I
Julgo também que a pátria de um poeta é o corpo transformante da língua. Arte viva, que opera sobre a matéria viva por excelência que é a linguagem, a poesia incessantemente refaz margens e signos, distancia e aviva, esquece e aproxima, revela e oculta. A lenta penetração nos segredos de um poema põe-nos em contacto com a totalidade da linguagem e, portanto, com o que ela designa: o real súbito da língua, a sua imanência, o invisível que ninguém diria. Como porta que se abre, as palavras de um poema são o acesso à linguagem do começo, ao Verbo que era no princípio , ou pelo menos ao que dele resta (como escombro, vestígio, sinal...) na poeira das nossas línguas. O poeta é um arqueólogo minucioso e um inexplicável visionário.
O poeta transfigura, lava, limpa, lima - modos de dizer que a ação do poeta sobre a linguagem se exerce em sentido inverso ao da prática corrente. Pelo ritmo, imagem, tonalidade, alternância de som e silêncio, deslocação dos sinais e do branco, a escrita poética estabelece as palavras numa modulação inédita. Mais faustosa ou, pelo contrário, mais do lado da extrema nudez, a palavra que acreditávamos conhecer revela-se, então, a nós na força insuspeita de significação que a língua guarda.
O poema é uma construção verbal em planos múltiplos, não necessariamente lógicos. O poema é um corpo de palavras, um objeto artesanal que se inscreve de maneira singular no espaço, como um edifício, uma velha árvore ou uma sombra. O poema é um mecanismo musical sustentado pelos recursos melódicos da língua, ou pelos seus silêncios e pausas. E, sobretudo, um poema é a consequência (e o traço visível) de um contacto privilegiado com a linguagem.
Tudo se passa como se o poeta fosse misteriosamente escolhido pela língua a que pertence:
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
A linguagem não é poética em si mesma. Dir-se-ia que as virtualidades poéticas disseminadas numa língua determinada decidem reunir-se e atualizar-se através de um bom condutor térmico para o seu fulgor. Mesmo se, aparentemente, um poema pode falar apenas de sílabas e de vogais, como explica Eugénio de Andrade:
Toda a manhã procurei uma sílaba.
É pouca coisa, é certo: uma vogal,
Uma consoante, quase nada.
Mas faz-me falta. Só eu sei
A falta que me faz.
Por isso a procurava com obstinação.
Só ela me podia defender
Do frio de janeiro, da estiagem
Do verão. Uma sílaba.
Uma única sílaba.
A salvação.
Poder-se-ia descrever assim a demanda e a transfiguração que a poesia opera na língua: enfrentar o máximo no mínimo, no insignificante, no inútil; no ínfimo, no reduzido, no simples fragmento, na pequena dobra, no pormenor: ... Enfrentar o invisível no visível, o absoluto no débil e relativo, a imensidão no côvado minúsculo do que divisamos. Não esconder a grande verdade de que a linguagem do mundo, seus poderosos dicionários, nossos poderosos dicionários, se compõem de sílabas, isso que nos esforçamos por esquecer, porque a nossa vida estremeceria se em vez dos discursos que nos saem tão fluidos ou temos à mão para explicar tudo, para nos justificar a nós próprios, tivéssemos que passar pelo embaraço de procurar as sílabas, de habitar o silêncio, a infatigável atenção: a longa e áspera noite do não-saber com seus bosques e corredores desertos alagados, como quem espera a salvação.
II
E, contudo, é rigorosamente verdade aquilo que Sartre enuncia no dizer: «os poetas são pessoas que recusam utilizar a linguagem».
De facto, o poema não tem utilidade, não fala, não se enquadra. Ver o poema desses pontos de vista é diminui-lo. O que ele significa como forma só pode ser apreendido de modo total, quando considerado na composição inteira e intacta da vida. Por isso, como defende Guardini, o puro lógico ou o puro moral não são perigosos para o poema, pois não têm com ele qualquer relação. Quem lhe é realmente fatal é o que não o quer ver senão do ponto de vista instrumental ou ornamental, o esteta.
Se a poesia se limitasse a ser versificação, se ela se reduzisse a um trabalho hábil de explicitação das emoções admitidas vulgarmente como poéticas (o brilho da lua, a primavera, e inofensivos arrebatamentos do género) com termos nobres, articulados segundo as regras de prosódia que todos conhecem, ela não passaria de um divertimento de salão. Justa sabedoria acende o verso de Victor Hugo: «Je suis un homme qui pense à autre chose». Pois a poesia é a expressão do sentido misterioso da existência, obtida quando a língua é reconduzida ao seu núcleo essencial. Essa não é a sua tarefa principal. É a sua tarefa única.
O poema não é um atributo, um campo à parte, uma moeda de troca, um consolo, uma técnica, um artifício, uma especialidade, um suplemento, como se Ser e Língua se pudessem, de alguma maneira, separar. O poema é uma metafísica concreta, uma teologia visual, um ponto de união entre o mundo invisível e o mundo visível. Contra o mundo domesticado das representações, o poema reivindica e repropõe a necessidade de uma experiência inefável no interior da língua.
Escreve Paul Celan:
Agora juntas ao teu peso
tudo o que é leve,
Agora desmascaras>
o sempre nomeado
mas sem nome,
Agora mandas os martelos
-mecânicos, os fura sílabas,
para debaixo do esporão
daquele que
te leva a saltar para o outro lado
da ardilosa madeira da sebe
agora
escreves.
Volta, de novo, a ser possível dizer alguma coisa em modo muito direto e não mais em código. E isso porque a palavra soube entregar a sua própria existência à língua. «A palavra do poeta é a existência em si» (Gottfried Benn).
III
Quando a linguagem se relaciona assim com o absoluto, não poderemos dizer que, a poética face à língua, é comparável àquilo que a mística representa face a Deus?
A experiência mística é uma experiência da paixão. Ainda que se trate de uma paixão da alma ela expressa-se pelos tormentos das paixões. O indizível aspira aí desesperadamente pelo dizer. Não há experiência mística que não relate o desconforto da escassez que, de repente, assola o mundo; a impossibilidade da palavra (seriam precisos, como na estrada de Damasco, relâmpagos); a incerteza abrasiva das imagens. O processo da vida espiritual só vem resgatado pela união transformante, mas há primeiro que provar este caminho purgatório que a teologia mística designa pelas metáforas da noite, da nuvem, da nuvem do não-saber, da ausência, do silêncio. Só depois, como indica São João da Cruz, «nos transformaremos en trasformación».
A poesia, creio, é aquele instante, buscado mas sempre inesperado, em que a língua se transforma em transformação.
José Tolentino Mendonça