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Quatro histórias de perdão

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Quatro histórias de perdão

O que o Senhor repete é: «Lembra-te do perdão!» É como perdoados e perdoadores que somos chamados a viver. O perdão é um «jugo suave». Ocupemo-nos, sim, em desenvolver as potencialidades que o perdão esconde. Mesmo se somos fruto de uma formação que acentua muito o peso do pecado, parece-me que a grande conversão é passar a sublinhar a luz do perdão de Deus na nossa vida.

Há aquela história dos dois monges que, ao começarem a travessia de um riacho, encontram uma mulher que lhes pede que, um deles, a carregue às costas. Era um pedido de todo inesperado e que contrariava a regra deles. Mas lá o mais novo se inclinou e levou a mulher à outra margem. A mulher agradeceu muito e os monges partiram para o seu destino. O monge mais velho, porém, passou todo o caminho a recriminar o mais novo: «Que loucura», «o que foste fazer!», «sabes a nossa regra…». Até que este, não podendo mais suportar, lhe respondeu: «Olha que eu transportei a mulher entre as margens do riacho e deixei-a. Tu, porém, transportaste-a até aqui».

Partir da nossa condição de perdoados… Não há dúvida que compreender isto é colocar-se na escola do Evangelho. Quando vivemos no perdão, começamos verdadeiramente a fazer caminho no conhecimento de Deus e no seguimento de Jesus. Não de forma abstrata, mas concreta e assumida. O perdão abre portas dentro de nós. E então desistimos de carregar os pesos de ontem, para descobrirmos as asas do hoje.

Há histórias que nos transmitem melhor que um armário de conceitos a força reparadora que buscamos. Aqui ficam três.

A primeira é contada pelo escritor judeu, prémio nobel da Paz, Elie Wiesel. Na infância esteve prisioneiro em Auschwitz na companhia dos pais, irmãos, amigos. Praticamente só ele sobreviveu. Podemos imaginar até que ponto se sentia espoliado. A partir de 1945, quando a guerra acaba, passa anos em que o único objetivo da vida era procurar uma impossível justiça para o irreparável. «Como foi possível tamanho horror?... Como foi possível!» E a sua vida era isto. Cada dia adormecia e acordava num inferno. Não conseguia encontrar a sua alma. Até que foi falar com um rabino. E o rabino disse-lhe: «Meu filho, enquanto tu não perdoares, continuarás prisioneiro em Auschwitz». E esta palavra redimensionou o seu coração para sempre.

A segunda não é propriamente uma história. É uma oração, uma das mais belas orações que conheço, e que foi encontrara entre os escassos pertences de um judeu, morto precisamente num campo de concentração. Diz o seguinte: «Senhor, quanto vieres na tua glória, não te lembres somente dos homens de boa vontade; lembra-te também dos homens de má vontade. E, no dia do Julgamento, não te lembres apenas das crueldades e violências que eles praticaram: lembra-se também dos frutos que produzimos por causa daquilo que eles nos fizeram. Lembra-te da paciência, da coragem, da confraternização, da humildade, da grandeza de alma e da fidelidade que os nossos carrascos acabaram por despertar em cada um de nós. Permite, então, Senhor, que os frutos em nós despertados possam servir também para salvar esses homens».

A terceira história é esta: uma mulher vai a uma pastelaria de um centro comercial encomendar um bolo para o aniversário do filho. Como qualquer um de nós faria, deixa lá o seu nome e um contacto telefónico. Só que, exatamente na manhã do aniversário, o miúdo é atingido por um automóvel, entra em coma e morre. O pasteleiro não faz ideia do que se passa. Sabe apenas que aquela mulher encomendou um bolo que não veio buscar. Começa a persegui-la nos dias seguintes com chamadas anónimas. A mulher, por um acaso, descobre que é ele o autor dos telefonemas e, em pleno trauma pela morte do filho, decide ir com o marido ao centro comercial dar-lhe uma lição. No primeiro momento do encontro, só se vê, de facto, o confronto da ira dela com o ressentimento do pasteleiro. Mas, quando Ann diz o que ele não sabe, a fúria descongestiona-se dando lugar a outra coisa.

- Deixem-me dizer-vos a pena que sinto – disse o pasteleiro, pondo os cotovelos em cima da mesa. – Só Deus sabe quanto lamento. Oiçam lá, eu sou apenas um pasteleiro. Não pretendo ser outra coisa… Isso não vai justificar aquilo que fiz, eu sei. Mas sinto profundamente… Têm de compreender que tudo se resume ao facto de eu já não saber como atuar. Por favor, deixem-me perguntar-vos se posso encontrar perdão nos vossos corações.

Fazia calor na pequena pastelaria. Ann e o marido tiraram os casacos. O pasteleiro colocou umas chávenas sobre a mesa. Eles sentaram-se. E, muito embora estiverem cansados e angustiados, começaram a ouvir o que aquele homem tinha para dizer.

- Provavelmente, precisam de comer alguma coisa – disse o pasteleiro. – Espero que comam uns pãezinhos quentes, feitos por mim. Têm de comer e enfrentar a situação. Comer dá um certo conforto, numa ocasião como esta – disse ele.

Continuavam a escutá-lo. Comiam agora devagar um pão escuro e perfumado que o homem lhes abriu, e sentiam com surpresa o seu gosto retemperador e delicado. Pela madrugada dentro, deixaram-se ali a conversar. As luzes fluorescentes do estabelecimento foram substituídas pela luz da manhã, que começou a escorrer pelas janelas.

Gosto muito deste conto de Raymond Carver. Diz tanto em tão pouco. As palavras criam um clima de acolhimento e escuta. O alimento (nem por acaso se trata do pão) consola, enxuga as lágrimas. Dentro das personagens acontece uma espécie de ressurreição. O perdão abre-nos efetivamente à compreensão do mistério pascal.

 

José Tolentino Mendonça
In "Pai-nosso que estais na Terra"
Publicado em 12.11.2015 | Atualizado em 17.04.2023

 

 
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Quando vivemos no perdão, começamos verdadeiramente a fazer caminho no conhecimento de Deus e no seguimento de Jesus. Não de forma abstrata, mas concreta e assumida. O perdão abre portas dentro de nós. E então desistimos de carregar os pesos de ontem, para descobrirmos as asas do hoje
Senhor, quanto vieres na tua glória, não te lembres somente dos homens de boa vontade; lembra-te também dos homens de má vontade
Comiam agora devagar um pão escuro e perfumado que o homem lhes abriu, e sentiam com surpresa o seu gosto retemperador e delicado. Pela madrugada dentro, deixaram-se ali a conversar. As luzes fluorescentes do estabelecimento foram substituídas pela luz da manhã, que começou a escorrer pelas janelas
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