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António Barreto

Os portugueses tratam mal a leitura

Em entrevista à edição de março da revista «Ler», António Barreto reflete sobre as implicações positivas e negativas da sociedade da imagem e dos novos meios de acesso aos livros. Excertos da conversa entre o investigador e o jornalista Carlos Vaz Marques.

A sociedade da imagem, em que vivemos, está a tornar-se de alguma forma inimiga da leitura?
Está. E eu detesto o lugar-comum «Uma fotografia vale mil palavras». Detesto isso. Não vale. A junção entre fotografia e imagem é ótima. A fotografia, por si própria, vale muitíssimo, não tenho dúvida nenhuma disso, mas a ideia de que vale mil palavras é detestável. Porque a fotografia também é engano, também é mentira, também é manipulação, também é intoxicação do espírito. Uma das frases mais detestáveis da História da Humanidade deve ser um pensamento do primeiro diretor da Life, que disse: “O meu sonho é fazer uma revista semanal sem uma única palavra, só com fotografias, porque assim eu descreverei o mundo.”

Havia nisso uma intenção programática.
Uma intenção, pois. Tenho aqui fotografias à sua volta que não têm palavras. A fotografia basta-se a si própria sem palavras. Depois, a palavra explica o resto. Aquela que está ali encostada, por acaso, mostra o esforço de andar com um cesto de uvas de 70 quilos á cabeça. Se eu não lhe explicar que o cesto tem 70 quilos já está a perder qualquer coisa. Ela vale por si mas não pode substituir a palavra.

Considera essa força da imagem uma ameaça ao livro?
Considero. Não sou capaz de lhe dizer: o livro vai desaparecer.

Até já disse o contrário. Numa conferência para editores, em 2001, dizia textualmente: “O livro é eterno.”
É verdade. Creio que é eterno mas creio que o consumo do que lá está dentro vai ser cada vez maior por outros meios. O livro como objeto, tal como o conhecemos hoje, vai ter tiragens menores, vai ter uma menor propagação. Dizem que há agora uns ecrãzinhos onde se põem lá dentro 50 livros.

Ainda não experimentou essas novas tecnologias de leitura?
Ainda não. Já vi fotografias. O que está em maior perigo imediato são os jornais e as revistas. Haverá sempre qualquer coisa que se pareça mas creio que nós vamos assistir, nos próximos 10 anos, à morte de um grande número de jornais no mundo inteiro.

A ameaça é a Internet?
É. O online substitui-os. Podemos sempre argumentar que o online pode dar coisas que os jornais não dão, nalguns casos pode ser melhor do que os jornais são. Muitos juízos podem ser feitos. Eu estou à espera da prova, não tenho uma visão definitiva sobre isso. Agora, o modo de leitura, a pausa, o sossego, a ponderação, a moderação, a reflexão, a nota, a posição pessoal, geográfica, física com que você lê jornais e lê livros, tudo isso está em vias de extinção, a benefício dessas novas formas que são mais rápidas, que seguramente proporcionam menos reflexão...

Porque é que proporcionam menos reflexão?
Você precisa de tempo. O que você lia no comboio, o que lia num sítio fora de casa, sem o computador na mão, o que lia voltando para a frente e para trás, escrevendo notinhas, escrevendo no canto dos livros, escrevendo num caderninho que tem ao lado, não creio que seja possível fazê-lo com um palm deste tamanho [contorna com um dedo a palma da mão esquerda) ou com um laptop, onde tudo está feito para ter uma informação rápida. Com um telemóvel você, hoje, já consegue ter inúmera informação: tudo sintético, tudo compacto, tudo resumido. Os sentimentos são resumidos, são condensados. As palavras, as frases, o discurso, a narrativa - é tudo cada vez mais concentrado. Porque já se está a viver de uma maneira diferente, a correr.

Posso concluir que já tem, por antecipação, uma certa nostalgia em relação ao mundo do livro tradicional?
Tenho, mas há uma coisa que lhe vou dizer: não é por causa do fetichismo do livro. Quase toda a gente diz isso: «Ah, o cheiro, a cola, a capa, o papel, a tinta de impressão.» Tudo isso é muito engraçado mas não é isso que me faz correr. A nostalgia é por causa do tempo de meditação, do tempo de leitura, do tempo de saborear, do tempo de ponderar o que se está a ler, de parar, voltar, recomeçar. Ler implica ter uma vida para a leitura; que na sua vida tem de haver espaço para a leitura. Quando você já não tem espaço para a leitura, não é o cheiro que vai substituir o que quer que seja, não é o objeto físico que conta.

Apesar desse diagnóstico, provavelmente nunca se editaram tantos livros como atualmente. Não há aqui um paradoxo?
Eu não tenho a certeza dessas estatísticas. Em Portugal, parece que nunca se editaram tantos títulos como agora. Também parece que as tiragens de cada livro são agora menores do que já foram Parece, ainda, que a maior parte dos livros não são lidos. Há muito livro de estante, de moda Ao que parece também estão a incluir nas estatísticas do livro muitas coisas que não são livros. (...) Eu não queria dizer a frase calista que é: «Os portugueses tratam mal a leitura». É verdade que tratam, mas não vamos fazer esse choradinho habitual.

Mas considera que essa frase é verdadeira?
Sim. Por uma razão histórica muito simples: os portugueses aprenderam a ler muito tarde.

Isso tem a ver com a sua tese sobre a importância da massificação da televisão, em Portugal, ter acontecido antes de se ter generalizado a alfabetização.
Pode ser que haja quem não dê importância a esse facto mas ele é, para mim, radical. Eu não tenho nenhuma crença mística nas nações, mas elas existem. Os povos existem. Há uma memória coletiva Quando, na nação portuguesa, metade ou dois terços das pessoas souberam ler, isso aconteceu com mais de um século de atraso, pelo menos, em relação a países como a Inglaterra, a Dinamarca, a Suécia Isso está estudado. As tiragens dos jornais em Portugal são absolutamente ridículas. Imprimem-se em Portugal tantos jornais diariamente como num bairro de Nova Iorque, ou qualquer coisa assim. As comparações são terríveis. De facto, o jornal nunca foi um hábito. As fontes de notícias e de entretenimento que são a rádio e a televisão vieram muito antes. E as pessoas, de facto, preferem o ecrã. O ecrã tem a palavra, tem música, tem imagem, tem afetos e sentimentos mais evidentes (porque os realizadores sabem como fazer as coisas) e você ali tem uma massa polissémica de informação e de significados que não tem necessariamente no livro. Além de que o livro dá trabalho.

 

António Barreto
Entrevista de Carlos Vaz Marques
In Ler, março 2009
26.03.09

António Barreto






























































































 

 

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