Vemos, ouvimos e lemos
Leitura, meditação, oração, acção

Entender a Bíblia e viver a Palavra com o «Lectio Divina» (1/2)

A «lectio divina» é uma forma de ler a Bíblia que a tradição plurissecular da Igreja consagrou como aquela que mais explora as potencialidades do texto sagrado e mais luz projecta sobre a vida. A expressão latina, usada pelos monges medievais que escreviam e falavam em latim, tem uma carga histórica e um conteúdo espiritual precisos: significa “leitura divina” e é um exercício de leitura e meditação crente e orante duma passagem da Sagrada Escritura, acolhida na fé como Palavra de Deus, sob a acção do seu Espírito. É mais do que a simples ‘leitura espiritual’, que sucedeu à «lectio divina» e visava alimentar o espírito com leituras de autores da espiritualidade cristã. A «lectio divina» é leitura da Bíblia, que para a fé é palavra inspirada pelo Espírito divino.

Circunstâncias históricas adversas, desde o período da Reforma protestante e da Contra-reforma católica, puseram entre parêntesis essa prática. Mas o Concílio Vaticano II fechou definitivamente o parêntesis e inaugurou os tempos novos do regresso à «lectio divina», quando apresentou a Palavra de Deus bíblica, juntamente com a Eucaristia, como a primeira fonte de alimentação da vida espiritual cristã. Há muitos indicadores do constante aumento de interessados pela leitura da Bíblia no mundo cristão – felizmente para este. Já é hora de os cristãos conhecerem os seus textos sagrados fundadores, assentando em bases sólidas as variadas formas de vivência cristã, de oração e de acção. Eles perceberam a afirmação do Vaticano II: “É necessário que a religião cristã se nutra e seja regulada pela Sagrada Escritura...; ela é suporte e vigor da Igreja..., fundamento da fé, alimento da alma, fonte pura e perene da vida espiritual” (Dei Verbum, 21).

O método da «lectio divina» está a afirmar-se de modo consistente entre o clero e vai ganhando cada vez mais terreno entre os leigos, até por recomendação do próprio magistério eclesial aos vários grupos e membros do povo de Deus: o Papa João Paulo II pediu aos sacerdotes, religiosos e leigos que promovessem escolas de oração, de espiritualidade e de leitura orante da Escritura, individual e comunitária. (...) Elogios abundantes e uma recepção muito favorável a esta forma de ler a Bíblia têm-se sucedido entre os intérpretes da Bíblia. A biblista e religiosa Mercedária, Mercedes Navarro, ao expor as “Tendências actuais da exegese bíblica” e depois de apresentar os diversos métodos e abordagens para a sua prática, remata assim:

“A «lectio divina», que integra fases e perspectivas do texto bíblico face á vida, constitui a proposta mais interessante que hoje a Igreja oferece a cada cristão. É por este caminho que se vão orientando cada vez mais, tanto a exegese como as necessidades do povo diante da Palavra viva do Deus vivo”.

E têm-se multiplicado as iniciativas de propostas de «lectio divina» de diversos textos bíblicos.

Esta metodologia de leitura da Bíblia não parece difícil. O essencial é mesmo praticá-la: como tudo, aprende-se fazendo. O texto bíblico quer ser afagado à medida que se vai sorvendo o mel da sua doçura nas sucessivas fases de leitura, que seguidamente se apresentam.

1.
Ler bem [«lectio»], entendendo o que o texto bíblico queria dizer em si, é indispensável. O texto é um tecido de palavras, expressões, significados estruturados e relacionados, afirmações, pressupostos mentais, que, para serem entendidos, precisam de ser descodificados em todas as suas implicações. Perceber o tecido supõe identificar os fios ou ligações das palavras e das frases e descobrir como se interligam em vista da produção do sentido. Para isso, é conveniente situar o texto bíblico no contexto histórico, cultural, literário e religioso em que nasceu (já oferecido pelas notas de uma boa edição da Bíblia). Ouvir a mensagem de Deus e sentir a presença do seu Espírito também passa pela compreensão do sentido originário e do conteúdo formal das palavras da Palavra, com atenção aos pormenores do texto.

2.
Meditar em silêncio com o texto [«Meditatio»], procurando o que ele quer dizer para mim, é fazer falar os seus silêncios; é actualizá-lo e assumir que ele tem a ver com a minha pessoa; é deixar-me agarrar por ele, vendo-o como vocacionado para resolver os meus problemas; é apropriar-me do texto até que ele, sem deixar de ser ele próprio, se torne espelho do meu ser e reflicta o que deve ser a minha vida. A meditação familiariza-me com o texto, até eu perceber que, através dessa palavra, Deus se quer comunicar a mim. Pela leitura, o leitor aplica-se todo ao texto; pela meditação, aplica a si todo o conteúdo do texto. A leitura assemelha-se à escavação arqueológica num monumento arquitectónico em busca da sua arte; a meditação aprofunda as implicações e consequências que essa arte tem na formação dos meus sentimentos. A leitura procura o antigo sentido do texto; a meditação aproxima esse sentido à minha vida, de modo a iluminar os meus passos hoje. A meditação é um acto da compreensão interior, a procura de mais verdade e a descoberta dos tesouros ocultos no texto.

3.
A meditação em comunidade traz à colação [«collatio»] as perspectivas complementares de cada membro do grupo que medita: o que o texto nos quer dizer a nós. Partilhar as experiências pessoais, vividas em contacto com a Escritura, compará-las com as de outros “ouvintes da Palavra”, é estimulante, enriquecedor. Os seixos no leito do rio, batendo uns nos outros, vão-se polindo, a tal ponto que, ao chegarem ao mar, já levam belas formas e brilham. As palavras da Bíblia, confrontadas com a reflexão de cada membro do grupo, vão descobrindo os mistérios de Deus e do seu Cristo e são portadores de luz para a vida. A procura em comum do sentido de um texto bíblico põe em destaque o sentido eclesial da Sagrada Escritura e fortalece no grupo orante o sentido comum da fé. Os “encontros bíblicos” ou grupos de reflexão bíblica já põem em prática este ponto da «lectio divina».

4.
Se somos pessoas de Deus, da meditação, individual ou comunitária, brota espontânea a oração [«oratio»], o que o texto me faz dizer a Deus. Para que a oração tenha conteúdo e seja realista e não ingénua ou especulativa, a «lectio divina» proporciona o cruzamento da leitura com a realidade na acção: a oração cristã nasce da experiência dos problemas reais da vida e tende a tornar-se uma atitude permanente de vida: longe de se basear em ilusões, devaneios ou sentimentalismo inconscientes, assenta em modelos e conteúdos da oração bíblica.

5.
E se o texto foi lido com a inteligência e o coração abertos, afina e aprofunda a visão do mundo actual, das pessoas, dos factos e das coisas, ajudando a vê-las à luz de Deus e a ver Deus nelas: é a contemplação [«contemplatio»], a atitude que nos faz olhar para as coisas e para a vida a partir de Deus. Fixa em Deus o olhar da fé e o coração e vê o mundo com uma luz nova: à luz da Palavra lida e meditada, reflexo do esplendor de Deus. Contemplativo é aquele que, na perspectiva de Deus, é capaz de perceber a Sua presença no cosmo e na história humana. Por isso, é optimista: sabe captar, mesmo nos acontecimentos dramáticos, uma chispa do «Lógos», a Palavra, que guia toda a história para a plenitude em Jesus Cristo.

6.
A contemplação, por sua vez, leva à acção [«actio»], a renovar a Igreja e a transformar o mundo numa sociedade mais consentânea com a dignidade do ser humano. O fim primeiro da Escritura não foi dar cultura (também a dá): tem a ver com a vida das muitas pessoas que a escreveram e daquelas a quem é dirigida. Porque para o crente a Palavra de Deus é “Palavra de vida”, objecto da pregação evangélica, seja enquanto “Palavra de salvação” (Act 13,26), seja enquanto Jesus Cristo em pessoa (1 Jo 1,1), ela é fonte de acção: dá mais vida quando se traduz em realidade. A vida, por sua vez, oferece um sempre renovado ponto de vista para a compreensão da Palavra de Deus.

Portanto, a «lectio divina» é passiva, na medida em que deixa ressoar no leitor a voz de Deus que lhe fala: deixa que a Palavra o transforme. Mas é outrossim eminentemente activa, questiona o leitor: como é que a Palavra de Deus, que definitivamente é Jesus Cristo, espiritualmente presente na Escritura, fecunda o meu comportamento e o meu modo de pensar? Pela «lectio divina», o leitor torna-se “servidor da Palavra” e testemunha da sua força.

A descoberta dos tesouros da Palavra de Deus e a apropriação deles na «lectio divina» acontece em dois movimentos: primeiro, do ‘hoje’ para o ‘ontem’ e, segundo, do ‘ontem’ para o ‘hoje’. O primeiro procura investigar e compreender o sentido teológico do texto para os seus leitores imediatos, através da percepção da problemática humana, do contexto histórico, cultural, literário e religioso em que foi escrito o texto (é principalmente tarefa da leitura). O movimento do ‘ontem’ para o ‘hoje’ intenta descobrir a mensagem espiritual que Deus nos quer comunicar hoje por meio do texto de ontem (acontece na meditação, oração, contemplação e acção). Esses dois movimentos só são possíveis quando a leitura arranca de preocupações básicas: atender á realidade humana de hoje, com os seus problemas e desafios, que questionam a fé e queremos iluminar com ela; pôr em primeiro plano a fé da comunidade, que nos põe em comunhão com o mesmo Deus que no passado concluiu uma aliança perpétua com o seu povo e a ele se revelou plenamente em Jesus Cristo; e ainda, não manipular o texto bíblico, nem reduzir o seu sentido.

Este método de aproximação à Bíblia é de grande ajuda para a conhecer. Mas a sua originalidade está em não se contentar com o estudo e a interpretação da mensagem do texto; puxa essa mensagem para a vida do leitor, leva-o a orar com o texto, a orientar a sua vida e a fecundar a sua acção com ele. A meditação implica a assimilação da Palavra lida e entendida, a tal ponto que se converte em fonte de oração, de contemplação e de acção. Estes passos da «lectio divina» estão intrinsecamente engrenados uns aos outros, não podendo separar-se: “A leitura sem a meditação é árida, a meditação sem a leitura está sujeita a errar, a oração sem a meditação é tíbia, a meditação sem a oração é infrutuosa. A oração feita com fervor está em condições de conseguir a contemplação, enquanto é raro e miraculoso chegar à contemplação sem a oração” (H. C. J. Matos, Leitura orante da Bíblia: fonte de renovação espiritual).

Armindo dos Santos Vaz

in Entender a Bíblia - Viver a Palavra

09.10.2008

 

 

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Capa


Entender a Bíblia
Viver a Palavra
Com o método
da «lectio divina»

Autor
Armindo dos Santos Vaz

Editora
Edições Carmelo
Telf.: 255 53 13 64
Correio electrónico

Páginas
134

Ano
2004

ISBN
972-640-078-3





























































































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