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"Outro caminho": O peregrino, o anjo, Maria, Francisco, Jacinta e Lúcia dizem-se em poema dramático

"Outro caminho": O peregrino, o anjo, Maria, Francisco, Jacinta e Lúcia dizem-se em poema dramático

Imagem "A chama da fé: evocação da procissão das velas" | Maria Joana Delgado, João Maya | 2016 | © Santuário de Fátima

“Todos os dias saio, sempre à procura de outro caminho,
Há muito interroguei já todos os da terra”

Friedrich Hölderlin

 

“[…] Tenho sede. Ando à procura.
E o caminho escolhido é longo e lento.”

António Luís Moita

 

“o Caminhante faz por esquecer
as próprias dores
com a esperança de um feliz encontro”

José Blanc de Portugal

 

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[Findando três dias de caminhada solitária, um homem aproxima-se da Cova de Iria.]

 

Caminhante:

A poeira e o fumo apagam a cidade do mapa.
O entulho encarcerou-me. Entre escombros,
O lixo, prestes a entrar em combustão, impede
Os meus passos e afasta-me da árvore, do tronco,
Da clareira. Não vejo imagens, nem luz, nem sequer
Uma palavra. No espelho, tenho apenas a falsidade
Do meu nome. Outro vocábulo não conheço. Ignoro
O verbo, o movimento. Preciso de uma transfusão,
De um transplante de memória ou de esquecimento
Que me faça descer do abismo e subir à nascente.

 

Anjo:

Guardo-me na transparência do vidro. O movimento serve para abrir
Uma neblina que aponta e esconde a planta por inteiro. Serei face
Ou vínculo? Sou transporte e semelhança, sem precisar de um nome além
Do território que resguardo. Procuro um bálsamo. Os gestos e as palavras
Aliviam todas as dores, ajudando a suportar a queda e a negação. Endireito
Veredas, sabendo que o tormento aplaca a tormenta, segurando a oliveira
Sobre a caverna, transformando a sombra em corpo e sangue. Não há luz
Sem água nem movimento. Não há chama nem candeia sem lagar. Ponho
O rosto por terra – que o vento sacode as árvores e eu trago no espelho
Uma presença (ferida, noite e claridade). O resto não me pertence.

 

Caminhante:

O peso da lava não permite a elevação dos olhos.
Esconde a árvore e o seu tronco. Encobre a imagem.
O fogo parece esconder a flama, a luz e a figura.
O medo não deixa vibrar as cordas na garganta.
Impõe silêncio. Forma coágulos. Suspende a circulação.
Quem poderá curar a nossa ferida, se a rejeitarmos,
Alastrando a infecção? De onde vem o ácido que
Nos cega, dissolvendo os ossos? Caímos. No fundo
Do oceano, a fome e a semente sobrevivem. Viveremos
Se soubermos navegar e percebermos onde está o alimento.

 

Maria:

Conheço o meu nome. Existo. Vivo e desço. Falo. Envolvo a árvore,
A terra, o muro, a infância – numa luz que não me pertence. Não sei
Quem sou. Tronco, madeira, madre, mãe? Mulher ou presença?
Mar, estrela ou relâmpago? Desço porque subi, desperta de um sono
De morte. Madre, mãe ou espelho? Gerando, sustento o telhado da casa.
Segredo, sou terra onde nasce o lenho eterno. O ouro e a prata não me
Pertencem. Apenas a bala – espada deste tempo em que as gargantas
Se cortam com lâminas, imagens e fome. Serva, fui madeira e semente.
Estrela, sou refúgio (talvez gruta, talvez ventre, talvez linha de água),
Forno ou lagar onde o alimento foi apurando a claridade e os nutrientes.

 

Caminhante:

Vejo, oiço, permaneço no meio da multidão. Aceito
O movimento, as cores, os traços, os rostos, os sons
Propagando o verbo que não quero nem sei conjugar.
Creio no que os sentidos me oferecem. Nada me fica
Da ausência. Leio e releio – e, por isso, não sei escrever.
Solto gargalhadas. Bem gostaria de ter na mão uma chave
Que abrisse a porta. Onde está, no entanto, a fechadura?
Não tenho lágrimas. Nasci sem água, sem nome. Aquele
Que uso não me pertence. Guardo o sal entre as areias
Do deserto. Cego, permaneço. Porque fujo do abismo.

 

 Francisco:

Bem gostaria de aliviar o ardor na vista, mas nem a brancura,
Ofuscando a azinheira, pôde esconder a visão da guerra, do abismo,
Do massacre. Sem ouvir, sem poder falar, vejo e aceito a inteligência
Junto da raiz. Não tenho, nem quero, outra alegria. Em segredo, contemplo
A lucerna – e faço meu o firmamento. Prefiro no entanto o sol a todas as estrelas
E satélites. Ainda que abrase os meus olhos. Dias virão, todavia, em que a imagem
Não será suficiente para deter as imagens. Teremos veneno e ácido seduzindo,
Entrando e devorando a casa por inteiro, enlouquecendo até os alicerces.
O movimento e a voz irão corromper a luz e o alimento. Serão escassas
As palavras – se quisermos alcançar na claridade todo o nosso consolo.

 

[Transforma-se o caminhante em peregrino.]

 

Peregrino:

Preciso de água – e encontro uma espada. É difícil
Descobrir no lugar, no coração, uma fonte onde possa
Beber. Saí, por isso, de casa. Na estrada, as feridas abriram
O caminho. Nada trouxe comigo – e mesmo assim fui
Despindo a minha veste. Não houve, contudo, relento
Nem hipotermia. Não tenho pátria, a não ser entre as mãos
Unidas. Não passo de uma criança, de um estrangeiro.
Nada sei do fogo, da sombra, da evidência. A sede não me
Abandona. Procuro uma clareira, um veio de água onde
Possa ajoelhar, bebendo entre lágrimas a palavra perdida.

 

Lúcia:

Quem virá pela estrada quando o caminho se transformar? Serão outras
As ovelhas, procurando a nascente. Virão talvez tresmalhadas, sem pasto
Nem pastor, atraídas pela água (ou pela raiz da azinheira). Encontrarão
Onde beber. A sede é feita de ruído, de entulho, de petróleo. Nesta noite
É preciso coar a existência para que o vácuo e as suas partículas não
Envenenem o sangue por inteiro, impedindo a entrada e a difusão da luz,
A circulação da brisa por entre as células. De outro modo, as válvulas
Param, os músculos petrificam. Por isso as árvores cercam a depressão
Na clareira, nesse terreno onde é possível lavar o rosto, o corpo, a veste
Para que as feridas sarem e recebam a seiva que cresce da videira.

 

Peregrino:

Temos um deserto no vazio, no centro da tempestade.
Imagens. Vêm de longe. E com elas a imagem, o movimento.
O murmúrio não cessa. Não cessa a melodia. As contas vão
Somando memórias, feridas abertas que o fogo cauteriza.
Subíamos. Procurávamos na flama a dor e a cicatriz. Víamos na luz
Um refúgio. Descemos agora à nascente. A fonte apaga a secura
Na garganta. Para sermos sal, precisamos de água. Deste lado,
A humidade no rosto aviva a presença no centro da multidão.
As ondas transmitem palavras, lágrimas, tecidos – a imagem
Em movimento, árvore ou tronco à espera de uma bala.

 

Francisco:

Guardo-me entre as árvores, em silêncio. Conheço o movimento,
A força do relâmpago, a folhagem oscilando na presença da luz.
Escuto a evidência de um rosto e de um corpo sobre os ramos.
Não recebo, todavia, palavras nem sons. Apenas um tronco
E sobre o tronco a imagem – da incerteza, do temor e do segredo.
Não sei ler, mas traço a mensagem, cerrando os lábios. Vejo e calo.
Sou, dizem, uma candeia no centro da cidade. Subo às árvores.
Sento-me no tronco da oliveira e trago nos olhos o azeite
Que ninguém há-de apagar. Da videira guardo todos os frutos.
Uma palavra me basta, repetida dia após dia entre vozes e espanto.

 

Peregrino:

Estamos à porta da caverna. O mar de lava invadiu
A superfície. Rasgo os joelhos porque a dor é uma memória.
As feridas são no entanto outras. Ajoelho perante a imagem,
Embora desconheça o corpo que um dia povoou a carrasqueira.
Cada centímetro sobre a terra é uma palavra que não sei dizer.
Que me importam os outros? O meu vocabulário é pobre.
As crianças estão comigo. Não viviam melhor do que eu.
Guardavam gado. Eu nada tenho para guardar. A não ser
As cicatrizes que escondo enquanto caminho em silêncio.
A nascente é funda. Debruçados sobre a terra, havemos de beber.

 

Jacinta:

Perdi o sorriso ao ver a multidão. Que temor a movimenta?
Tanta estrada. Tantos caminhos. E campos. Tanta fome. Tanta
Gente. O arame rasga a pele e mistura o sangue com a lama.
Pedras atravessam a janela e não quebram o vidro. Pedras e
Vocábulos. Vejo talvez um pastor. Aguarda, com as mãos na face,
A ferida e o testemunho. Não levanta a voz. E no entanto chora.
Conhece a dor, o verbo – e a semente. Vejo e conto. Não poderia
Guardar segredo. Rezo – repito palavras para que o magma
Não receba quem vagueia entre ruínas. A torrente de lava inunda
E amplifica todos os gritos. Mesmo sem voz, meu rosto permanece.

 

Peregrino:

É estreita a vereda. Como posso equilibrar-me, se há vozes
Chamando do meio do abismo? Cantam, esvoaçam, emergem,
Desmembram (deturpam) o corpo do agricultor. Preciso de
Um mastro e de cordas. Posso cair e afogar-me. Não sei falar.
Fico-me pela imagem (aguilhão e saudade), pelo murmúrio
Da prece, à procura de uma âncora, para que nenhum
Dos rochedos me leve a naufragar. Fito a palavra e o esplen-
Dor no firmamento: de um lado, a mão; do outro, a lança
Em chamas. Talvez venha a descer, alterando o eixo da terra.
Talvez sejamos salvos pelo maremoto, se o sal ainda conservar.

 

Lúcia:

Penso. E nada sei. Tento reconstruir imagens e vocábulos. Não me cegam
Nem me afogam. A luz tem todavia tal intensidade que mal consigo ver
Os traços do rosto e do corpo pousado sobre a árvore. Há momentos
Em que os confundo (luz, árvore, mulher). Guardo palavras (e com elas
O segredo). Não servem para dizer. São talvez dedos ou setas indicando
Um caminho que a dor edifica. Guardo e transmito a imperfeição da memória.
Calando e escrevendo, sobrevivo. Podem podar a carrasqueira, desfazer o tronco.
A raiz ficará (submersa na incerteza do oceano).Com tanta água, os rebentos
Hão-de aparecer, rompendo por entre as pedras que um dia lançaram contra
Os olhos daqueles que viram e quiseram sufragar todas as feridas do céu e da terra.

 

Peregrino:

Poderia ter vindo um eclipse. A dança foi no entanto a manifestação
Do reino, sobrevoando a lama para que a árvore se pudesse ver.
Sendo entre nós, tornou-se presença. Talvez falem de embriaguez
Ou cocaína quando nos olham de longe. Deixá-los. Mesmo de noite,
Esperamos sobreviver, respirar, enquanto nos aproximamos do oceano.
Na cova, regressamos ao ventre, procuramos uma fonte onde beber
Dessa água que há-de salgar-nos nos alicerces da estrada. Penso e
Descubro uma nascente, aceitando a surpresa, o espanto, o temor –
Um relâmpago, uma voz, a transfiguração de uma mulher que soube
Descer e pedir, enraizando a coroa e a videira no centro do deserto.

 

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“Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.”

Daniel Faria

 

“[…] todos somos peregrinos […].”
“E esta Peregrinação ainda não acabou […]”

Irmã Lúcia



 

Ruy Ventura
Sequência poética editada no nº. 6 da revista Fátima XXI, em 2016
Publicado em 20.04.2017

 

 
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