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Leitura: "Redescobrir a árvore da vida - Um economista lê o livro do Génesis"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: "Redescobrir a árvore da vida - Um economista lê o livro do Génesis"

É ao escritor italiano Antonio Tabucchi (1943-2012), que aprendeu português por causa da sua paixão por Fernando Pessoa, que Luigino Bruni dedica a primeira tradução do seu livro "Redescobrir a árvore da vida - Um economista lê o livro do Génesis", recentemente lançada em Portugal, de que apresentamos o primeiro capítulo.

«Não creio ter tido, na minha vida adulta, momentos espiritualmente mais intensos do que quando encontrei Noé, Agar, José. Foram encontros decisivos, que me transformaram para sempre, como escritor de livros e como alguém que busca a verdade e a beleza», escreve o autor na introdução à edição portuguesa.

Nascido em 1966, Luigino Bruni, presença regular na página do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, começou, como ele próprio descreve, «um comentário exigente, corajoso» de «alguns grandes livros da Bíblia – até agora Génesis, Êxodo, Job, Qohélet» no diário "Avvenire", pertencente à Igreja católica em Itália, país onde nasceu.

«Comentando Adão, Caim, Jacob, Tamar, José, encontrei a Bíblia, aprendi a conhecê-la e fui-me instruindo, dia após dia, na difícil tarefa de fazer as antigas histórias falar no nosso tempo, nas nossas casas, nas famílias, nas empresas. Uma tarefa muito difícil, que muitas vezes não se aprende e faz com que nos deparemos com usos inexatos e impróprios dos textos bíblicos, que utilizam e instrumentalizam a Escritura para se servir dela para as próprias mensagens, em vez de a servir», declara.

A Bíblia, prossegue o professor universitário de Economia Política, «é um grande código simbólico»: «Contando-nos histórias, ensinou-nos a falar, a sonhar. As suas palavras maiores deram-nos palavras para sonhar, pensar e narrar os nossos contos. Quão pobres seriam a nossa arte, a nossa poesia e a nossa literatura sem a Bíblia?».

Para o coordenador do projeto "Economia de Comunhão", ligado ao movimento católico Focolares, artistas como Thomas Mann, Kafka, Dante, Shakespeare, Miguel Ângelo, Piero della Francesca, Pontormo «tinham o génio para criarem eles próprios novos mitos, mas quiseram apoiar-se na Bíblia para continuar a criar o mundo com a sua arte».

«Que um economista e historiador do pensamento económico com a grandeza de Luigino Bruni se detenha numa leitura altamente competente de um icónico texto bíblico não deveria, por isso, constituir uma surpresa. A economia precisa de iniciativas assim para tornar-se o que ela é: uma ciência humana e não simplisticamente técnica, um saber humanista e não uma roleta da sorte», sublinha José Tolentino Mendonça, no prefácio

No texto intitulado "Podemos confiar num economista que lê a Bíblia?", o biblista sustenta que o livro do Génesis lido por Luigino Bruni neste volume da editora Cidade Nova «surge como uma chave e um mapa para o entendimento do humano».

«Senti, ao correr dos anos, o fascínio do fado, de Fernando Pessoa, de José Saramago. E de Antonio Tabucchi, que nos deixou quando eu começava a amar e a estimar Portugal. Quero dedicar a ele este livro, a um escritor italiano que tanto amou e estimou Portugal. E quero procurar imitá-lo, ao menos um pouco», assinala Luigino Bruni na conclusão do prefácio.

 

Viagem ao fim da noite
Luigino Bruni
In "Redescobrir a árvore da vida"

Ouvistes falar daquele homem louco que, à clara luz da manhã, acendeu uma lanterna, correu ao mercado e pôs-se a gritar incessantemente: «Procuro Deus! Procuro Deus!». E visto que, precisamente lá, se encontravam reunidos muitos dos que não acreditavam em Deus, provocou grandes gargalhadas. Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra

Há períodos da História em que os povos se dão conta de que as coisas antigas já passaram, que um certo “mundo” está a acabar e é muito forte o desejo de coisas novas. O tempo que vivemos é um desses momentos. É sem dúvida o que se passa com a Europa. Está a atravessar uma grande noite cultural que, mais tarde ou mais cedo, há-de passar, mas não sabemos ainda com que custos e qual o desfecho. É preciso iniciar uma “viagem ao fim da noite”, mas que só poderá começar se tivermos a esperança coletiva de que essa noite vai acabar por desembocar numa aurora. As solidões, a tristeza, a indiferença recíproca, a insensibilidade para com os pobres, não podem ser as últimas palavras do humano ou desta geração. Não o queremos, e não o podemos aceitar. Pôr-se a caminho significa, então, não esperar passivamente pelo novo dia, mas dirigir-se para oriente, para ir ao encontro do sol que nasce, antecipando assim a sua vinda. Pôr-se a caminho implica trabalho, incluindo cultural e intelectual. Um trabalho doloroso, porque vai na direção contrária à onda de “pensamento” daqueles que fazem parte da clientela, dos que tiram lautos lucros e rendimentos cada vez maiores das solidões, tristezas e indiferenças de hoje. Este capitalismo há-de passar porque, na sua última versão, nunca conseguiu – e nós com ele e nele – orientar as mais fortes aspirações dos seres humanos para os bens – as coisas boas –, contentando-se com mercadorias. Mas, se retirarmos do horizonte tudo aquilo que não está à venda, até os desejos se rebaixam ao nível das mercadorias, e assim acabamos por desejar apenas o que se encontra no espaço dos mercados. Falar de Europa e Ocidente é falar de humanismo hebraico cristão, nas suas várias declinações, rebentos, contaminações, doenças, reações, mas, principalmente, nos seus copiosos e extraordinários frutos de civilização. Este humanismo tem códigos de fundação bem determinados. Um deles, o mais profundo e fecundo, é o grande código bíblico, que, desde o Génesis até ao Apocalipse, nos forneceu, ao longo de milénios, as palavras para dizer política e amor, morte e economia, esperança e desventura. Numa época em que as nossas palavras estão cansadas, já não dizem nada porque “gastas” e reduzidas a “sopro de vento” (Qohélet), é necessário pôr-se em viagem, à procura de Palavras maiores e mais antigas do que nós e do que a nossa idade. Algumas dessas palavras de vida podem encontrar-se na literatura, na poesia, na arte e até nos grandes mitos e nas narrativas populares que nos salvaram durante as guerras e as muitas carestias, e continuam a fazê-lo. Mas existem outras Palavras, histórias e narrativas maiores e mais profundas: são as palavras bíblicas que alimentaram e inspiraram a nossa civilização. Centenas de gerações já releram e reviveram. Impregnaram as nossas mais belas obras de arte, os sonhos de crianças e de adultos. Deram esperança em muitos exílios e escravidões, por que passámos e estamos a passar. Não há histórias de libertação maiores que as do Êxodo; feridas mais férteis que a de Jacob, bênção mais desesperada que a de Isaac, gargalhada mais séria que a de Sara, contrato mais injusto que o de Esaú, obediência mais salvífica que a de Noé, pecado mais torpe que o de David contra Urias, o hitita, desventura mais radical que a de Job, pranto mais fraterno que o de José, paradoxo maior que o de Abraão no monte Moriá, grito de parto mais lacerante que o da cruz, desobediência mais amante da vida que a das parteiras do Egito. E se existem, eu ainda não os encontrei. São muitos os motivos que fazem estas narrativas e estes contos “maiores”. Um deles é a sua ambivalência radical que, se for aceite e compreendida, permite evitar aquelas dicotomias que estão sempre na raiz primordial de todas as ideologias. Aquelas histórias, por exemplo, dizem que a fraternidade-irmandade está sempre paredes meias com o fratricídio. São as duas vias em que, por sua vez, se bifurcam os muitos caminhos das histórias das pessoas e dos povos. A Bíblia convida a situarmo-nos nos lugares onde estas duas estradas se cruzam e a tomar consciência de que ambas são sempre possíveis. A nossa responsabilidade está em conseguir que as razões da fraternidade prevaleçam sobre as do fratricídio. Todas as grandes narrativas são, antes de mais, uma oferta gratuita de palavras que nos faltam, palavras oferecidas para rezar, pensar, ouvir e amar. Quando nos faltam histórias e palavras grandes, vamos buscá-las à tagarelice e às novelas e, com esses tijolos pequenos só conseguimos construir casinhas pequenas, casebres à espera de proprietários. Mas, com os tijolos da escravidão do Egito, podem construir-se caminhos de libertação. A Bíblia inspirou sempre muito a literatura, muitíssimo a arte, por vezes até o direito e a política. Mas não a economia moderna que, salvo raras exceções (Genovesi, Wicksteed, Viner e poucos mais), não quis deixar-se inspirar pelo Livro dos livros. A vida económica tinha estado durante séculos e séculos “sob a tutela” dos textos sagrados – sobre o crédito, os juros… – e, logo que atingiu a maioridade, procurou e quis a sua liberdade, fugindo. Mas, passados alguns séculos, é hoje possível – e, creio, necessário – um novo diálogo na liberdade e na reciprocidade. A Palavra bíblica tem muitas palavras de vida a dizer à nossa economia e, portanto, à nossa vida. E pode dizer-nos coisas que não disse ainda, porque há já muito tempo que ninguém lhe pergunta nada.  Mas, se é verdade que a leitura da Bíblia pode enriquecer a economia, é verdade também que novas questões “económicas” podem levar aqueles textos a dizer coisas que até hoje não disseram.

A História humana foi sempre um diálogo entre novas questões e novas respostas. Se, por um lado, a Palavra promoveu o progresso humano, por outro, e num plano diferente, também a História dos homens permitiu compreender significados sempre novos das Escrituras – nisto reside também a enorme dignidade da História. Se a Bíblia voltar a falar nas praças, nas empresas, nos mercados, haverá uma grande vantagem para esses espaços da humanidade. E ficará mais rico também o texto bíblico, pois poderá oferecer respostas que não tinha ainda dado, por falta de perguntas. Sem o nutrimento das praças e dos mercados, sem o húmus do quotidiano e sem o cansaço do esforço, o grande Livro não se torna a árvore da vida.  É com estas premissas que se abre a minha exposição. Fazendo-lhes perguntas, vou tentar que aqueles antigos textos nos digam também palavras económicas e civis contemporâneas. Mas as perguntas mais interessantes e mais necessárias para os tempos de hoje vão ser as que aqueles textos nos vão fazer. Boa parte do desafio estará em não querer atualizar aquelas páginas antigas, mas em tornarmo-nos nós contemporâneos delas. Vamos lê-las juntos, com milénios de história, na companhia de muitos, crentes e não-crentes, que dialogaram com a Bíblia e que, enriquecendo-a, tornaram mais rico o mundo. A Paixão segundo Mateus é mais luminosa depois de Bach; Jacob é melhor depois de Rembrandt; José é mais extraordinário depois de Thomas Mann. Se assim não fosse, a História seria um inútil pano de fundo para a representação teatral de um libreto em segunda mão. E aqueles longínquos livros já não estariam vivos. Se quisermos salvar-nos, temos que imitar as parteiras do Egito: não obedecer às ordens homicidas dos novos faraós, mas salvar as crianças. Só assim teremos ainda uma terra.

 

Publicado em 01.12.2015

 

 
Imagem Capa | D.R.
Que um economista e historiador do pensamento económico com a grandeza de Luigino Bruni se detenha numa leitura altamente competente de um icónico texto bíblico não deveria, por isso, constituir uma surpresa. A economia precisa de iniciativas assim para tornar-se o que ela é: uma ciência humana e não simplisticamente técnica
Há períodos da História em que os povos se dão conta de que as coisas antigas já passaram, que um certo “mundo” está a acabar e é muito forte o desejo de coisas novas. É sem dúvida o que se passa com a Europa. Está a atravessar uma grande noite cultural que, mais tarde ou mais cedo, há-de passar, mas não sabemos ainda com que custos e qual o desfecho
Não há histórias de libertação maiores que as do Êxodo; feridas mais férteis que a de Jacob, gargalhada mais séria que a de Sara, contrato mais injusto que o de Esaú, obediência mais salvífica que a de Noé, pecado mais torpe que o de David contra Urias, desventura mais radical que a de Job, pranto mais fraterno que o de José, paradoxo maior que o de Abraão, grito de parto mais lacerante que o da cruz
A nossa responsabilidade está em conseguir que as razões da fraternidade prevaleçam sobre as do fratricídio. Todas as grandes narrativas são, antes de mais, uma oferta gratuita de palavras que nos faltam, palavras oferecidas para rezar, pensar, ouvir e amar
A Palavra bíblica tem muitas palavras de vida a dizer à nossa economia e, portanto, à nossa vida. E pode dizer-nos coisas que não disse ainda, porque há já muito tempo que ninguém lhe pergunta nada. Mas, se é verdade que a leitura da Bíblia pode enriquecer a economia, é verdade também que novas questões “económicas” podem levar aqueles textos a dizer coisas que até hoje não disseram
A Paixão segundo Mateus é mais luminosa depois de Bach; Jacob é melhor depois de Rembrandt; José é mais extraordinário depois de Thomas Mann. Se assim não fosse, a História seria um inútil pano de fundo para a representação teatral de um libreto em segunda mão
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