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"Quem és Tu, Senhor?": ateus ou crentes, filósofos ou escritores, ninguém é indiferente a Cristo, diz presidente do Pontifício Conselho para a Cultura

Todos os anos, a 2 de fevereiro, deparamos com a celebração da Apresentação do Senhor Jesus no Templo, inscrita no calendário. Como se sabe, essa festa faz referência à passagem em que o evangelista Lucas apresenta, a par da família de Nazaré, Simeão e Ana, duas figuras de fiéis idosos que encarnam a esperança messiânica de Israel. No «oráculo» de cariz profético que Simeão pronuncia nessa ocasião há uma frase forte para definir a criancinha que segura nos braços: declara ele que Cristo será um seméion antilegómenon, um «sinal de contradição» (Lc 2,34).

Neste livro pretendemos mostrar – embora de modo simplificado e apenas emblemático – como, na história da cultura, Jesus tem sido um «sinal» ineludível a ter em conta, a abraçar ou a rejeitar. O encontro com Ele, nunca nos pode deixar indiferentes: na relação com Ele está em jogo, com efeito, algo de significativo para a vida de cada um. Que significou esse encontro para quem se cruzou com Ele, durante a sua existência terrena ou, até, depois do acontecimento da ressurreição? Em que sentido é que Ele foi um «sinal» para quantos se encontraram com Ele?

Para responder, parece-nos sugestivo partir do Cristo histórico, e de uma cena muito conhecida dos Evangelhos, em cujo centro se encontra uma pergunta decisiva.

Atrás de Jesus erguia-se o monte Hermon, com o seu cume nevado; ouvimos gorgolhar as nascentes em cascata do Jordão. Ao lado de uma gruta sagrada dedicada ao deus Pan, o rei Herodes tinha erigido um templo em honra do imperador Augusto, denominando aquela localidade com o topónimo de Cesareia, deixando-a, ao morrer, a seu filho Filipe. Neste ambiente, Jesus deixara cair entre os seus ouvintes uma pergunta subtilmente provocatória, que no grego evangélico soa assim: Hyméis de tina me légete einai; «Mas vós, quem dizeis que Eu sou?» (Mt 16,15). Ao longo dos séculos, esta interrogação continuou a insinuar-se, até porque – como dizia um já esquecido Alfredo Oriani, escritor «laico» do século XIX – «crentes ou não crentes, ninguém se pode subtrair ao encanto daquela figura, nem dor alguma renunciou sinceramente ao fascínio da sua promessa»

É significativo, a esse respeito, o testemunho emblemático de alguém que tudo fizera para evitá-lo, o poeta russo Aleksandr Blok. Em plena Revolução Soviética, no ano de 1918, compunha ele o poema Os Doze, e confessava: «Quando o terminei, eu próprio fiquei surpreendido: porquê Cristo? Seria mesmo Cristo? Mas, quanto mais atenta era a minha análise, mais distintamente via Cristo. Anotei então no meu diário: Infelizmente, Cristo. Infeliz e precisamente, Cristo!»

Bem pôde Nietzsche dizer, no seu Anticristo, que Jesus fora «o único cristão da história, mas que acabara na cruz», convicto de que essa morte fora prematura: «Se tivesse chegado à minha idade, Ele próprio se teria retratado da sua doutrina» (em Assim falou Zaratustra). Na realidade – e os vinte séculos de história estão aí para atestá-lo –, tinha mais razão o menos famoso autor grego de A última tentação de Cristo, Nikos Kazantzakis, quando, apoiando-se no Evangelho de João, imaginava assim aquele fim, ocorrido numa escarpa rochosa de Jerusalém, chamada, em aramaico, «Gólgota» (ou seja, «Crânio», ou, em latim, «Calvário»): «Deu um grito de triunfo: “Tudo está consumado!”, mas como se dissesse: Tudo começa agora!»

Com efeito, nesse momento teve início uma história de confrontos e de desencontros com Cristo, de criações fantásticas (pensemos nos apócrifos), de arte, de pensamento, de veementes rejeições, de apropriações indevidas, de degenerações, de amores apaixonados até ao martírio. Se o Miller de Trópico de cancer chegou ao ponto de mandar gravar uma cruz na sola dos sapatos, para poder espezinhar, a cada passo, Cristo e a sua religião, houve um génio supremo, como Dostoievski, que, pelo contrário, não hesitou em escrever, no ano de 1854, a Fonzivina [amiga de Dostoievski]: «Atrevo-me a dizer que se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade, e se fosse efetivamente verdade que a verdade não está em Cristo, eu preferiria ficar com Cristo e não com a verdade.»

A partir deste paradoxo, aflora uma adesão que nunca se esgotou ao longo dos séculos, atingindo picos absolutos. E, em termos especulativos, registam-se reações de veemente e violenta hostilidade, como o atesta, de modo exemplar, a história das perseguições e, de forma subtil e desconcertante, as apropriações hipócritas, interesseiras e funcionais das próprias instituições (e aqui mais uma vez vem ao nosso encontro Dostoievski, com a sua inesquecível parábola do gélido e grandioso Grande Inquisidor). Poucas décadas depois do fim de Jesus de Nazaré, no Egito, o autor anónimo do Evangelho gnóstico, chamado “de Filipe”, em plena época imperial romana, não hesitava em escrever: «Se dizes: “Sou judeu”, ninguém fica alterado. Se dizes: “Sou romano”, ninguém treme. Se dizes: “Sou grego, bárbaro, escravo”, ninguém se impressiona. Mas, se eu digo: “Sou cristão”, o mundo treme.»

É por isso que já São Pedro admoestava assim os seus discípulos: «Se alguém sofre por ser cristão, não se envergonhe, antes glorifique a Deus por ter este nome» (1Pe 4,16). Em confronto com Jesus, entrou de imediato o seu próprio povo, o povo hebraico, e haverá, a partir de então, um contínuo e recíproco encontro e desencontro, simbolicamente representado numa frase do sugestivo escrito Irmão Jesus, do hebreu alemão Schalom Ben Chorin (1967), dirigida aos cristãos: «A fé de Jesus une-nos, mas a fé em Jesus divide-nos.» É óbvio, com efeito, que o judaísmo de Jesus é o mesmo que Israel praticava e em que acreditava, mas a sua pretensão de messianidade e divindade, acolhida e professada pelos cristãos, marca um radical sulco divisório.

Análogo será o recontro com o Islão, que absorverá, por osmose, muitos temas e episódios do Evangelho, inclusive através de deformações gnosticizantes, como no caso da tese do sósia na cruz (Jesus não teria morrido crucificado, por isso ser demasiado ignominioso para um profeta como Ele, mas teria sido substituído por outro judeu, talvez Judas ou o Cireneu). Umas quinze suras e noventa e três versículos do Corão falam dele e celebram-no como masih (Messias), rasul (enviado) profético de Deus, «palavra de Deus», muslim perfeito, ou seja, crente totalmente «submisso» à vontade divina. No entanto, permanece também aqui a pedra de tropeço da divindade: «Adeptos do Livro! Não exagereis na vossa religião, nem digais sobre Deus mais do que a verdade. Realmente o Messias, Jesus, filho de Maria, é o enviado de Deus, o seu Verbo, que nasceu de Maria e de um espírito proveniente dele. Crede em Deus e nos seus Enviados. Não digais: Três!... Deus é um Deus único. Longe da sua glória ter um filho!» (Alcorão 4,171).

A partir da data do seu nascimento, convencionalmente estabelecida como referência da numeração dominante do tempo histórico, Jesus impregnou com a sua palavra e com a sua presença a história do Ocidente, que não seria a mesma sem Ele, nem em termos de bem nem de mal. Em 1972, num seu ensaio, o filósofo marxista de Praga, Milan Machovec, também se interessou sobre o que era Jesus para os ateus. Fé e dúvida, adoração e blasfémia, entreteceram-se, de facto, à volta dele. A teologia, ao longo dos séculos, foi elaborando vastas, gigantescas arquiteturas cristológicas. O agnosticismo tentou desmitificar Cristo, abordando-o apenas no âmbito exclusivo da humanidade, ora como um poderoso Hércules (Ronsard), ora como um Orfeu feiticeiro (Jouve e Pierre Emmanuel).

Houve quem tentasse vê-lo como a encarnação de um ideal moral elevadíssimo (Tolstoi), como um supremo mestre de ética, símbolo do espírito humano (Hegel), como um Sócrates superior e perfeito (Rousseau), como a «figura doce e simples» da humanidade, antitética em relação à intolerância da Igreja (Voltaire), como «o mediador sem o qual toda a comunicação com Deus é suprimida» (Pascal), por vezes apropriando-se dele com fins sociopolíticos (os contemporâneos teocon e ateus devotos) ou banalizando-o e falsificando-o em perfis erótico-esotéricos, ao estilo de Dan Brown, etc.

Têm-no rejeitado como porta-bandeira «dos corações puros, dos sofredores e dos fracassados» (Nietzsche), ou relegado para o meio dos utopistas e dos «vagabundos flagelados» (Hugo), e até reduzido a uma caricatura (Anthony Burgess e Gore Vidal) ou a uma apaixonada blasfémia (José Saramago), a uma paradoxal fé ateia libertadora dos íncubos sagrados (Bloch), ou enfaticamente exaltado como «o maior Revolucionário, o supremo Paradoxo, o Subversor radical e destemido» (Papini).

Um crente adamantino, como Mauriac, confessava na sua famosa Vida de Jesus (1936):

Se eu não tivesse conhecido Cristo, “Deus” seria para mim um vocábulo vazio de sentido […]. O Deus dos filósofos e dos eruditos não teria tido qualquer lugar na minha vida moral. Era necessário que Deus se imergisse na humanidade e que, a um dado momento da história, num determinado ponto do globo, um ser humano, feito de carne e de sangue, pronunciasse certas palavras e realizasse certos atos, para que eu caísse de joelhos.

Escrevia, com razão, Luigi Santucci na sua «vida de Cristo» de 1969, sugestivamente intitulada com a célebre pergunta de Jesus: Também vós quereis ir embora? (Jo 6,67), que frente à figura de Cristo se adensam «as certezas e o entusiasmo das horas cristãs, mas também brotam as ervas da dúvida e da angústia. Trigo e joio, como está escrito, no livre campo da vida».

Publicando no ano de 1985, em Yale (Estados Unidos), uma obra sobre Jesus através dos séculos e o seu lugar na história da cultura, escrevia Jaroslav Pelikan: «Para lá de tudo aquilo que cada um possa pessoalmente pensar ou crer acerca de Jesus de Nazaré, Ele tem sido, ao longo de quase vinte séculos, a figura dominante da história da cultura ocidental.»

Nos múltiplos rostos com que Jesus tem sido representado, temos o espelho das inquietações, das esperanças, da fé, da expectativa, da dúvida e da rejeição da humanidade. Temos o eco perene daquela interrogação da qual partimos, que Jesus deixara insinuar-se nos seus discípulos, e que continua a repercutir-se também neste tempo, um pouco precipitadamente classificado como pós-cristão. Com efeito, como escrevia Mario Pomilio no seu Quinto Evangelho (1975), «Cristo colocou-nos perante o mistério, colocou-nos definitivamente na situação dos seus discípulos frente à pergunta: Mas vós, quem dizeis que Eu sou?». Foi um marxista como Ernst Bloch, no seu Ateísmo no cristianismo, que tentou explicar como é inquietante essa interrogação, inclusive para o agnóstico de hoje: «Em Jesus, não foi pregado na cruz um fanático inofensivo, mas deu-se o advento de um homem que inverte os valores do mundo presente.»

 

Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura
In Quem és Tu, Senhor? - Encontros e desencontros com o Homem que mudou a História, ed. Paulinas
08.04.13

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Capa

Quem és Tu, Senhor?
Encontros e desencontros com o Homem que
mudou a História

Autores
Gianfranco Ravasi

Editora
Paulinas

Ano
2013

Páginas
144

Preço
12,00 €

ISBN
978-989-626-452-

 

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