interno Bruto (PIB), como medida de desenvolvimento, por medidas de bem-estar mais holísticas. A OCDE já mobilizou um grupo de vencedores do prémio Nobel para a aconselharem sobre indicadores alternativos ao PIB. Melhorias na saúde, na educação e na qualidade do ambiente deverão fazer parte de um indicador integrado a adotar.

No passado, as democracias guiaram e reciclaram várias vezes o capitalismo, prevenindo, por exemplo, a venda de pessoas, de votos e de trabalho infantil, forçando a existência de regras e de valores, e financiando, por exemplo, o conhecimento e a saúde. Só assim alguns países atingiram um notável desenvolvimento do século XX.

Hoje, para prevalecer, o capitalismo terá de se tornar solidário. Solidário com a natureza, com os trabalhadores, com a família, com as comunidades locais e com a sociedade em geral.

É possível e necessário outro tipo de economia, compatível e solidário com a Vida. Uma economia solidária não no sentido estritamente social, mas no sentido sistémico, ou seja, solidária com as pessoas, com a natureza, com a cultura e o conhecimento. O desenvolvimento não pode ser entendido como mera acumulação de riqueza, sem consideração pelo bem comum, pelo ambiente, e pelas dimensões sociais, culturais, e espirituais do ser humano.

Quando a interdependência - económica, social, política e cultural - é reconhecida, a resposta correlativa, como atitude moral e social e como “virtude”, é a solidariedade. Esta, portanto, não é um vago sentimento de compaixão ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um (João Paulo II), pois todos somos responsáveis por tudo diante todos (Dostoievsky).

Está em causa cada um de nós e os pressupostos e valores do nosso modelo de desenvolvimento coletivo. Está em causa a pergunta colocada no Evangelho segundo São Mateus: “De que serve a alguém ganhar o mundo inteiro, se vem a perder a sua alma?” (16,26).

 

Talvez devêssemos olhar para a linha do horizonte

Lutemos, pois, pela libertação do Homem de toda a servidão, económica, social, política e cultural, mas recordemos que a libertação radical do Homem deve consistir numa mais profunda abertura a Deus, pela conversão do coração. A missão da Igreja inclui essencialmente “a libertação integral do Homem: a libertação de todas as estruturas sociais, económicas e políticas, injustas e opressoras, que o impedem de ser plenamente Homem e relacionar-se, como irmão, em verdadeira solidariedade.” (J. Policarpo)

Não só a chave para um desenvolvimento solidário é um humanismo total (J. Maritain), como o desenvolvimento integral do pessoa depende de um desenvolvimento solidário da humanidade (Populorum Progressio). A inovação, a economia, a política, a ciência e a tecnologia só têm sentido se estiverem ao serviço da pessoa.

Reinventar a solidariedade depende de se passar do mero assistencialismo à capacitação do Outro. Cada um deve ser artífice do seu próprio destino, gozando de oportunidades para desenvolver e aplicar os seus dons, e para usufruir de uma vida longa e criativa. O assistencialismo deve ser circunstancial ou transitório, pois não reconhece nem dignifica o Outro nos seus dons e capacidades.

Há uns dias, ouvi a uma socióloga que a coesão social depende do reconhecimento dos direitos humanos, da existência de instâncias de inscrição social (a família, a Igreja, o trabalho, a escola), mas sobretudo da confiança nos outros - ora nada cimenta melhor a confiança nos outros do que a solidariedade. Aliás, a paz é fruto da solidariedade.

Geoff Mulgan, pensador inglês contemporâneo, sugere que para descobrirmos o que se segue, talvez devêssemos olhar para o alto, para a linha do horizonte, pois ela constitui um teste simples aos valores e às estruturas sociais dominantes. Ora, aplicando o teste, há alguns séculos, os maiores edifícios eram fortes, igrejas e templos. Depois foram os palácios e os castelos. Na transição do século XIX para o século XX, os maiores edifícios eram edifícios públicos, nomeadamente estações de comboios, pontes, hospitais e museus. No final do século XX, os maiores edifícios eram bancos. Agora, com os bancos em recessão, que tipo de edifícios se destacarão na linha do horizonte? Edifícios de lazer e bem-estar? Universidades? Galerias de arte? Jardins suspensos?

Seja o que for o futuro, ele terá de ser mais solidário para ser viável, terá de vencer o desafio de reinventar a solidariedade. Ora, um modelo de desenvolvimento disruptivo - mais humano, criativo e participativo - terá de emergir da sombra, de regiões desconhecidas. Como escreveu Rilke: “É preciso poder tornar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas.”

 

Bibliografia consultada:
Amaro, Rogério Roque (2004), “Desenvolvimento  Um conceito ultrapassado ou em renovação? - da teoria à prática e da prática à teoria”.
Comissão Nacional Justiça e Paz (2009), “Na crise, viver a esperança e fortalecer a solidariedade, construindo um mundo melhor - uma responsabilidade de todos nós”, Reflexão para a Quaresma de 2009, CNJP.
Marshall, Bermarn (1982), “Tudo o que é sólido se dissolve no ar”.
Mendonça, Tolentino (1997), “Longe não sabia”.
Mulgan, Geoff (2009), “After Capitalism”.
Policarpo, José (1975), “Evangelização, Anúncio de Liberdade”.
Stilwell, Peter (2002), “Caminhos da Justiça e da Paz”
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João Meneses
Comissário do Simpósio «Reinventar a Solidariedade»
© SNPC | 21.04.09

Foto


















































































































































































































 

 

 

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