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Portugal

Férias são para descansar, mas há quem as use para servir os outros

A Marisa Sapina recorda-se de quando esteve na Guiné-Bissau há seis anos e uma criança lhe pediu uma colher - não tinha nenhuma. "Quem entre nós não tem dezenas de colheres? Mas dar uma colher naquela situação era estragar o trabalho que estava ali a fazer. Disse ao miúdo que iria tentar arranjar. Falei com as irmãs da missão e só uns dias depois de eu vir embora elas deram a colher."

Foi a primeira experiência de Marisa, professora de línguas, como leiga missionária, apoiando no terreno o trabalho das missões católicas em países mais pobres - o número dos portugueses que o fazem disparou este ano e as férias são uma altura privilegiada para colaborarem em missões nos países em desenvolvimento.

"Quando vêem os estrangeiros, vêm pedir. Mas isso não é educar para o desenvolvimento." Por isso, não dar uma colher, uma t-shirt ou outra coisa, naquele momento, pode ajudar a mudar a vida daquelas populações mais pobres. "Para tentarem lutar pelas coisas."

Marisa conta situações em que os adultos da aldeia podem ajudar a construir um pequeno equipamento para beneficiar a comunidade. Em troca, recebem alguma coisa para si próprios.

"O trabalho principal é a presença, mostrar que estamos ao mesmo nível que as outras pessoas", acrescenta Marisa Sapina. "Quando estive esse mês na Guiné, penso que ajudei as pessoas podendo ouvi-las, brincar com as crianças, dar aulas de português e ajudar na enfermaria."

Agora, de novo para apoiar uma missão dos Missionários da Consolata, Marisa partirá no dia 10 com oito pessoas para Vilankulo (Inhambane), em Moçambique. Acompanhará um grupo de cinco alunos e uma professora do Colégio de Santa Doroteia (Lisboa), que venceu um concurso instituído por aquela congregação religiosa sobre os Objectivos do Milénio proclamados pelas Nações Unidas.

 

Experiências para a vida

"Creio que será a experiência da minha vida", diz Maria Teresa Vitória, 43 anos, professora de Física e Química no colégio e que irá também a Moçambique. Foi na disciplina de Área de Projecto que o grupo vencedor fez um filme sobre a igualdade entre os sexos - o colégio teve cinco grupos, todos finalistas do concurso e, desses, dois ganharam prémios.

"Pensámos que aquele tema poderia resumir tudo: se as mães estiverem informadas podemos reduzir a mortalidade infantil, reduzir a fome...", diz David Gurita, 18 anos, aluno do 12.º ano e um dos que irá para Moçambique. "Iremos trabalhar com crianças e mostrar-lhes um desenho animado que fizemos e onde se mostra que o pai é igual à mãe e que pode cooperar."

Mesmo não sendo crente - o único entre os colegas -, David diz que já estão "habituados a ouvir falar do amor ao próximo e a fazer campanhas de solidariedade". "Os alunos cresceram neste ambiente e quiseram fazer algo que os desafiasse", diz a professora Teresa Vitória. "Pessoalmente, eu nunca pensaria em ir fazer uma experiência como esta. Nunca vivi assim, sem luz, sem água, num sítio de grande pobreza. Penso que virei mudada."

"Iremos ajudar em tudo o que seja preciso: escola, explicações", diz Marisa, que integra os Leigos Missionários da Consolata, estrutura criada pela congregação religiosa para este tipo de experiência. "Tem a ver com o ideal de Jesus, de estar próximo de quem precisa, seja aqui ou fora do país, é um ideal para a vida toda."

Luísa Matos, 28 anos, educadora de infância, e Patrícia Pereira, 23, publicitária, partiram já ontem para um mês na ilha de Santiago (Cabo Verde), integradas num grupo de 14 elementos da associação Sol Sem Fronteiras. Este grupo, ligado aos Missionários do Espírito Santo, tem previsto um conjunto de acções, durante um mês, na paróquia de Nossa Senhora da Luz.

 

Educação, saúde, cultura

"Vamos falar de direitos humanos, educação para a saúde, direitos da criança, poupança de água, doenças sexualmente transmissíveis, de como se apanha a sida e como se pode prevenir", diz Patrícia. Aulas de informática para adultos estão também previstas, com oito computadores que ficarão depois para uso nos serviços da paróquia e instituições sociais. Patrícia gastará, como vários do grupo, as suas férias nesta actividade. "É a forma de dar, de ser solidária. Quero ir e servir, ver o que posso fazer para ser útil às pessoas."

Luísa ficou com "o bichinho" com o que foi ouvindo a outros companheiros. Pessoalmente, irá sobretudo dinamizar a ocupação de tempos livres de crianças e animar oficinas de pedagogia e liderança e de expressão corporal e dramática. A experiência de ser solidária poderia ser feita com outra organização qualquer, admite Luísa. Mas "tendo fé vivemos as coisas de outra forma, mais a nível da espiritualidade".

Quem já fez experiências como estas, percebe a vontade de ir - e de voltar. Lina Rosa, médica aposentada de Valadares (Gaia), ficou "muito chocada" quando chegou em Abril a Manalana (arredores do Maputo), em Moçambique, onde ficou por quase três meses.

"A pobreza, os jovens sem projectos de vida" foi o que mais a transtornou. Mas tem uma certeza: "Para o ano volto". Na aldeia, Lina Rosa e a restante equipa que trabalha com os missionários montou uma espécie de centro de saúde. "Não fomos com pretensão de ensinar, só ajudar. E ainda aprendemos: uma rapariga de 29 anos, que perdeu a visão em 2005, virou-se para nós a dizer: 'Graças a Deus, ele deu-me força para, apesar de cega, ainda conseguir tomar conta dos meus filhos.'"

Nuno Morais, 25 anos, de Ermesinde, que deixa Portugal hoje, é o único dos 11 entrevistados pelo «Público» que não irá trabalhar num país lusófono - destino maioritário para os voluntários. Estará três semanas numa aldeia a uns 60 quilómetros de Dodoma, a capital da Tanzânia, para ajudar a construir três infantários.

O grupo, de 14 pessoas, faz parte também dos Leigos Missionários da Consolata. Depois de três anos de formação - etapa obrigatória em qualquer um destes grupos -, Nuno decidiu partir agora por estar desempregado (é licenciado em Biologia Marinha). "Mas se não fosse agora, iria mais tarde." "Ser cristão impele-me a fazer algo mais, exige uma maior entrega ao que fazemos e uma maior disponibilidade", afirma.

"É impossível ficar indiferente", diz a médica Lina Rosa sobre a sua experiência em Moçambique.

 

2009, o ano de maior crescimento

Os leigos voluntários missionários são uma tendência em crescendo na Igreja Católica, em Portugal. De 2008 para 2009, passaram de 283 para 381 - este ano, há mais uma centena de pessoas (a maior parte jovens e jovens adultos) que, durante um tempo, partem para outros países.

Nas últimas duas décadas, o crescimento foi lento. Segundo os dados da Fundação Evangelização e Culturas, houve em 20 anos um total de 3447 pessoas a fazer a experiência. A maior parte, fazendo-o por curtos períodos (nas férias escolares, por exemplo), outros dedicando ao projecto um período mais largo de um ano, por vezes dois.
Daquele universo, mais de metade (2070) partiram nos últimos sete anos. De 2003 a 2008, o número de partidas anuais oscilara entre as 261 (em 2006) e as 301 (em 2004). Este ano de 2009 conheceu o maior aumento - a que correspondeu também o crescimento do número de entidades envolvidas, que passou de 37, no ano passado, para 44, este ano. No que diz respeito às pessoas que partem por períodos entre um a dois anos, 2004 foi o ano que registou maior número: 99. Este ano são 60.

 

Há quem faça voluntariado pelo menos durante um ano

Se a maior parte dos voluntários leigos parte por curtos períodos - algumas semanas, um mês -, outros tornam-se missionários pelo menos por um ano. É o caso dos Leigos para o Desenvolvimento (LD), organização ligada aos jesuítas. Por causa do tempo que é pedido, também o processo de formação das pessoas é mais dilatado.

Cristina Seixas, 36 anos, educadora de infância, há muito que se confrontava com a vontade de partir em missão. "A dificuldade era discernir se era um capricho ou a vontade de Deus." No seu caso, a decisão ditou Timor como destino. "Implica um grande desprendimento, deixar a casa, o conforto, a família, os amigos..."

Entre as cerca de 50 organizações que promovem voluntariado missionário - ligadas, na maior parte, a congregações religiosas, paróquias, dioceses, mas também de grupos universitários e associações de solidariedade -, os LD são uma das que investe em tempos de voluntariado mais longos. Em Timor, Cristina irá trabalhar na educação pré-escolar, numa ludoteca e na formação de educadores. E ficará a viver numa pequena comunidade. "Será uma experiência enriquecedora."

Miguel Leitão, 25 anos, do Caramulo, está a terminar o curso de Design em Lisboa e acompanhará Cristina Seixas em Timor - ambos estarão a partir de amanhã em formação específica sobre o projecto, depois de um ano de preparação. Miguel apoiará projectos de introdução da língua portuguesa, animação infantil e juvenil e a ludoteca. O design pode ser uma ferramenta útil. "Dá para desenhar, mexer, experimentar, aplicar projectos que desenvolvi na universidade. Acima de tudo, permite ajudar a que eles próprios possam fazer os seus brinquedos."

A fé teve um peso importante na decisão. "Uma missão assim é sempre difícil, mas Jesus Cristo é uma referência para mim, como estilo de vida. E, se não fosse com os LD, não estaria onde estou: só me consigo encaixar numa organização assim, que não cria novas dependências nas pessoas que apoia."

Sónia Monteiro, 25 anos, de Guimarães, deixará para depois do regresso de Benguela (Angola) o estágio de admissão à Ordem dos Advogados. Com ela, irá Sara Reis, arquitecta, 24 anos, de Lisboa, que se despediu de um gabinete de arquitectura onde tinha começado a trabalhar. "Os projectos dos LD estão bem organizados e têm continuidade", diz Sara. E Sónia acrescenta: "É um tempo para os outros, num sítio e num lugar que não escolhi, como disponibilidade para estar onde é mais necessário".

"É a primeira decisão da minha vida que tomo com a consciência de que Deus esteve comigo", assegura Sónia. "A felicidade está no serviço aos outros. Se eu dissociasse Deus, para mim isto não faria sentido."

 

António Marujo
In Público, 02.08.2009
02.08.09

Voluntária em África




















































































































































































 

 

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