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Leitura: "Um diário de preces"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: "Um diário de preces"

«Escritora católica no Sul protestante [dos EUA], a ficcionista norte-americana Flannery O'Connor estava numa situação privilegiada para desvendar aquela espécie de "cristianismo enlouquecido" que a rodeava.

Do ponto de vista demográfico e sociológico, a "Bible belt" dos estados sulistas ostentava uma fé omnipresente e às vezes estridente, quando não fundamentalista. Em termos doutrinais, as noções católicas e evangélicas tinham um tronco comum mas divergiam em noções essenciais, tanto básicas como sofisticadas.

E, além do mais, O'Connor não era apenas uma católica, ou uma católica praticante: tinha uma sólida formação teórica, de Tomás de Aquino e Romano Guardini, ou seja, o seu catolicismo não resultava apenas da educação ou da convicção mas de um incessante estudo, aliás notório nas dezenas de recensões que escreveu sobre livros de teologia.»

Este é o retrato de Flannery O'Connor (1925-1964) que o poeta Pedro Mexia apresenta ao abrir o prefácio de "Um diário de preces", publicado pela editora Relógio D'Água.

«Quando tinha 20 anos e estudava na Universidade de Iowa, onde frequentava o prestigiado Iowa Writer's Workshop, O'Connor manteve um diário (janeiro de 1946-setembro de 1947), umas dezenas de folhas manuscritas num austero caderno pautado. O texto integral fac-similado [que este volume inclui] só viu a luz em 2013, exumado dos papéis da escritora. Trata-se de um monólogo em diálogo, um diário em forma de oração, oração em forma de diálogo, forma híbrida e em interrogação constante», explica o crítico literário.

O cronista prossegue: «O'Connor sentia que as orações tradicionais não lhe serviam, talvez porque não eram diálogos. "Quem me saiba ensinar a rezar", escreve ela, enquanto se dirige a Deus com exigências temperamentais: "make me a mystic, immediately" ["faz de mim uma mística, imediatamente"].

É certo que não há experiências sobrenaturais em "Um diário de preces", mas nota-se a conhecida impaciência dos místicos: a diarista queixa-se de que não sabe amar e de que não conhece a vontade de Deus: não aceita uma crença de fundo sentimental; não quer uma divindade à sua imagem e semelhança; diz que às vezes mantém a fé apenas por preguiça; declara a sua própria mediocridade e indignidade; vacila entre a desesperança e a presunção; acusa-se de pensamentos eróticos e de ser tão "estúpida" como as pessoas que ridiculariza; pede que Deus a ajude a ser uma escritora a sério, e além do mais "santa de um modo inteligente"; rasga páginas do diário, que aliás termina com um zangado "nada mais resta dizer acerca de mim". É quase o temperamente de uma Teresa de Ávila».

«As orações de Flannery O'Connor estão, como ela explica, entre a metafísica e a terapêutica. Exprimem adoração, contrição, ação de graças, súplica, mas também testam verdades que hão de alimentar a ficção ainda por escrever: a ideia de que o inferno é um conceito mais compreensível do que o céu, de que a Graça é sem porquê, ou de que o pecado é bom porque orienta para a salvação: "Concede-me a graça de ver a aridez e a indigência dos lugares onde Tu não és adorado, mas profanado"», aponta Pedro Mexia.

Autora dos romances "Sangue sábio" e "O céu é dos violentos", Flannery O'Connor viveu a maior parte da vida numa quinta em Milledgeville, rodeada dos seus pavões. Morreu aos 39 anos, após sucessivos ataques de lúpus.

 

[Meu bom Deus]
Flannery O'Connor
In ""Um diário de preces""

Meu bom Deus, para não perder o rumo, vou refletir acerca da Fé, da Esperança e da Caridade. Comecemos pela Fé. Das três, é a que me causa mais sofrimento mental. Em todas as fases deste processo educativo, dizem-nos que é uma coisa ridícula, e os argumentos soam tão credíveis que é difícil não lhes cedermos. Os argumentos talvez não soassem tão credíveis a alguém com uma mente mais profícua; mas os meus mecanismos mentais são o que são, e estou sempre no limiar da anuência - é quase uma anuência subconsciente. Pois bem, como hei de eu conservar a minha fé sem cobardia quando estas condições me influenciam assim? Não consigo decifrar as profundezas particulares da minha pessoa que fazem luz sobre isto. Há qualquer coisa no mais recôndito de mim - é mais fundo do que a anuência subconsciente - que nutre um determinado sentimento a este respeito. Talvez seja isso o que me refreia. Meu bom Deus, por favor, faz que seja isso em vez da tal cobardia que os psicólogos examinariam com tanta avidez e explicariam com tanto desembaraço. E, por favor, não permitas que seja aquilo a que, tão alegremente, eles chamam compartimentos estanques. Oh, Senhor, peço-Te, concede às pessoas como eu, que não têm a inteligência necessária para lidar com isto, peço-Te, concede-nos uma qualquer arma, não para nos defendermos deles, mas para nos defendermos de nós próprios depois de eles nos terem examinado de fio a pavio. Meu bom Deus, não quero descobrir que inventei a minha fé para satisfazer a minha fraqueza. Não quero ter criado Deus à minha própria imagem, como tanto se diz por aí. Por favor, concede-me a graça necessária, oh, Senhor, e faz que não seja tão difícil de alcançar como Kafka dá a entender.

 

14/4/47

Tenho de escrever que irei tornar-me artista. Não no sentido da fancaria estética, mas no sentido do engenho estético: caso contrário, sentirei a minha solidão constantemente  - como hoje. A palavra engenho cobre o ângulo do trabalho e a palavra estética cobre o ângulo da verdade. Ângulo. Vai ser uma vida inteira de luta sem atingir a consumação. Quando qualquer coisa está concluída, não a podemos possuir. Nada podemos possuir, exceto a luta. Consumimos todas as nossas vidas em possuir a luta, mas somente quando acarinhamos essa luta e a orientamos para uma consumação final exterior a esta vida é que ela tem algum valor. Quero ser a melhor artista qu eme seja possível, sob a batuta de Deus.

Não quero sentir-me solitária toda a vida, mas as pessoas, ao recordarem-nos de Deus, apenas acentuam a nossa solidão. Meu bom Deus, por favor, ajuda-me a tornar-me uma artista, por favor, faz que isso me aproxime de Ti.

 

Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 22.12.2014

 

Título: Um diário de preces
Autora: Flannery O'Connor
Editora: Relógio D'Água
Páginas: 112
Preço: 10,80 €
ISBN: 978-989-641-433-7

 

 
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As orações de Flannery O'Connor estão, como ela explica, entre a metafísica e a terapêutica. Exprimem adoração, contrição, ação de graças, súplica, mas também testam verdades que hão de alimentar a ficção ainda por escrever
Meu bom Deus, não quero descobrir que inventei a minha fé para satisfazer a minha fraqueza. Não quero ter criado Deus à minha própria imagem, como tanto se diz por aí
Tenho de escrever que irei tornar-me artista. Não no sentido da fancaria estética, mas no sentido do engenho estético: caso contrário, sentirei a minha solidão constantemente - como hoje
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