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Pré-publicação: "A biografia do silêncio"

«A passividade do silêncio é ação pura. Aprender a silenciar-se, a sentir-se como alteridade, é respeitar a gestualidade e a transcendência do nosso corpo»: É com estas palavras que o padre João Paulo Costa lê a “A biografia do silêncio – Breve ensaio sobre meditação”, que chega às livrarias na próxima segunda-feira.

O livro do teólogo espanhol Pablo d’Ors (n. 1963), editado em Portugal pela Paulinas Editora, sugere o silêncio como «possibilidade outra da existência, sem encontrar respostas consoladoras, que resolvam com um simples sim ou não a complexidade do devir», salienta o sacerdote da arquidiocese de Braga no posfácio.

«Antes de começarmos a falar, a ritualizar, a simbolizar, a agir ou a julgar, deveríamos silenciar tudo isso por um breve tempo e fazer a pergunta vital: “O que é ou quem é, verdadeiramente, o meu Deus, e quais são os meus ídolos?”», propõe João Paulo Costa, que escreve com regularidade no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

No «silêncio meditativo» encontra-se o inesperado: «Há preciosidades e joias que só as encontraremos ali, aonde nos dispusermos a remover o “lodo” barulhento interior ou o mutismo das palavras contaminadas que coarta a nossa disponibilidade para a dádiva».

Por isso, «meditar silenciosamente é revelar-se a alguém e ser recebido noutro silêncio, em sinal de profunda comunhão corpórea», espaço de «interlocução, de atividade e passividade, lugar para buscar e ser escutado», num «movimento que vai da dádiva ao acolhimento» e se constitui como «escuta do profundo, de si e dos outros».

«Quem é incapaz de silenciar o ego e a vontade inconsciente de poder, a ânsia absoluta de saber, será incapaz de respirar e de comungar o hálito vital e de colher a beleza de tudo quanto vive e respira sobre a Terra», adverte João Paulo Costa.

O silêncio que “A biografia do silêncio” medita é o corpo «transfigurado pela afetividade crente, nutrida de um excesso de confiança», corpo «dado em memória do Verbo que se faz carne, experiência vital da humanidade».

Pablo d’Ors foi ordenado padre em 1991 e esteve em missão nas Honduras. De regresso à Europa, doutorou-se em Teologia com a tese “Teopoética. Teologia da experiência literária”. Foi crítico literário no diário espanhol “Abc” e é atualmente professor de Teatro e Literatura, dirige um laboratório de escrita criativa e é capelão hospitalar.

O volume (152 pp., 9,99 €) integra-se na coleção “Poéticas do viver crente”, dirigida por José Tolentino Mendonça.

 

A biografia do silêncio
Pablo d’Ors
Excertos

Sentar-me a meditar, em silêncio e quietude, foi algo que comecei por minha conta e risco, sem que alguém me tenha dado quaisquer noções básicas ou me tenha acompanhado nesse processo. A simplicidade do método – sentar-se, respirar, calar os pensamentos... – e, sobretudo, a simplicidade da sua pretensão – reconciliar o homem com o que é − seduziram-me desde o princípio. Como sou de temperamento forte e perseverante, mantive-me fiel durante vários anos a esta disciplina de, simplesmente, me sentar e me recolher; depois, compreendi que se tratava de aceitar de bom grado o que viesse, fosse o que fosse.

Durante os primeiros meses, eu meditava mal, muito mal; não me era nada fácil manter as costas direitas nem os joelhos dobrados; e, como se isto fosse pouco, respirava agitadamente. Dava-me perfeitamente conta de que sentar-me e não fazer mais nada era algo tão alheio à minha formação e à minha experiência como, por mais contraditório que pareça, conatural ao que eu era no fundo. No entanto, havia algo muito poderoso que extraía de mim: a intuição de que o caminho da meditação silenciosa me conduziria ao encontro de mim próprio, tanto ou mais que a literatura, de que sempre gostei muito.

Não penso que o homem seja feito para a quantidade, mas para a qualidade. Quando alguém vive para colecionar experiências, acaba por ficar aturdido, porque elas oferecem-lhe horizontes utópicos, esmagam-no e confundem-no... Agora até diria que qualquer experiência, mesmo a de aparência mais inocente, costuma ser demasiado vertiginosa para a alma humana, que só se alimenta se o ritmo do que lhe é oferecido for pausado.

Normalmente vivemos dispersos, quer dizer, fora de nós. A meditação concentra-nos, devolve-nos a casa, ensina-nos a conviver com o nosso ser. Sem essa convivência connosco mesmos, sem esse estarmos centrados no que realmente somos, parece-me ser muito difícil, para não dizer impossível, uma vida que se possa qualificar de humana e digna.

O amor – como a arte ou a meditação – é pura e simplesmente confiança. E prática, evidentemente, porque também a confiança se exercita.

A meditação é uma prática da espera. Mas o que é que realmente se espera? Nada e tudo. Se se esperar alguma coisa concreta, essa espera deixará de ter valor, pois seria alimentada pelo desejo de uma coisa de que se carece. Por ser não utilitária – gratuita, portanto –,essa espera ou confiança transforma-se em uma coisa clara e genuinamente espiritual.

Na realidade, tanto mais crescemos como pessoas quanto mais nos deixamos surpreender pelo que acontece; quer dizer, quanto mais criança somos. A meditação – é disso que eu gosto − ajuda a recuperar a infância perdida.

Tudo o que fazemos aos outros seres e à natureza fazemo-lo a nós. Pela meditação, foi-me sendo revelado o mistério da unidade.

Para meditar não importa sentir-se bem ou mal, contente ou triste, esperançado ou desiludido. Qualquer estado de alma que se tenha é o melhor estado de alma possível nesse momento para fazer meditação, pois é precisamente o que se tem. Graças à meditação, aprende-se a não querer ir a nenhum lugar diferente daquele em que se está; quer-se estar onde se está, mas plenamente. Para explorá-lo. Para ver o que nos oferece de si.

A verdadeira felicidade é algo muito mais simples e que está ao alcance de todos e de qualquer um. Só é preciso parar, calar-se, ouvir e olhar; embora parar, calar-se, ouvir e olhar – e isso é meditar – nos seja hoje muito difícil e tenhamos precisado de inventar um método para uma coisa tão elementar. Meditar não é difícil; o que é difícil é querer meditar.

O que é bom na meditação é que, por força do exercício continuado, comecei a tirar da minha vida tudo o que era quimérico, ficando somente com o concreto. Como arte que é, a meditação gosta do concreto e rejeita a abstração.

A meditação possibilita esses vislumbres da realidade, fugazes mas indubitáveis, com que ocasionalmente somos presenteados: momentos em que captamos quem somos na realidade e para que estamos neste mundo.

Estou convencido de que mais de oitenta por cento da nossa atividade mental – e é provável que esteja a ser avarento nesta proporção – é totalmente irrelevante e prescindível, ou mesmo, contraproducente. É muito mais saudável pensar menos e confiar mais na intuição, no primeiro impulso.

No Ocidente, vivemos num mundo demasiado intelectualizado. Para fazermos frente a este intelectualismo generalizado e exacerbado, é preciso despertar o mestre interior que cada um de nós tem dentro de si, e finalmente deixá-lo falar. (…) O mestre interior não diz nada que não saibamos; recorda-nos o que já sabemos, põe diante de nós a evidência para que sorriamos.

Os maus hábitos derrubam-se na meditação por mera observação e através de um sorriso amável. Olhar e sorrir é a chave para a transformação.

Não estou a dizer que sorrir perante a adversidade seja o mais espontâneo; mas é, sem dúvida, o mais inteligente e sensato. E direi porquê: reagir diante da dor com animosidade é a melhor maneira de transformá-la em sofrimento. Em contrapartida, sorrir diante dela é uma forma de neutralizar o seu veneno. Ninguém irá discutir que a dor é desagradável, mas aceitar o desagradável e entregar-se-lhe sem resistência é o modo para que se torne menos desagradável. O que nos faz sofrer são as nossas resistências à realidade.

A dor é o nosso mestre principal. A lição da realidade – que é a única digna de ser ouvida – não a aprendemos sem dor. Na minha perspetiva, a meditação nada tem a ver com um hipotético estado de placidez, como tantos o entendem. Trata-se sobretudo de deixar-se trabalhar pela dor, de lidar pacificamente com ela. Por isso, a meditação é a arte da rendição.

A nós, seres humanos, caracteriza-nos um desmedido afã por possuir coisas, ideias, pessoas... Somos insaciáveis! Quanto menos somos, mais queremos ter. Ao contrário, a meditação ensina que, quando nada se possui, mais oportunidades se dão ao ser.

Quanto mais nos observarmos a nós próprios, mais se desmoronará o que acreditamos que somos e menos saberemos quem somos. Temos de manter-nos nessa ignorância, de suportá-la, de nos tornarmos amigos dela, de aceitarmos que estamos perdidos e de que temos andado a vaguear sem rumo.

Fazer meditação é colocar-se justamente nesse preciso instante: tens sido um vagabundo, mas podes converter-te num peregrino. Queres?

 

In A biografia do silêncio, ed. Paulinas
16.02.14

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