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Leitura: "Roteiro dos navegantes - As respostas da fé"

Imagem Card. Gianfranco Ravasi | D.R.

Leitura: "Roteiro dos navegantes - As respostas da fé"

A Lucerna, chancela da editora Principia, vai lançar esta quinta-feira, em Lisboa, o livro "Roteiro dos navegantes - As respostas da fé", da autoria do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho da Cultura.

A sessão de lançamento do volume, que será apresentado por João César das Neves, decorre a partir das 18h00, na Universidade Católica, no âmbito da conferência que o biblista vai proferir, intitulada "Parábolas mediáticas e parábolas evangélicas - Comunicar a fé no tempo da internet”.

A partir das 16h30 do dia seguinte, no mesmo local, Ravasi recebe o doutoramento "Honoris Causa", tendo como padrinho o padre José Tolentino Mendonça, vice-reitor da UCP, e também especialista em estudos bíblicos.

"Ao embarcar", "A cidade secular", "A cidade do Homem", "A cidade de Deus" e "À chegada" são os cinco portos na rota proposta por Gianfranco Ravasi, que no seu mapa propõe títulos como "Santos cristãos e budistas", "A impotência que salva", "Para além da pá do coveiro" e "Ciência coxa e religião cega".

Apresentamos um excerto, a partir dos primeiros parágrafos da obra

 

Barcos "sem timoneiro"
Card. Gianfranco Ravasi
In "Roteiro dos navegantes"

«Encontrei um polícia, corri para ele e, já sem fôlego, perguntei-lhe o caminho. A sorrir, disse-me:
- Queres que seja eu a dizer-te o caminho?
- Sim, porque sozinho não consigo encontrá-lo - respondi-lhe.
- Desiste, desiste! - disse-me, voltando-se como quem se ri às escondidas»

Sempre me impressionou este fragmento de um conto de Kafka emblematicamente intitulado "Desiste!",porque pode tornar-se uma parábola do «homem labiríntico» [à maneira de (Jorge Luis) Borges ou de Robbe-Grillet], que vive mergulhado numa rede de palavras, vozes, ideias e solicitações. Contudo, navega no mar da Internet como um Ulisses que não tem atrás de si nenhuma Ítaca e, por isso, não sabe para onde virar a proa do barco para apontar para uma meta.

A metáfora antiga da navegação, já adotada por Santo Agostinho para a investigação filosófica e teológica, é, efetivamente, assumida agora pela linguagem informática. Também Orígenes de Alexandria, pensador sagaz dos primeiros séculos cristãos, dava conta nestes mesmos termos simbólicos da sua desorientação face ao horizonte do ser, imanente e transcendente, racional e misterioso, profano e sagrado, «como quem, num barquinho no meio do mar, é assaltado por uma imensa angústia ao confiar um pequeno madeiro à imensidão das ondas, como também nós sofremos enquanto ousamos avançar num tão vasto oceano de mistérios». É a mesma experiência que, passado milénio e meio, o filósofo Soren Kierkegaard indicava para o homem moderno quando no seu "Diário", em pleno século XIX, retomava a mesma imagem: «O barco está nas mãos do cozinheiro de bordo. E o que o altifalante transmite já não é a rota, mas o que comeremos amanhã».

Contudo, a variação é significativa. É verdade que o Homem continua perdido, perturbado, sem bússola ideal e moral. Mas, como no conto de Kafka, encontra alguém que, aparentemente, poderá conhecer a carta marítima e a rota. Só que surge a desilusão. Para o escritor de Praga, o agente de riso disfarçado e carregado de ironia propõe o típico «deixa andar» da superficialidade e do ceticismo: «Desiste, desiste! Não precisas procurar um sentido, pois não existe ancoradouro onde possas abrigar-te e encontrar resposta e paz interior». Um poeta italiano, Giorgio Caproni, reeditou a mesma cena de Kafka com êxito idêntico: «Tinha-me perdido, Annaspavo./Procurava uma saída./Perguntei a um. "Não sou"/respondeu-me/"daquí"». Neste ponto, entra em cena a indiferença, outra doença da alma contemporânea, que tem o seu duplo na voz que sai do altifalante do barco de Kierkegaard.

É melhor dar ouvidos ao cozinheiro que responde ao imediato e óbvio instinto primário; é melhor reparar no desabrochamento do prazer que narcotiza todas as interrogações, segundo as modas e os modos ditados pelos "spots"publicitários, tão brilhantes, evidentes e nítidos. Por isso, a tentação é dupla: baixar a pala do boné, desligar o áudio da consciência, mostrando-se indiferente, ou então levantar as mãos em sinal de rendição ou de adoração diante do bezerro de ouro idolátrico. Será este o retrato, duro mas autêntico, do horizonte em que agora estamos mergulhados? Não estará demasiado marcado pelo pessimismo da ascese ou da "hybris"salvífica do teólogo? No mar da nossa história navegam barcos sem timoneiro», como dizia Dante no seu "Purgatório" (VI, 77), sem bússola nem estrela polar? E, depois do funeral das ideologias celebrado no século passado, também os ideais estarão sepultados? Já se avança como num crepúsculo sem pais, profetas ou mestres? Talvez o profeta Isaías já divisasse os nossos dias quando, antecipando Kafka, confessou: «Olhei: não havia ninguém capaz de aconselhar, ninguém a quem interrogar para obter uma resposta» (41, 28).

A própria circunstância de, nos nossos dias, não ser raro um filósofo sem pertenças confessionais e um teólogo católico se sentarem num cruzamento a interrogar-se, a falar, a ouvir já é um indício, pequeno mas significativo. A convicção comum que os une é a de Pascal, quando reconhecia que «o Homem supera infinitamente o Homem». Por mais que se tente embelezá-lo com produtos de luxo, distraí-lo com o borboleteamento das curiosidades da rede e deixá-lo sem rédeas morais, todos os dias ele se apaixona, sofre, goza, se surpreende, se estupidifica, se exalta, se desespera, se sente intimamente agarrado, pensa e morre. Então, para continuarmos na metáfora, experimentemos propor-lhe uma navegação conduzida à maneira augustiniana e seguindo portulanos inabituais, isto é, cartas náuticas que indiquem diversos percursos e ancoradouros, mas sempre «significativos», quer dizer, dotados de significado, com sentido.

Na verdade, é sugestivo que a civilização ocidental - como já Erich Auerbach tinha chamado a atenção em "Mimesis"(1946) - se inicie idealmente com duas viagens arquetípícas: a «laica» de Ulisses à procura da meta perdida e a religiosa de Abraão e Moisés, à procura de uma terra prometida inteiramente por descobrir. O homem contemporâneo deveria tentar embarcar ou apetrechar-se para uma caminhada tendo, pelo menos, o espírito indagador do Montaigne dos "Ensaios":«A quem me pede a razão das minhas viagens, habitualmente respondo que só sei bem o que evito, mas não o que procuro». Quando os primeiros cristãos decidiram atribuir a si mesmos uma denominação identificativa, escolheram surpreendentemente o título «seguidores do caminho», como nos atestam os Atos dos Apóstolos (9, 2; 19, 9.23), lembrando-se talvez daqueloutra igualmente surpreendente autodefinição do seu Senhor e Mestre no Evangelho de São João: «Egô eími he hodô»- «Eu sou o caminho» (14,6). Um caminho tantas vezes tão árduo como uma vereda no cimo da montanha, a tal ponto que o próprio Deus de Isaías reconhece que «os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, os vossos caminhos não são os meus caminhos; antes pelo contrário, tanto quanto o céu está acima da Terra, também os meus caminhos estão acima dos vossos» (55, 8-9).

No entanto, as distâncias incomensuráveis da transcendência não são intransponíveis, como é possível constatar com uma dupla experiência.

A primeira é humana e tem um nome frequentemente sujeito a degeneração: "fé", um termo que comporta no seu interior uma situação de risco porque supõe um ato de confiança; trata-se, portanto, substancialmente, de embarcar numa aventura de amor, num conhecimento que se desenvolve num canal não exclusivamente sujeito à lógica racional.

Em "Temor e Tremor"(1843), Kierkegaard disse estar convencido de que «a fé começa onde a razão acaba». Na verdade, o Homem que crê, tal como aquele que ama, não é irracional, mas simultaneamente racional e metarracional. O filósofo dinamarquês também nos pode ajudar com a mesma obra, que dedicou à dramática subida do patriarca Abraão pela vereda pedregosa e espinhosa do monte Moriá, a montanha da crise de fé, quando afirma: «A fé é a mais alta paixão de cada homem. Talvez haja em cada geração muitos homens que não chegam a ela, mas nenhum vai para além dela». E por meio dessa paixão extrema e suprema tem lugar um encontro.

E é precisamente neste ponto que se delineia a outra experiência a que somos convidados e em que somos, depois, envolvidos - a que tem outro nome passível de ambiguidades e equívocos: "revelação". Na realidade, discordando pacificamente do Qohélet, ou Eclesiastes, a sabedoria bíblica com que ainda havemos de nos cruzar ao longo da nossa navegação ideal, não é verdade que não haja «nada de novo debaixo do Sol». Todas as auroras nos trazem dias diferentes, as epifanias multiplicam-se. Mas, para isso, é preciso ter «olhos que vejam e ouvidos que ouçam», como sugeriu Jesus.

o escritor inglês Gilbert K. Chesterton estava convencido de que «o mundo não perecerá por falta de maravilhas, mas por falta de maravilhamento. Portanto, é indispensável que nos armemos com acuidade visual e nos equipemos para perceber os sinais, não paranormais, mas simbólicos, quer dizer, os que, embora baseados na história e no espaço, pretendem indicar-nos um além e um outro alguém. Com um conhecimento que confia a vários níveis e não se encapsula na gramática, embora nobre, da pura racionalidade formal, é possível assistir a ulteriores desvendamentos epifânicos do ser. O supremo desvendamento é o da transcendência ou, para sermos mais explícitos, de Deus: esse é precisamente a «revelação», cujos canais de manifestação procuraremos decifrar, pondo desde já de lado as ambiguidades da magia, os equívocos do esoterismo, o caráter ilusório da idolatria e os atalhos da devoção.

Efetivamente, há uma experiência de Deus em que o genitivo é subjetivo (ou, seja, que é feita pelo próprio Deus) e que se cruza com a nossa experiência de Deus, em que o genitivo é evidentemente objetivo (ou, seja, a nossa própria procura de Deus). Eugene Ionesco, numa entrevista, recorreu ao paradoxo: «Precipito-me para o telefone sempre que toca, com a esperança, todas as vezes dececionada, de que possa ser Deus quem telefona. Ou, ao menos, um dos seus anjos secretários». De modo igual, o seu amigo Émile Cioran confessava que «espiava [os movimentos de] Deus», embora não deixasse de se reconhecer como um dos inscritos na «raça dos ateus» e suspeitasse sempre de que o nome de Deus era «Nada». Mas qual poderá ser o nome mais autêntico desse Interlocutor intercetável em cumprimentos de onda especiais do ser e do existir? A resposta é antitética da de Cioran e poderia ser semelhante ao que acontece há séculos na dura solidão do deserto do Sinai.

«Uma sarça ardia pelo fogo, que, no entanto, não conseguia consumi-Ia» Daquele arbusto ardente de sarça saiu uma voz: «'Ehyeh 'asher 'ehyeh»- Eu sou aquele que sou!» (Ex 3, 2.14). Um nome certamente enigmático, mas revelador de uma identidade clara. Deus é, antes de mais, um Eu. Não é aquele que os Sumérios imaginavam quando numa tabuinha de argila gravaram as palavras «Deus é uma confusão de fios em que não se encontra a ponta da meada». A divindade é vista como uma força obscura, uma Esfinge indecifrável, um Fado [um destino] irracional que não tem nada a revelar, uma Medusa de mil rostos contraditórios. Deus, pelo contrário, é uma Pessoa que se denomina com um verbo - Eu-Sou - e que, portanto, conhece o dizer e o fazer; não é relegável para a estaticidade de uma estátua, não é apático nem insensível. Pelo contrário, Ele denomina-se com o verbo que é o eixo da realidade, a sua nascente última, a sua estrutura dinâmica: Ser. Mas, se é um Eu quem fala e opera, deverá ter um rosto.

 

Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 26.01.2015

 

Título: Roteiro dos navegantes - As respostas da fé
Autor: Gianfranco Ravasi
Editora: Lucerna
Páginas: 104
Preço: 11,25 €
ISBN: 978-989-851-698-5

 

 
Imagem Capa | D.R.
É verdade que o Homem continua perdido, perturbado, sem bússola ideal e moral. Mas, como no conto de Kafka, encontra alguém que, aparentemente, poderá conhecer a carta marítima e a rota. Só que surge a desilusão
E, depois do funeral das ideologias celebrado no século passado, também os ideais estarão sepultados? Já se avança como num crepúsculo sem pais, profetas ou mestres? Talvez o profeta Isaías já divisasse os nossos dias
A própria circunstância de, nos nossos dias, não ser raro um filósofo sem pertenças confessionais e um teólogo católico se sentarem num cruzamento a interrogar-se, a falar, a ouvir já é um indício, pequeno mas significativo
Discordando pacificamente do Qohélet, ou Eclesiastes, a sabedoria bíblica com que ainda havemos de nos cruzar ao longo da nossa navegação ideal, não é verdade que não haja «nada de novo debaixo do Sol». Todas as auroras nos trazem dias diferentes
O escritor inglês Gilbert K. Chesterton estava convencido de que «o mundo não perecerá por falta de maravilhas, mas por falta de maravilhamento. Portanto, é indispensável que nos armemos com acuidade visual e nos equipemos para perceber os sinais, não paranormais, mas simbólicos
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