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Poesia

Sebastião da Gama: «cantor das coisas belas da vida, dos sentimentos nobres, da pureza»

Sebastião Artur Cardoso da Gama nasceu a 10 de abril de 1924 e morreu a 7 de fevereiro de 1952, há 60 anos, vítima de tuberculose.

Entre as suas obras incluem-se "Serra-Mãe" (1945), "Loas a Nossa Senhora da Arrábida" (1946) - serra localizada perto do local de nascimento, Vila Nogueira de Azeitão, e que o haveria de inspirar -, "Cabo da Boa Esperança" (1947), "Campo Aberto" (1951), "Pelo sonho é que vamos" (1953), "Itinerário Paralelo" (1967) e "O Segredo é Amar".

Apresentamos o prefácio à segunda edição de "Pelo sonho é que vamos" (Edições Ática), assinado por Ruy Belo em novembro de 1970.

 

Prefácio a "Pelo sonho é que vamos"
Ruy Belo

Não ter conhecido pessoalmente Sebastião da Gama constituirá decerto·um dano irreparável para quem queira falar do homem ou redigir um depoimento. Mas já para abordar a sua obra do ponto de vista estético-literário - o único que permitirá porventura considerá-lo a uma luz próxima daquela a que a verão as gerações futuras - se nos afigura essa condição indispensável, tão perigoso fascínio exerceu. o poeta sobre todos os que o rodearam. Tanto assim que são frequentes os pedidos de desculpa pela possível falta de objetividade. E o certo é que essa falta, realmente frequente naqueles que, com exceção de Jorge de Sena, têm escrito sobre ele, está a prejudicar grandemente o acesso à sua poesia. Quem o não conheceu, quem para seu mal não pertence a essa legião de iniciados, tem à sua mão a obra. Grande responsabilidade, mas honra indeclinável. Assim se explicará em parte que tenhamos passado longos meses em luta com os textos, na suprema ambição de proferir a palavra justa.

Sebastião da Gama morreu muito novo, demasiado novo. E se, no caso de um Rimbaud, uma morte nessa idade seria ideal por a obra estar concluída e se não saber o que fazer da vida, no caso do poeta português verifica-se uma interrupção irremediável, porque tinha a vida e a sua lição à frente e porque vinha melhorando surpreendentemente de livro para livro. Efetivamente, julgamo-nos em condições de confirmar, depois de madura reflexão, o que já se depreenderia dos pressupostos adotados num ingénuo estudo por nós há anos publicado sobre o poeta: que, se Pelo sonho é que vamos é o seu melhor livro, apesar de forçosamente nem todos os poemas terem a mesma qualidade, Serra-Mãe é iniludivelmente o pior que escreveu, de tal maneira que só adquire algum significado em função aos seguintes; que, se é lícito e até pedagógico falar de «livros de formação» e «livros da plena maturidade» do poeta, a principal linha de rutura se estabelece entre Serra-Mãe e Cabo da Boa Esperança, enquanto os livros seguintes vão sendo progressivamente melhores e incluindo poemas tão significativos como Alegoria e Largo do Espírito Santo, 2, 2.°.

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Sebastião da Gama ficou afinal «a meio da canção», o que tanto se esforçou por evitar. Mas no meio dos amigos e companheiros, que tanto lhe queriam que nem sempre o aconselhavam bem, ele era afinal o mais esclarecido e sabia muito bem para onde ia. Assim mesmo como ficou, quer-nos parecer que tem o seu lugar na poesia portuguesa da primeira metade deste século. E isso é muito importante para quem, se começou a ler poesia muito cedo, nem sempre teve o instinto de recrutar da melhor maneira as suas influências, o que bem é visível não só pela comparação do seu adolescente livro de estreia, igual a tantíssimos outros, com o segundo livro, já muito seu, como pelo exame de Itinerário Paralelo, um livro que, apesar de forçosamente marginal, não deixa de ser significativo e de incluir poemas até como Mundos fantásticos, não.

Uma vez que estamos a falar de versos e procuramos situar textos, não interessará muito saber em que medida ser bom homem, ótimo homem e fazer que, por esse facto, ela seja boa ou ótima. Atendendo à etimologia da palavra poeta, à distinção tomista entre as duas virtudes diferentes do intelecto que são a prudência - reino da ação, da vida - e a arte - domínio do que se faz, da obra- não é que não tenha interesse a biografia, mas o que inequivocamente tem primordial importância são os textos, os positivos textos. Só de quem foi poeta na obra interessará saber se foi poeta na vida. Nada mais do que isso nos interessa. De resto o poeta sabia que assim era e desejava que da sua obra falassem «objetivamente, friamente». Ele bem sabia que era afinal o melhor, o único serviço que lhe podiam prestar. A poesia era, parafraseando palavras suas, a única coisa nele em
que acreditava.

Sabemos, por testemunhos alheios e por marcas deixadas nos seus poemas, que a leitura da obra de Fernando Pessoa não chegou a tempo de influenciar as suas primeiras produções. Mas que já a tinha começado a ler uns seis anos antes da sua morte sabemo-lo hoje pela leitura de À memória de Alberto Caeiro e de Dístico, dois poemas datados de 1946 e posteriormente incluídos em Itinerário Paralelo.

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De qualquer maneira, desde cedo andou a contas com o problema da sinceridade na poesia. Na época da elaboração do Cabo da Boa Esperança, portanto talvez desde 1945, ele já sabia que os versos podem ser chaves falsas, que nem por isso deixam de abrir as portas verdadeiras. E que uma certa conceção da sinceridade pode levar à literatura no sentido pejorativo em que, desde Verlaine para cá, se passou a empregar o termo, transparece de uma carta dirigida a Maria de Lourdes Belchior e por esta em parte transcrita no prefácio a Campo Aberto (segunda edição): «Eu exijo tanta sinceridade a mim próprio, que encho os versos, às vezes, de pormenores que parecerão literários.» Parecerá literário, para não irmos mais longe, aquele segmento «e beijo a terra» pertencente ao seguinte dístico do poema Presença, datado de 1944 e incluído em Serra-Mãe: «Por que te não deténs, ó Voz, ó meu Prazer, / flagícío por que choro, e beijo a terra, e amo ... » No entanto essa chave falsa abre-lhe uma porta verdadeira: o poeta beijou efetivamente a terra, como afirmou a L. F. Lindley Cintra (Cf. Sebastião da Gama: Um depoimento in O Tempo e o Modo, n." 27, de maio de 1965, p. 166), e daí até talvez a intensidade e veemência da expressão. Não andamos muito longe da Autopsícografia, de Fernando Pessoa: o poeta sente deveras a dor que, no poema, lhe parece fingida a ele e aos outros. Mas isto eram subtilezas na altura difíceis realmente de entender. Como também aquilo de pretender que uma influência pode diminuir a sinceridade. Mas graças a este e a muitos outros falsos problemas dos amigos devemos nós hoje certos esclarecimentos que permitem dilucidar melhor as conceções poéticas de Sebastião da Gama.

Para a compreensão objetiva da sua poesia também não terá contribuído muito a enternecedora curiosidade de quantos o rodeavam em saber como escrevia os seus versos. Como nunca se isolou na vida, isolava-se no momento de conceber os seus poemas e já está. Assim se esquivava a essa curiosidade indiscreta mas compreensível. Não é todos os dias que se tem à mão de semear um poeta. A verdade é que nunca compunha na presença dos outros. Sabemo-lo por declarações do seu amigo L. F. Lindley Cintra expressas no citado depoimento e por declarações de Joana Luísa da Gama, sua mulher, também algures vindas a público. O certo é que, em parte devido a essa curiosidade, sabemos hoje em que medida «certo dado real», «certa coisa acontecida», certo «simbolo visto» desencadeiam o processo de criação e estão na base, por vezes, de mais ou menos complexos sistemas de elaboração artística. É o caso-limite desse grande poema que é, sem dúvida, Alegoria, apesar de, surpreendentemente, Jorge de Sena o não ter incluído na antologia que levou a cabo nas suas Líricas Portuguesas, 3.ª série. Sebastião da Gama terá ouvido uma cigarra cantar e daí terá partido para essa transposta meditação sobre a condição mortal do poeta.

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Por último, também não haverá facilitado o acesso à sua poesia o mito da inspiração, da involuntariedade da escrita, tão em descrédito hoje, e a conceção do poema como dádiva e não como conquista, expressa designadamente em várias composições de Serra-Mãe: logo no poema inicial A corda tensa que eu sou, em Harpa e em Diário de bordo, por exemplo.

Reconhecemos hoje o que, durante tanto tempo, nos custou a aceitar: que a morte desempenha na sua poesia um papel importante e pode constituir, como constituiu para David Mourão-Ferreira, tema para a abordagem da sua arte. Sebastião da Gama não terá falado tanto da morte como muitos outros poetas mas falou o suficiente para que o destino que lhe coube imprimisse um tom particularmente comovedor às suas fugazes incursões em tal domínio. Mas o que particularmente o individualiza, por mais frequente nele e mais raro nos outros, é o otimismo, a confiança na vida, a conceção e a prática saudável da poesia. Não estigmatiza ele, em carta a L. F. Lindley Cintra, «a melancólica poesia tradicional, a poesia de lágrima no olho»? Daí talvez o principal motivo de admiração por Cesário que, embora doente como ele, exaltou a vida e a natureza. Numa Carta de Estremoz, escrita em 5 de março de 1951 para o Jornal do Barreiro e incluída hoje em O segredo é amar, declara ele: «Houve para aí um poeta que foi o primeiro a não cantar as olheiras imorais de Ofélia - cantou a maçã, o tomate, a abóbora carneira, a alface. A tal natureza morta ... E a poesia mais saudável de Portugal nasceu. A maçã cheirou, pulsou no tomate o coração da terra. Natureza morta ... »

Ele próprio mostrava consciência de que, se tinha uma palavra nova a dizer, era uma palavra otimista, de adesão à vida. Já o era em muitos poemas de Serra-Mãe, designadamente no poema intitulado Convite a ser-se moço. É-o mais declaradamente nos livros seguintes. David Mourão-Ferreira, no prefácio a Itinerário Paralelo, também distingue, entre os diversos valores da sua obra, a «sôfrega procura de comunhão com tudo aquilo que o rodeava. Se, há uns quinze anos, em plena juventude, nos feria tão profundamente a primeira leitura de Pelo sonho é que vamos era talvez fundamentalmente por isso. No entanto, se nos parece que ver nesta obra um simples prolongamento de Campo Aberto implicará, ao fim e ao cabo, não ver nela o que ela trazia de novo mesmo na poesia do poeta, de tal maneira que com ela «iniciava uma nova fase da sua vida», como se lê na nota introdutória à primeira edição, a verdade é que Sebastião da Gama sempre se manteve coerente consigo próprio.

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Também nos parece não só profundamente injusto como particularmente defeituoso considerá-lo indiferente aos problemas dos que o rodeavam. Se fala de si, como o reconhece designadamente no poema Carta de guia, se é fundamentalmente um poeta lírico, é porque se sente com uma vocação particular, tem de medir «aquele verso perfeito / por que vim», é poeta «por graça desta minha alegria». Em luta com o repto lançado pelos poetas do Novo Cancioneiro, decerto por reconhecer o que nele havia de válido como programa, sempre defende o seu mundo interior e de pequenas coisas à mão e o certo é que, ao defendê-lo está a defender, sem necessidade de programas, o mundo do povo, dos humildes, porque ele próprio era, por simpatia, um homem simples, um homem do povo, um homem humilde. «O sol é meu e dos meninos ricos» - defende-se ele com o seu quê de amargura, por também o sol afinal não ser de todos. Quem, mais vibrantemente que ele, exalta a liberdade, nessa Cantilena que já constitui letra de uma balada: «Cortaram as asas / ao rouxinol. / Rouxinol sem asas / não pode voar»? E haverá mais comovedor canto de paz do que esse poema Quatro mil soldados, os quais, «todos combinados / negam a manhã»?

E aqui estamos nós diante de Pelo sonho é que vamos. Sabemos agora que não é o único livro de Sebastião da Gama, que há outros, como temos vindo a ver. Tem raízes mais atrás este canto sobre as pequenas coisas naturais, esta exaltação da vida natural, do sol, que condiciona mesmo o sobrenatural aqui e ali presente (é a sensação do aparecimento do sol que o leva a falar de graça, de Deus em Poesia depois da chuva, é, em Lá fora é que sim, a vida do ar livre que o faz religioso e não o interior penumbroso do templo), já vem afinal de trás esta aposta na vida («O céu é para os mortos, lavrador»), este otimismo (leia-se, por exemplo, o poema A uma rapariga) uma vez ou outra manchado por um pequeno laivo de melancolia, esta crença nas coisas simples ou simbólicas, esta poesia direta (em sentido de certo modo idêntico àquele em que se fala de «cinema direto» de um Jean Rouch), embora na menor metáfora já haja transposição, como o sabe muito bem Óscar Lopes, este cultivo das assonâncias (lá está por exemplo «todos» a rimar com «sonhos»], esta preferência pela rima entrelaçada, que chega a ser incompleta, como em Nupcial, esta poesia cingida, nervosa, apoiada por vezes nos curtos ritmos da redondilha menor, como em António Gedeão, etc.

No entanto, aqui Sebastião da Gama inaugurava realmente uma nova fase da sua vida. Era o poeta recém-casado a cantar em ritmos novos (na sua poesia a renovação dos motivos implica sempre uma renovação formal), a sua nova situação. Era o poeta finalmente dotado de uma musa própria, o poeta experiente, senhor do seu ofício. Era a poesia da maturidade de um adolescente, como ele próprio se reconhece em Regresso à montanha. No entanto, por vezes, não é que o mundo e o tempo lhe tenham levado tudo, mas levaram-lhe decerto alguma coisa (leia-se Esse tempo ... ).

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Não importa que este livro seja um punhado de poemas. O próprio autor, na sua Dissertação de licenciatura, a propósito da poesia de Herculano, afirmou: «Não me parece que, para que um espírito se afirme interessante e original, necessite deixar de si uma notícia muito extensa.» A verdade é que bastam os poemas que temos diante para catalogar Sebastião da Gama como aquilo que fundamentalmente ele foi: um cantor da vida, das coisas belas da vida, dos sentimentos nobres, da pureza. Ele é o oposto de um poeta maldito. Ele é a verificação de que se pode ser bom poeta cantando os bons sentimentos. Ele é, em toda a poesia portuguesa, da forma menos literária (confronte-se o paralelo que, numa conferência sobre Bocage, estabeleceu entre a forma de cantar o amor em Camões e em Bocage), o mais afirmativo cantor da cidade, donde ele seria o último dos poetas a ser expulso. E, no entanto, é um poeta. Se o não fosse, tudo o resto seria vão. Ele pertence à hoste dessa «gente de auscultar palavras», como reconhece numa Carta de Estremoz. A história tormentosa da sua poesia é a da emancipação das perniciosas influências, passando pela aceitação das influências válidas (começa no Cabo da Boa Esperança, com a influência de Sophia de Mello Breyner Andresen: «Lembro discretamente o vago instante») até à afirmação da sua plena personalidade literária. Poderia ter ido mais longe? Talvez. Mesmo assim como ficou, é um milagre da vida, da luta eficaz de um homem contra o destino adverso.

 

Ruy Belo
In Pelo sonho é que vamos (Sebastião da Gama), ed. Ática
30.11.12

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Sebastião da Gama

 

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