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A arte de entrelaçar mundos diversos: Cardeal Tolentino prefacia edição crítica de livro de João Paulo I

O prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação assina o prefácio à edição crítica de “Ilustrissimi” (Ilustríssimos), volume que o futuro papa João Paulo I publicou em 1976 com um conjunto de escritos dirigidos a santos e a personagens da História, da literatura e da mitologia.

Não deve surpreender que seja reconhecido a “Ilustrissimi” a categoria de clássico, a forma talvez mais adequada para nos referirmos a este livro – mesmo tendo em conta que o destino inicial dos textos nessa recolha era, em alguns casos, as páginas de um diário, “Il Gazzettino”, depois de uma revista, o “Messaggero di sant’Antonio”, e que quando Albino Luciano começou, em maio de 1971, a colaboração com este mensário de Pádua não podia deverto prever o papel crucial que este conjunto de escritos haveria de ter não só para o seu percurso pessoal, mas também para o catolicismo contemporâneo.

O facto curioso é que aquilo que poderia ser considerado um ponto de fraqueza torna-se, ao contrário, um dos pontos de força evidentes desta obra. Sabemos bem que o género de escrita de um jornal diverge do caráter monográfico ou sistemático típico de ensaios de amplo fôlego, mas isto não significa necessariamente uma condenação à dispersão. A modernidade demonstra-o claramente em muitas obras-primas literárias, em que o regime da expressão é fragmentário, heteróclito e descontínuo, sem que seja de alguma forma sacrificado o surpreendente poder da sua unidade. Neste sentido, Luciani é um moderno.



A simpatia é uma forma de hospitalidade, de participação, de resposta responsável ao outro, de partilha de destinos. Para retomar as palavras do papa Francisco, ela, dessa forma, distancia-se do «moralismo que julga» e faz-se próxima da «misericórdia que abraça». Recorre corajosamente ao “co-sentir” como liação da comunhão possível no polifónico e diferenciado horizonte das culturas e das relações



Aceita comunicar a partir de um púlpito e de um formato não convencional (é um bispo que, diz ironicamente, assume um «estranho compromisso»).

Aceita conversar não só no interior do recinto do sagrado, mas na praça pública, no território aberto da cultura, considerando que a conversação, esta espécie de “sermo humilis” acessível a todos, «é uma grande coisa bela para a nossa vida de pobres seres humanos».

Aceita que a arte do encontro se entretece na capacidade de construir interseções, de colocar em relação mundos e tempos diversos, de fazê-los contemporâneos. Tinha razão Sainte-Beuve quando recordava que «um verdadeiro clássico» é aquele que enriquece o espírito humano e lhe permite «dar um passo em frente (…) onde tudo parecia conhecido e explorado», mas que o faz adotando «um estilo inteiramente seu, que é também aquele de todos, um estilo novo sem neologismos, novo e antigo, facilmente contemporâneo de todas as épocas».

Esta “facilidade”, todavia, não deve ser mal-entendida. A expressão «o papa do sorriso», que depois se tornará recorrente para evocar o Beato João Paulo I – e cuja presença em “Illustrissimi” é já muito evidente –, explica-se não só como exercício de bonomia, mas sobretudo como consciência de que a verdade deve ser exposta delicadamente, segundo o modelo proposto por Santo Agostinho.



«Caro Jesus, fui tomado pelas críticas. “É bispo, é cardeal” – disse-se; “andou a escrever cartas para todas as direções: a M. Twain, a Péguy, a Casella, a Penélope, a Dickens, a Marlowe, a Goldoni, e não se sabe q quantos mais. E nem uma linha a Jesus Cristo”». Claramente, este último «nem um alinha a Jesus Cristo» é para ser lido com grande ironia.



Não é por acaso que, como escreve Stefania Falasca – a mais importante conhecedora da sua obra, a quem devemos os estudos sobre as fontes para a edição crítica de “Illustrissimi” – o “suaviter” [suavidade, agradabilidade] agostiniano «torna-se a “mot-clé” [palavra-chave] significativamente recorrente nos escritos [de João Paulo I] precisamente enquanto reflexo da “animus” própria do autor em relação aos seus interlocutores, como disposição em relação a eles».

A simpatia de Luciano é um método espiritual deliberado, praticado com inteligência perseverante, credivelmente assumido como filosofia de vida. Em “Essência e formas da simpatia” (1923), Max Scheler esclareceu o papel privilegiado que aquela assume na construção de uma experiência comum eticamente qualificada. A simpatia é uma forma de hospitalidade, de participação, de resposta responsável ao outro, de partilha de destinos. Para retomar as palavras do papa Francisco, ela, dessa forma, distancia-se do «moralismo que julga» e faz-se próxima da «misericórdia que abraça». Recorre corajosamente ao “co-sentir” como liação da comunhão possível no polifónico e diferenciado horizonte das culturas e das relações.

É aqui que, creio, deve ser inscrito o inventivo recurso de Luciani à literatura. É uma escolha que aos olhos de muitos soará como insólita, para não dizer extravagante. Isto transparece bem, por exemplo, na carta endereçada a Jesus que conclui o volume: «Caro Jesus, fui tomado pelas críticas. “É bispo, é cardeal” – disse-se; “andou a escrever cartas para todas as direções: a M. Twain, a Péguy, a Casella, a Penélope, a Dickens, a Marlowe, a Goldoni, e não se sabe q quantos mais. E nem uma linha a Jesus Cristo”». Claramente, este último «nem um alinha a Jesus Cristo» é para ser lido com grande ironia. “Illustrissimi” é um texto cristianíssimo, sustentado por passos bíblicos decisivos, repleto de citações dos Padres da Igreja, de filósofos e mestres espirituais cristãos.



É uma responsabilidade gravíssima da Igreja reativar processos culturais que desaguem na criação de códigos e chaves de leitura hermenêuticamente consistentes e vitais. Por isso precisamos da literatura, não como um ornamento agradável, que, tudo somado, seja supérfluo, mas antes como estrutura portadora do nosso estar no mundo e da irrenunciável responsabilidade que o cristianismo transporta, como sustentava Luciani, de «fazer refletir!»



Mas o futuro João Paulo I tem a lúcida consciência de que um dos desafios fundamentais lançados à Igreja contemporânea é de natureza cultural. Quando escreve «a época atual, religiosamente débil, deve ser considerada com método apropriado», está a emitir um certo diagnóstico e ao mesmo tempo a arriscar caminhos novos, com frescura, juvenilidade e audácia. Por isso não se deixa afligir por aquela que, na exortação apostólica “Evangelii gaudium” (n. 50), o papa Francisco diz ser uma das patologias do presente: um «“excesso de diagnóstico”, que nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas e realmente aplicáveis».

Qual é a tarefa do cristianismo após a fratura da modernidade? Luciano sublinha-o na carta a Gilbert K. Chesterton: é urgente ajoelhar-se não diante daquele Deus que «pela secularização é chamado de “morto”», mas «diante de um Deus mais atual que nunca». Isto, porém, exige a sabedoria de compreender como o «ponto de vista» se tornou culturalmente complexificado. É por isso uma responsabilidade gravíssima da Igreja reativar processos culturais que desaguem na criação de códigos e chaves de leitura hermenêuticamente consistentes e vitais. Por isso precisamos da literatura, não como um ornamento agradável, que, tudo somado, seja supérfluo, mas antes como estrutura portadora do nosso estar no mundo e da irrenunciável responsabilidade que o cristianismo transporta, como sustentava Luciani, de «fazer refletir!».

Nesta perspetiva, não é estranho que Albino Luciano seja um bispo, e depois um papa, «que cita Mark Twain!». Não é uma diminuição pôr-se a escrever cartas a Pinóquio ou aos Quatro do Círculo Picwick. Não deve desconcertar-nos o incisivo comentário que das páginas do “Corriere della Sera” o crítico literário Carlo Bo faz a “Illustrissimi”, ao aproximar Luciani «mais a Goldoni que a Manzoni», dado que não se trata de uma dissertação, mas de uma utilíssima extensão de campo.



Na sua definição de “clássicos”, Italo Calvino escreve que «um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer». É este, sem sombra de dúvida, o caso de “Illustrissimi”



Um elemento curioso da história editorial é que naquele mesmo ano, 1976, foram publicados dois epistolários singulares: “Illustrissimi. Cartas do Patriarca”, de Albino Luciano, e “Cartas luteranas”, de Pier Paolo Pasolini. Acomuna-as o serem ambas uma extraordinária espécie de sismógrafo.

Pasolini advertia para a reviravolta antropológica promovida pela sociedade dos consumos e consumada pela desapiedada terraplanagem concretizada pelos seus processos sociais e culturais de homologação. A obra de Pasolini é um livro-denúncia. De certa maneira faz realçar a originalidade do livro de Luciano, que não se subtrai a uma leitura crítica da realidade, mas enquadra-a num horizonte diferente, necessariamente dilatado, surpreendentemente convocado à redenção, pois Deus não desiste de procurar o Ser Humano. Na visão do Beato João Paulo I é sempre possível voltar a Ele, porque o seu é «um convite sempre preparado e aberto a todos».

Na sua definição de “clássicos”, Italo Calvino escreve que «um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer». É este, sem sombra de dúvida, o caso de “Illustrissimi”. Merece bem que dele se nutram novas gerações de leitores.


 

Card. José Tolentino Mendonça
In Vatican News
Trad.: Rui Jorge Martins
Atualizado em 29.07.2024

 

 

 
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