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A oração «é a melhor arma que temos para enfrentar a vida»

A oração «é a melhor arma que temos para enfrentar a vida»

Imagem HalfPoint/Bigstock.com

«O primado da oração vai para a escuta. Bastam poucas palavras ditas com discrição, como nos ensinou Jesus no Pai-nosso. Poucos pedidos, os essenciais: pão e misericórdia. Não precisamos de mais nada.»

Em entrevista ao jornal do Vaticano, "L'Osservatore Romano", o prior da comunidade monástica italiana de Bose, Enzo Bianchi, fala do que mudou na oração ao longo dos séculos e daquilo que se mantém imutável, dos seus enigmas e dificuldades, da sua imprescindibilidade e do primado da escuta.

 

Antigamente orar era como respirar. Hoje, em que a nível espiritual o oxigénio se está a rarefazer, chamar à oração «a respiração da alma», como fez o papa Francisco, que sentido tem e que esforço requer?

As novas gerações talvez já não saibam usar essa expressão, ainda que orem o mesmo. A oração é hoje percebida de modo muito diferente de outrora; é um parar, um permanecer, um pôr-se a pensar contemplando, procurando sobretudo escutar a voz de Deus que fala ao coração. É verdade que a oração continua a ser a respiração da alma e da vida interior - como poderia ser de outra forma? Mas a antropologia mudou, o mundo está desencantado, alteraram-se o estilo e a força da oração que existiam antes desta idade pós-moderna.



No espaço da fé, Deus é uma presença não discernível, não visível, no entanto não só podemos acreditar nele, mas podemos também falar-lhe, abandonar-nos a Ele, esperar o dom do seu Espírito


Com a mudança dos tempos a oração permanece também a expressão inata do sentido religioso da vida. «Não sei se creio ou não creio: sei que oro», dizia o escritor espanhol Salvador de Madariaga. Mas se é assim, qual poderia ser a hipotética oração de um ateu?

Hoje são muitos que dizem: Não sei sequer se acredito num Deus pessoal, mas rezo», no sentido em que dedicam tempo à contemplação, à meditação, ao habitar consigo próprios. É típico do homem, em todas as tradições culturais, espirituais e religiosas, interrogar-se, colocar-se as perguntas fundamentais procurando uma resposta. Muitos ateus confidenciam-me que na profundidade de si próprios escutam a voz da própria consciência, meditam, leem textos humanistas e depois com eles procuram responder às perguntas ardentes da existência. Esta atividade é certamente semelhante à oração, mas a cristã tem uma particularidade, é diferente de todas as outras.

 

Qual é, então, o específico cristão da oração?

O específico cristão é que Deus nos precede, procura-nos, fala-nos. A oração cristã nasce sempre como escuta. Isto vale quer no judaísmo quer no cristianismo. Deus é antes de tudo escutado. O extraordinário da nossa fé é um Deus que nos fala, e por isso o primeiro passo da oração cristã é colocar-se à escuta. Da escuta nasce a fé, nasce o conhecimento de Deus, nasce a relação com Ele. Da escuta nascem as palavras que lhe podemos repetir.



Poder-se-ia dizer com S. Basílio que a oração cristã é a «perceção de Deus», ou seja, dar-se conta de que Deus está connosco, olha-nos e constantemente derrama em nós o seu amor. É isto o essencial da oração cristã, e decerto não precisa de um horário


É por isso que o papa Francisco diz: «Orar é falar com Deus». Na realidade o homem sempre se ajoelhou diante de Alguém que o transcende. Mas não é loucura dirigir-se a uma Presença que não se compara com os parâmetros humanos?

Pode sê-lo, mas eu, mais do que com discursos teóricos, prefiro responder baseado na experiência pessoal. Desde pequeno, antes de ir dormir, a minha mãe fazia-me ajoelhar aos pés da cama e com palavras simples fazia-me orar pedindo ao Senhor a sua bênção, a saúde dos nossos queridos, o envio do Espírito Santo, e depois convidava-me a manifestar-lhe reconhecimento e louvor. Por isso fui habituado a falar com uma Presença invisível. Aliás, há realidades invisíveis nas quais acreditamos. Pense-se no vento: não tem rosto, não se vê, e no entanto é uma presença de que todos nos damos conta e na qual acreditamos. No espaço da fé, Deus é uma presença não discernível, não visível, no entanto não só podemos acreditar nele, mas podemos também falar-lhe, abandonar-nos a Ele, esperar o dom do seu Espírito.

 

Orar não é, todavia, o mesmo em todas as religiões; as diferenças existem inclusive a nível prático. Por exemplo, no islão o fiel deve orar cinco vezes ao dia, enquanto no cristianismo não existe uma estrutura diária tão rígida. É uma qualidade ou um defeito?

É verdade, mas é preciso darem-se alguns encontros. A oração da manhã e da tarde (a Liturgia das Horas [Laudes e Vésperas] deveriam ser praticadas não só pelos monges, mas por todos. Bastará até um pensamento, visto que o cristianismo privilegia o estar na presença de Deus, o pensar perante Deus, o escutar a sua voz, o exercitar-se a ver os homens, os acontecimentos, as coisas com os olhos de Deus. Esta modalidade de oração, que se chama contemplação, podemos adotá-la em cada momento, em todas as situações. Poder-se-ia dizer com S. Basílio que a oração cristã é a «perceção de Deus», ou seja, dar-se conta de que Deus está connosco, olha-nos e constantemente derrama em nós o seu amor. É isto o essencial da oração cristã, e decerto não precisa de um horário.



Não pode haver vida cristã sem oração. Atenção, porém, para não fazer da oração uma força mágica: ela permanece sempre um dom gratuito que nos faz o Espírito Santo. É a graça de Deus que renova a nossa oração, não nós que com a oração suscitamos a graça de Deus


Tudo isto desde que ao rezar não desperdicemos palavras «como fazem os pagãos», adverte-nos Jesus.

É verdade, existe o risco de resvalar para a oração pagã, que Lucrécio chamava como muita ironia «o afadigamento dos deuses à força de palavras». Mas esse risco correm-no também os cristãos que pensam convencer Deus segundo os próprios desejos, de o dobrar à própria vontade, multiplicando palavras. Até há o risco de que certas orações se tornem coscuvilhices espirituais diante de Deus. Não! O primado da oração vai para a escuta. Bastam poucas palavras ditas com discrição, como nos ensinou Jesus no Pai-nosso. Poucos pedidos, os essenciais: pão e misericórdia. Não precisamos de mais nada.

 

Infelizmente é fácil desperdiçar palavras na época da digitalização. Hoje, com as redes socais, ora-se, recita-se o terço, lê-se o breviário [Liturgia das Horas], partilham-se bens espirituais. Em que condições pode funcionar o entendimento entre a eletrónica e a oração?

Os meios de comunicação não devem ser demonizados, podem servir também para a oração. Eu próprio, em certos momentos de solidão, ou na doença, apercebi-me que poder usufruir, por exemplo, do terço, é uma ajuda. Mas depois a oração deve brotar da vida; não devem ser os meios de comunicação a ditar-nos a oração, mas a nossa vida de fé, a nossa vida diária. Usemos os meios de comunicação desde que estejamos atentos a não viver de palavras, de sensações, a não pretender que a oração se torne um espetáculo. A oração que Jesus recomenda é a silenciosa: «Ora no segredo e o Pai que está no segredo te responderá».



A liturgia é o ventre em que se é iniciado na oração; sem liturgia a oração pessoal tende a ser mágica e não respondente à fé cristã. Precisamente porque a liturgia chama à escuta da Palavra de Deus e depois ao dom do Corpo e Sangue do Senhor, é verdadeiramente o seio em que a oração individual pode crescer


O papa Francisco diz também que «a oração é a bateria do cristão». Em que sentido deve ser tomada esta metáfora?

No sentido de que a oração é fonte de energia, de força, desce à profundidade, escava no interior, e é a melhor arma que temos para enfrentar a vida, as tentações, as provações. Não pode haver vida cristã sem oração. Atenção, porém, para não fazer da oração uma força mágica: ela permanece sempre um dom gratuito que nos faz o Espírito Santo. É a graça de Deus que renova a nossa oração, não nós que com a oração suscitamos a graça de Deus.

 

Por isso o papa adverte: «A oração não é uma varinha mágica». Mas se da oração não é preciso esperar o milagre, é lícito lamentar-se da falta de correspondência positiva?

O facto é que muitas vezes os nossos desejos não coincidem com o que o Senhor quer para o nosso bem. Deus respeita a liberdade do ser humano e não força a sua situação de criatura que vive neste mundo. Mas Jesus disse-nos que Deus responde enviando-nos sempre o seu Espírito, se lho pedirmos. Pode então acontecer sentirmo-nos prostrados por não termos sido satisfeitos nas nossas preces, e no entanto Deus realiza as suas promessas.

 

Por fim, que dizer da liturgia, que o Concílio Vaticano II chama «cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, fonte de onde provém toda a sua virtude»? O que falta ainda para a sua reforma?

A liturgia é o ventre em que se é iniciado na oração; sem liturgia a oração pessoal tende a ser mágica e não respondente à fé cristã. Precisamente porque a liturgia chama à escuta da Palavra de Deus e depois ao dom do Corpo e Sangue do Senhor, é verdadeiramente o seio em que a oração individual pode crescer. Ao mesmo tempo a liturgia é também o cume da oração, que deve tender, no decurso da semana, para a Eucaristia dominical, que é a oração das orações. É verdade que, tal como não faltam as dificuldades na oração pessoal, também existem na liturgia. Houve uma reforma após o Concílio Vaticano II e há ainda resistências a essa reforma. Mas digamos a verdade: hoje passaram mais de 50 anos, o mundo mudou muitíssimo, estamos no interior de uma nova antropologia, a linguagem é completamente diferente e ainda estamos a perguntar-nos se não é caso de chegar - com toda a prudência possível - a uma mudança das linguagens, porque as novas gerações são completamente estranhas às tradicionais? Sem a reforma a liturgia arrisca-se a ser o lugar onde a Igreja mais definha, porque as novas gerações, não atraídas pelas fórmulas e pelos ritos, participam cada vez menos na liturgia, que, ao invés, é absolutamente necessária.



 

Entrevista: Vito Magno
In "Monastero di Bose"
Trad.: SNPC
Publicado em 23.03.2017

 

 
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