Uma descoberta “extraordinária” por uma erudita com olhos de águia identificou os contornos sombrios de passagens da Bíblia por trás de um manuscrito do Corão do século VIII - o único palimpsesto registado em que um texto cristão foi apagado para dar lugar ao texto sagrado islâmico.
A investigadora francesa Eléonore Cellard estava à procura de imagens de um palimpsesto, manuscrito em pergaminho apagado para que nele pudessem ser escritos novos conteúdos, vendido uma década antes pela Christie's.
Durante a pesquisa, encontrou o último catálogo da casa de leilões, que incluía fragmentos de um manuscrito do Corão que a empresa tinha datado do séc. VIII, o segundo do islão.
Ao examinar a imagem, notou que, aparecendo levemente atrás da escrita árabe, estavam letras coptas. Entrou então em contacto com a Christie's, que identificou o texto copta como proveniente do livro bíblico do Deuteronómio, pertencente à Torá judaica e ao Antigo Testamento cristão.
«Trata-se de uma descoberta muito importante para a história do Corão e do início do islão. Temos aqui uma testemunha de interações culturais entre diferentes comunidades religiosas», afirmou Cellard, ligada ao College de France.
Romain Pingannaud, especialista da Christie’s, qualificou a descoberta de «extraordinária»: "Uma vez que se sabe que está lá, só se consegue vê-lo, torna-se tão óbvio. Inicialmente não nos demos conta. É fascinante, principalmente porque é o único exemplo em que se tem um texto em árabe por cima de um texto não árabe».
«E o que é ainda mais fascinante é que está no topo das passagens do Antigo Testamento. Isso mostra o contacto entre comunidades nos primeiros séculos do islão; é muito relevante», acentuou.
A Christie's, que apresentou os fragmentos para leilão com um preço guia de 80 mil a 120 mil libras (cerca de 90 mil a 136 mil euros) a 26 de abril, acredita que o manuscrito terá sido, provavelmente, produzido no Egito, que acolheu a comunidade copta ao tempo da conquista árabe. A peça alcançou o valor de libras 596,790 (cerca de 678 mil euros).
Os fragmentos «ressoam a realidade histórica de comunidades religiosas no Próximo Oriente e, como tal, são uma sobrevivência inestimável dos primeiros séculos do islão», salienta o especialista.
Não é possível apontar com precisão a data da escrita copta, embora a formação das letras sugira que é improvável ser anterior ao século VII, refere Pingannaud. «O teste de Carbono 14 dataria apenas o material, não a escrita, mas é bastante destrutivo, e esses fólios são muito finos», explicou.
Os palimpsestos do Corão são «extremamente raros», de acordo com a Christie's. Dos poucos que estão registados, nenhum foi copiado por cima de um texto cristão.
«Achamos que isso é porque o Corão é um texto muito importante, e embora o pergaminho fosse muito caro, o Corão foi sempre escrito em material novo. É altamente reverenciado e, portanto, eles usavam material novo», apontou Pingannaud.