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Pós-modernidade, o desafio dos cristãos

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Pós-modernidade, o desafio dos cristãos

Para um intelectual de maneira especial, mas em geral para cada um de nós, saber ler os sinais disseminados no tempo que indicam a direção em que se movem os fluxos culturais, económicos e políticos é absolutamente necessário. De outra forma arriscamo-nos a não ter as chaves interpretativas para compreender aquilo que pretende representar ou efetivamente representa o “mainstream”, que orienta esses fluxos e condiciona a vida de todos, fazendo por vezes sofrer pesadas imposições culturais, das quais, na maior parte, não se tem consciência clara. É importante afirmar desde já que este trabalho interpretativo não é fácil, quer pela complexidade das ideias dominantes que se propagam de modo sistémico, quer pela dificuldade de acesso a interpretações diferentes que permitam relativizá-las, fazendo perceber o que efetivamente são, objetivamente sistemas de ideias, e não verdades inquestionáveis.

A esta constatação devemos acrescentar de imediato uma outra: esta tarefa pesa particularmente sobre a inteligência do mundo cristão e sobretudo católico. Este último, enquanto detentor de uma poderosa, mas marginalizada, herança cultural metafísica, que é precisamente aquela a que se opõe, no mundo ocidental, o “mainstream” cultural a que nos estamos a referir. A primeira constatação a fazer, sem por isso abraçar teorias apocalípticas ou esconder obscuros conluios, é que os caminhos culturais que se afirmam hoje como dominantes no mundo ocidental são declaradamente pós-cristãos. Podem em alguns casos viver de pressupostos não próprios, como sustentou Böckenförde, hereditários, mais ou menos conscientemente, de ideias e valores da época precedente, moderna, forjada a partir do cristianismo, mas aquela a que fazemos referência como tempo pós-moderno é decididamente orientada para um sentido pós-cristão.

Jean-Luc Nancy é um autor que, de modo mais claro do que outros, fez sua esta posição, assumindo a via da desconstrução do cristianismo; fazendo justiça, a seu modo, ao que ele foi para o Ocidente (verdadeira e própria ossatura, sem a qual este último não é compreensível), debruçou-se sobre o esforço teorético do repensamento de uma nova filosofia primeira. Ou seja, de uma filosofia com ambições de reformulação da compreensão de tudo o que existe, sob o sinal, completamente anticristão, de um absoluto imanentismo que pensa apenas no existente.

Mas há muitos outros exemplos próximos desta orientação, e Umberto Eco, amplamente celebrado nestes dias, deles forneceu uma das declinações mais conhecidas e mais efetivamente ativas graças à transversalidade de uma ação cultural em boa parte dirigida à divulgação em massa. A sua obra-prima literária é, não por acaso, o manifesto de um nominalismo totalmente antimetafísico utilizado em perspetiva pós-moderna pela mesma operação de desconstrução de estruturas, conceitos, significados abertos a uma qualquer forma de transcendência.

Sem descer à complexidade teórica deste horizonte, que se apresenta como uma mutação epocal, dado que se opõe àquele cristianismo que Benedetto Croce recordava ter sido a maior revolução da humanidade, devemos todavia sublinhar alguns pontos fundamentais.

Primeiro, a recordada pretensão a pensar num horizonte de completa imanência, onde as referências são exclusivamente ao existente. Segundo, e em imediata ligação, a negação cada vez mais radical da substancialidade daquilo que existe: o ser humano, como todos os entes, não tem qualquer substância estável e natural que o defina, mas ou é um existente histórico entre os outros, potencialmente suscetível de transmigrar para outro além de si, ou é o fruto da relação (…) produzida pelo livre jogo da história, das convocações, da sedimentação dos poderes, ou é lido como um organismo vivo entre os outros, submetido às leis da adaptação evolucionária.

Destes dois pressupostos principais deriva uma consequência perante a qual os católicos (…) se encontram com poucas armas à mão, muitas vezes inconscientes do seu alcance cultural, que é, além da desumanização, uma total relativização ética e moral. Se o ser humano (deixou de ser possível falar de “pessoa” no horizonte atual) é pensado como fluido, privado de uma natureza sua, e ainda mais, desprovido de substância e privado de identidade, como pensar ética e moral se não como tomadas de posição igualmente fluidas, maleáveis, totalmente determinadas historicamente, sempre repensáveis e modificáveis? Se o pós-moderno pode ser colocado, como acontece constantemente, sob o signo da famosa frase de Nietzsche «não existem factos, só interpretações», torna-se muito claro que a obrigação da prova (a existência de um horizonte ligado a um dado ontológico permanente) cabe ao pensamento cristão.

Carlo Ossola (…) afirmava como o cristianismo é “embaraçoso” para a cultura europeia. Por isso propunha a inversão dos valores proclamados por Maria no “Magnificat” (e com maior razão pode pensar-se no sermão da montanha), contando evidentemente com a inquestionável verdade dessas sublimes propostas e assumindo-as como amplamente partilhadas. (…)

Tudo o que o Ocidente tinha ganho em matéria de direito de família e de regulamentação da relação conjugal face ao paganismo é hoje declarado obsoleto, para tentar vias totalmente inovadores. Devemos saber, todavia, quais as bases em que se apoiam: a artificialização da vida, a progressiva e cada vez mais radical desnaturalização, a dissolução de todo o tipo de laço estruturado, a redução do nosso horizonte a um presente privado de mediações, que se procura reduzir a um presumido “dado de facto” em contínua composição e decomposição. Diante disto os católicos devem saber que se a fé move montanhas, a razão ajuda a compreender de que material são feitas.

 

Gabriella Cotta
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 01.03.2016 | Atualizado em 18.04.2023

 

 
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A primeira constatação a fazer, sem por isso abraçar teorias apocalípticas ou esconder obscuros conluios, é que os caminhos culturais que se afirmam hoje como dominantes no mundo ocidental são declaradamente pós-cristãos
Se o ser humano (deixou de ser possível falar de “pessoa” no horizonte atual) é pensado como fluido, privado de uma natureza sua, e ainda mais, desprovido de substância e privado de identidade, como pensar ética e moral se não como tomadas de posição igualmente fluidas
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