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Textos sagrados e literatura

Bíblia, violência e alteridade

1. A relação dos textos sagrados com a violência não é simplesmente fruto de uma invenção posterior, externa e ilícita. Esta questão está estabelecida, e com enorme complexidade, no interior do próprio fenómeno religioso. Naquela que é porventura uma das últimas grandes teorizações do sagrado realizada no século XX, René Girard recorda que, na experiência sacra ancestral, há uma violência fundadora transferida simbolicamente para a transcendência, não existe construção identitária crente que não integre ou se debata com aquilo que, na linguagem do mito, é o homicídio fundador, as pulsões vitimárias e os traços sacrificiais. Mesmo quando a religião se coloca do lado da vítima e toma inviáveis todos os postulados violentos e sacrificiais, a violência tem sempre um papel referencial e os sistemas religiosos confrontam-se com ela a partir do seu fundo mais residual. Passar de expressão violenta à proposição pacífica não acontece por um automatismo, pois nenhum discurso religioso está, na sua formulação, totalmente isento de violência.

2. Mas o mesmo é válido para as culturas. Como esclarece Michel de Certeau, “toda a sociedade define-se pelo que exclui e constitui-se pela diferenciação... Uma estrutura bipolar, essencial a todas as sociedades, supõe que exista um fora para que exista um entre nós”. Rejeitar, por isso, o sagrado em nome de uma ideal recusa da violência, apontando as religiões como bodes expiatórios das convulsões civilizacionais e epocais, é ocultar, à consciência, uma ferida bem mais difícil: o pensamento que se distancia indefinidamente da origem violenta reaproxima-se dela muito facilmente.

LutaPedro Proença

3. Como resolvem as religiões a violência que as marca? Escreve o teólogo Alfredo Teixeira: tal “só é possível a partir da fixação de um ponto macro-hermenêutico que vai determinar toda a micro-hermenêutica”.

E que ponto é esse? Segundo Girard (e ele pensa sobretudo no paradigma cristão) é um processo de desvelamento que decompõe a pretensa unidade e literalidade do texto. Os textos, também aqueles sagrados, são plurais. Configuram-se como redes múltiplas de sentidos que jogam entre si. O exercício interpretativo deve, também aqui, “apreciar o plural de que o texto é feito” (Roland Barthes dixit). Ora esta pluralidade é o único antídoto que previne contra as leituras fundamentalistas, unívocas e violentas. Certeau falava justamente da violência como uma doença da linguagem, que transforma o texto em mero sintoma num sistema controlado. O texto fica destituído de qualquer potencial transformador, e como, alojado num horizonte de insignificância, já nada diz, deixa assim todo o campo livre e legitimado para a afirmação prepotente e agastada dos vários poderes. É o plural do texto que funda e estimula a diversidade hermenêutica, e assim garante, contra todas as presunções absolutistas, o lugar da alteridade.

ViolênciaPedro Proença

4. Tal como em outros textos, também nos religiosos a linearidade do discurso, da primeira à última palavra, é apenas aparente. A sua é, se quisermos, uma mecânica da inversão, da ruptura e da surpresa. E isto porque só uma linguagem aberta e orgânica pode dizer o indizível, e aceder assim ao campo profundo da experiência religiosa. O objectivo do texto religioso não é representar, como se se tratasse de um tipo de taxidermia. Ele constitui um espectáculo que permanece em grande medida enigmático e cuja realidade não está na sequência natural das acções que o compõem, mas nesta abertura a que se expõe.

 

P. José Tolentino Mendonça
In Público, 24.10.2009
08.11.09

Violência
Pedro Proença

 

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