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Sem amor não há verdadeira fé

«Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (João 13, 35). Esta frase, que Jesus pronuncia na última noite da sua vida terrena, no Cenáculo, sugere uma conexão que se estabelece com a fé, além da que acontece pela graça, por parte da liberdade e da razão, entre outras.

Se «Deus é amor», segundo a bem conhecida definição joanina, é evidente que também o crente deve assumir o amor como a sua insígnia vital. Essencial e incisiva é a fórmula da Primeira Carta de João: «Este é o seu mandamento: que acreditemos no Nome de seu Filho, Jesus Cristo, e que nos amemos uns aos outros» (3, 23).

Também S. Paulo considera o amor como o fruto da fé e desfia-o na multiplicidade das suas iridescências: «É este o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (Gálatas 5, 22). Igualmente no tríptico das virtudes teologais é o ágape que constitui o vértice a que a fé e a esperança conduzem (cf. 1 Coríntios 13, 13).

Infelizmente, porém, é muitas vezes verdadeiro o paradoxo que formulava Jonathan Swift, o célebre autor das Viagens de Gulliver, que durante algum tempo foi pároco anglicano, na recolha dos seus Thoughts on Various Subjects(Pensamentos sobre vários temas): «Temos bastante religião para odiar o nosso próximo, mas não para amá-lo».

Explica-se assim também a degeneração de algumas formas religiosas que caem ou na sacralidade ritualística (e a condenação dos profetas contra esta hipocrisia, que na realidade se revela como incredulidade, é feroz), ou no fundamentalismo agressivo que semeia o ódio em vez do amor.

Nos seus Labirintos (1964), o escritor Jorge Luis Borges observava com realismo que não raro «é mais fácil morrer por uma religião do que vivê-la absolutamente» numa doação e numa fidelidade diárias.

A propósito desta religiosidade extrema – que na realidade é uma degeneração da fé autêntica, quando não é uma contrafação política, e que tem a sua trágica comprovação nos massacres contemporâneos pelos denominados «motivos religiosos» e nas guerras santas do passado –, merece ser citado um belo testemunho daquele grande místico e poeta muçulmano do século XIII que foi Gialal al-Din Rûmî, o fundador dos dervixes rodopiantes de Konya, na Turquia.

Na sua obra-prima poética e espiritual, o Mathnaví, um grandioso poema, afirmava: «Uma vez que um homem rigoroso vê um erro cometido por outro, fará sair um fogo directamente do inferno e fá-lo-á arder. Ele chama a este seu orgulho a defesa da fé, não se apercebendo de que é o espírito da arrogância que age nele. A verdadeira defesa da fé tem um sinal diferente: o seu fogo, com efeito, torna verdejante o mundo inteiro».

Alguns difusores da fé particularmente perturbados e encolerizados ardem de um fogo que confundem com a chama do espírito divino. Na realidade ele jorra directamente do inferno porque se nutre do ódio que é a negação da verdadeira fé. Na sua raiz, como dizia Rûmî, está a soberba e há até interesses ocultos. A verdadeira defesa da fé deve ser ardente e apaixonada, sim, mas não destrutiva e semeadora de morte; deve ser fecunda e gerar vida, amor, paz, diálogo.

Quando os discípulos João e Tiago expressam o desejo de ver invocado sobre os adversários um fogo do céu para que os consumisse, Jesus «voltando-se, repreendeu-os» (Lucas 9, 54-55), consciente de que a sua missão consistia antes de tudo no convite à conversão, ao perdão e ao amor.

Por isso é necessária à fé uma forte dose de mansidão, que é o outro rosto do amor, e de humildade na dádiva, como mostrou Jesus ao lavar os pés aos seus discípulos, sempre naquela noite terminal da sua existência terrena.

Marshall McLuhan, o famoso sociólogo canadiano teórico da contemporânea comunicação de massas, falecido em 1980 após uma fiel pertença cristã que se seguiu a uma conversão pessoal, declarava numa entrevista: «Na igreja entra-se (ou volta-se) em silêncio e de joelhos. Ao contrário, há a tentação de subir repentinamente ao púlpito».

A fé não se coaduna com a ênfase, a retórica, a publicidade excessiva, a espetacularização, mas com o severo, exigente e constante testemunho de caridade. E aqui entra em cena o outro aspeto a que ele acenava: além do radicalismo fundamentalista do crente agressivo e impiedoso, há também o fiel que recorre ao alibi do culto, da autossuficiência hipócrita, da autossalvação através do orgulho das próprias obras exibidas.

É o comportamento do fariseu da célebre parábola lucana (18, 10-14), é a ostentação de uma justiça exterior e de uma observância pública para se ser visto pelos homens (cf. Mateus 6, 5), é a ilusão de salvar-se com as próprias ações e com o mérito que delas advém, ignorando a graça divina e a livre doação de amor, atitude asperamente contestada por Paulo.

O escritor católico francês François Mauriac representou eficazmente este perfil degenerescente da fé no seu romance A fariseia (1941). A protagonista, Brigida Pian, passa entre as fragilidades, e também entre as riquezas espirituais dos outros, com um alto desprezo, convicta de ser o modelo da verdadeira fé, sem se dar conta que se está a precipitar num abismo negro privado de Deus e cheio apenas do próprio eu humano.

No fim, porém, ocorre também para ela a descoberta da necessidade de conversão. Escrevia Mauriac: «No anoitecer da sua vida, Brigida Pian tinha finalmente descoberto que não precisa de se parecer a um servo orgulhoso, preocupado em deslumbrar o patrão pagando o seu débito até ao último óbolo, e que não se espera do Pai nosso que seja o contabilista minucioso dos nossos méritos. Ela sabia agora que não importa merecer, mas sim amar».

É assim que se cumpre igualmente um outro paradoxo “encenado” pelo próprio Jesus na página sobre o juízo final, na qual emergem as surpreendentes figuras daqueles que, apesar de não serem classificáveis segundo os parâmetros clássicos como crentes, são-no na profundidade do seu coração e no testemunho das suas obras de amor (cf. Mateus 25, 31-45).

O centro da mensagem que diz respeito a estes “cristãos anónimos” é toda uma pergunta e uma resposta. A pergunta: «Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?». A resposta de Cristo: «Sempre que fizestes isto a um destes irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes».

 

Este texto foi extraído do livro “Chi oserà dire: io credo? Navigazioni nell’orizzonte della fede” (Quem ousará dizer: eu creio? Navegações no horizonte da fé), assinado pelo cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho da Cultura.

O volume de 109 páginas, lançado recentemente em Itália pelas edições S. Paulo, propõe um itinerário em etapas entre os múltiplos âmbitos em que fé e cultura se encontram e interpelam.

 

Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In L'Osservatore Romano
Trad.: rjm
© SNPC | 18.12.13

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