Leitura e contemplação
The Most Beautiful Bibles: Um importante testemunho da produção de Bíblias iluminadas na Europa medieval
A arte de iluminar manuscritos é, talvez, um dos maiores testemunhos da Arte da Idade Média que chegou aos dias de hoje, não só por se tratar de uma forma de expressão artística na qual eram empregues os melhores materiais disponíveis à época segundo as melhores técnicas de produção de tintas conhecidas nos meios de produção de manuscritos – os sriptoria; mas também porque ao longo dos tempos os manuscritos iluminados foram sendo alvo de um cuidado especial por quem os conservava (por quase sempre se tratarem das obras mais importantes existentes nas Bibliotecas dos Mosteiros, eram conservados com especial cuidado). Deste modo, grande parte dos códices que chegaram aos dias de hoje apresentam um excelente estado de conservação quer no que diz respeito às tintas, quer aos próprios pergaminhos e encadernações.
Tendo por grande vocação enaltecer visualmente a força das palavras escritas com extraordinárias ilustrações e/ou interpretações de textos, quase sempre de carácter religioso, pretendia-se com a iluminura medieval otimizar a mensagem contida na obra. Assim começa o prólogo de um dos mais extraordinários manuscritos medievais portugueses, produzido no Mosteiro de São Mamede do Lorvão, em 1183 – O Livro das Aves:
“Como tenho de escrever para um iletrado, não se admire o zeloso leitor se, para edificação daquele, eu disser coisas simples sobre assuntos subtis. (...) Com efeito, o que a Escritura indica aos mais sabedores indicará a pintura aos simples: tal como o sabedor se deleita com a subtileza da escrita, também o espírito dos simples é atraído pela simplicidade da pintura. Quanto a mim, empenho-me mais em agradar aos simples do que em falar aos mais doutos, como se deitasse líquido numa vasilha cheia.”(trad. de Maria Isabel Rebelo Gonçalves, Ob. cit., p.59) [1]
Para além de grandes interpretações literárias, os manuscritos medievais e, em especial, as iluminuras neles contidos, são o registo de relações interculturais, de vivências de comunidades, de rotas comerciais, de conhecimentos tecnológicos e da entrega a um “mais e melhor”. Pelo estudo dos materiais utilizados na sua produção é possível identificar o grau de importância do scriptorium onde foram produzidosos manuscritos, quer no que diz respeito aos recursos financeiros empregues na aquisição de materiais de elevada qualidade para a sua execução (alguns vindos do Oriente, como por exemplo o lápis lazúli, que vinha da região do Afeganistão [2] e que, à época, tinha um preço mais elevado que o ouro; ou o carmim de goma laca, que começou por ser usado como corante na Índia, por volta do século XVI a.C., tendo sido o corante vermelho mais utilizado no tingimento dos tapetes persas [3]), quer no que respeita à complexidade do desenho, à criatividade empregue pelo iluminador ou à imponência do próprio manuscrito. Para além de informações de índole financeira e do know-how artístico existente no scriptorium, a análise dos materiais permite ainda conhecer o grau de desenvolvimento tecnológico existente na época, já que muitos dos pigmentos utilizados na produção de iluminuras eram sintetizados, requerendo para tal um considerável conhecimento “científico” e tecnológico de tal modo consistente que, para alguns autores contemporâneos [4], o início da Ciência Moderna deu-se não com a Revolução Industrial do século XVIII, mas sim durante a Idade Média.
Por se tratarem de ilustrações nalguns casos com alguma liberdade de interpretação por parte do iluminador, as iluminuras apresentam muitas vezes informações importantes relativamente a hábitos e materiais do quotidiano, constituindo verdadeiros registos da sociedade da época. Um exemplo importante é a iluminura presente no manuscrito De officis ministrorum (meados séc. XII) [5], fólio 1v, que retrata de uma forma quase narrativa os vários passos seguidos na produção de manuscritos medievais iluminados, com um especial cuidado no registo dos utensílios usados desde a preparação do pergaminho, à execução da iluminura, sendo, pois, um dos mais importantes registos conhecidos desta atividade medieval. Muitas vezes, para além de toda a informação do quotidiano já referida, o próprio iluminador regista o que hoje denominamos por “testemunhos de relações interculturais”, com marcas evidentes no traço arquitetónico (onde, muitas vezes, é possível encontrar marcas importantes da arquitetura islâmica, sobretudo na iluminura Ibérica), ou mesmo nos traços fisionómicos das personagens presentes na iluminura. A obra «The Most Beautiful Bibles» [5] que aqui se apresenta vem dar um importante testemunho da beleza e sumptuosidade da produção de Bíblias na Europa medieval (com ressalva para a produção Portuguesa que, lamentavelmente, não foi considerada nesta publicação), com a elevada qualidade que caracteriza as publicações Taschen. Associada à excelente qualidade fotográfica dos vários fólios selecionados para serem apresentados, esta obra apresenta um conjunto interessante e rigoroso de comentários associados a cada uma das obras apresentadas da autoria de 15 especialistas em diferentes áreas científicas, como a História da Arte (em particular, História da Arte Medieval), a Arqueologia, a Paleografia ou a Sociologia, permitindo ao leitor uma contextualização da evolução da produção Bíblica medieval, quer do ponto de vista da História da Arte, quer no contexto teológico e da execução material. É-se, pois, convidado a percorrer a história da produção de Bíblias desde os seus primórdios, com as primeiras duas grandes linhas de tradução Europeia e Africana, passando pelas importantes traduções de São Jerónimo, no séc. IV, pelas interpretações Anglo-Saxónicas do séc. VII, pelo declínio de produção durante o império Otomano (séc. X-XII) e pelo subsequente interesse pela produção deste tipo de manuscritos durante o período Românico da Alta Idade Média, com a produção das Bíblias Românicas de grandes dimensões com extraordinários desenhos iluminados. Toras, Evangelhos Gregos, Bíblias Carolingeas, Comentários Bíblicos são aqui apresentados, ilustrados e explicados de uma forma muito interessante, sendo no final acompanhados por um glossário de termos técnicos de produção Bíblica, permitindo ao leitor uma melhor contextualização nesta área.
Algumas imagens da obra
Página do Evangelho Etiope, 1700
Comentários sobre Isaías do Pseudo Joaquim de Fiori. Itália, primeira metade do séc. XIV
Evangelho Etiope, 1700. Moisés o Profeta, recebe as tábuas da Lei
Evangelho Etiope, 1700, detalhe de S. João evangelista
S. Marcos evangelista com codex na mão.Evangelho grego, Constantinipla, c. 1000
Jonas expelido pela baleia, símbolo de ressurreição
Biblia ilustrada de Krumau, Boémia, c.1350
Sumário da História da Criação. Urach (Swabia), 1463
S. Jerónimo. Frontespício dos Comentários de S. jerónimo à Biblia. Florença, 1488
Biblia napolitana, 1360. Tempestade durante a viagem de S. Paulo, prisioneiro, para Roma
S. Lucas evangelista escreve o Evangelho, inspirado pelo Espírito Santo
Génesis de Viena, séc. VI, Região da Síria-Antioquia... Deus, representado por uma mão, faz Aliança com Noé e seus filhos
Pormenor do devocionário, Speculum humanae salvationis, provavelmente 1336
Página do Evangelho Arabe de S. Lucas. Talvez do Egipto, talvez do séc. XV-XVI
Génesis de Viena, séc. VI. Detalhe de Adão e Eva
Páginas da obra
[1] - Rebelo Gonçalves, Maria Isabel – O Livro das Aves, Lisboa: Edições Colibri, 1999;
[2] - GLICK, Thomas, LIVESEY, Steven J., WALLIS, Faith, (Ed) – Medieval Science, Technology, and Medicine – an encyclopedia. Nova Iorque:Routledge, 2005;
[3] - ROY, Ashok, (Ed) – Artist’s pigments, a handbook of their history and characteristics. Washington: National Gallery of Art, 1993. vol. 2;
[4] – GRANT, Edward - The Foundations of Modern Science in the Middle Ages: Their Religious, Institutional and Intellectual Contexts. Cambridge: Cambridge University Press, 1996;
[5] - GASTGEBER, Christian, FUSSEL, Stephan, FINGERNAGEL, Andreas (Ed) - The Most Beautiful Bibles. TASCHEN America Llc; 25th edition, 2008.
Catarina Pereira Miguel
Investigadora de manuscritos medievais
jnm
12.05.09
The Most Beautiful Bibles
(ed. em inglês)
Autores
Stephan Füssel,
Christian Gastgeber
Editora
Taschen
Páginas
320
Preço
€ 20,00 (aprox.)
ISBN
978-3-8365-0300-6
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