Leitura
Pré-publicação: "A lista de Bergoglio"
«Na Argentina, os militares tomam o poder. Rebenta o terror. O exército rapta e mata dezenas de milhares de pessoas, naquele processo trágico que ficou conhecido como o drama dos desaparecidos. Em Buenos Aires, de forma discreta mas heróica, o jesuíta Jorge Mario Bergoglio salva todos os perseguidos que pode.»
O livro "A lista de Bergoglio - Os que foram salvos por Francisco durante a ditadura", resulta da investigação de Nello Scavo, e conta com prefácio do argentino Adolfo Pérez Esquivel, prémio Nobel da Paz.
«É mais do que um livro. É um documento. Ao longo de cerca de 200 páginas, um jornalista italiano do periódico católico “Avvenire” fala do tema mais inquietante do Pontificado do Papa Francisco: a posição assumida pelo então provincial dos Jesuítas da argentina durante o período da ditadura militar», escreve Rosa Pedroso Lima na mais recente edição do "Atual", suplemento do semanário "Expresso".
O volume transcreve ainda o interrogatório ao cardeal Bergoglio, realizado em 2010, no âmbito do Processo ESMA, Escola Superior da Armada, em Buenos Aires, onde decorreram muitos dos interrogatórios e torturas a que o regime militar submeteu as suas vítimas.
Apresentamos alguns excertos da obra (Paulinas, 208 páginas, 13,50 €), que a partir desta segunda-feira estará disponível nas livrarias.
Prefácio
Adolfo Pérez Esquivel
Já comentei em diversas ocasiões o facto de uma grande parte da hierarquia da Igreja argentina ter sido cúmplice da ditadura ou, mesmo que apenas por omissão, não ter estado à altura das circunstâncias históricas. É claro que não se pode generalizar e medir tudo com a mesma rasoura. Houve bispos claramente cúmplices que chegaram a justificar até a tortura. Outros, pelo contrário, encerraram-se em posições mornas, procurando de algum modo ajudar, dentro das suas possibilidades, apresentando queixas à Junta Militar por causa dos desaparecidos e dos presos e, com ações privadas, salvando pessoas. O então provincial da Companhia de Jesus, padre Jorge Mario Bergoglio, contribuiu para ajudar os perseguidos e fez de tudo para que os sacerdotes da sua Ordem que estavam presos fossem libertados.
Estão dezenas de pessoas naquela lista
Vestia de branco. Disse que se chamava Francisco. «Bergoglio salvou e resgatou muitos deles, mais do que ele próprio poderá lembrar-se», confiou-me, poucas horas depois, um seu velho amigo. Tinha acabado o tempo do esquecimento. Só faltava investigar.
À medida que a «lista» se ia compondo de nomes, de encontros, de testemunhos de audácia e de artimanhas de agente secreto, ia ganhando corpo a resposta a uma pergunta que se tornara obsessiva: «Porque é que os amigos do padre Jorge decidiram calar-se, quando, pelo contrário, deveriam ansiar pela divulgação de uma verdade tão espantosa?»
Do alto dos seus oitenta e um anos, o padre Scannone limita-se a responder com um «sim» a uma hipótese extravagante que me faiscou, mas que para a minha mentalidade de cronista – bastante diferente da lógica menos impulsiva de um historiador – me parecia não fazer nenhum sentido: «Os amigos do Papa calam-se para não alimentar a suspeita de que, através deles, Bergoglio estaria a tentar manipular a seu favor os factos que remontam aos anos da ditadura?»
Estou agradecido àqueles silêncios. Porque o que escrevi neste livro é a reconstituição de uma busca laboriosa, dos que foram salvos ou resgatados por Bergoglio. A «lista» ainda está muito incompleta. Como numa terapia de desintoxicação coletiva, durante decénios, tentaram encher o vazio daquela multidão com a vida conquistada dia a dia: uns agradecendo a boa sorte porque o sol ainda surge diante dos seus olhos, outros amaldiçoando o sentimento de culpa por não terem acabado como os outros, no fundo do Atlântico.
Durante muito tempo, acusaram-no de ter-se voltado para a outra parte, cobarde e cúmplice. Mas, por ele, testemunham as vozes da «lista», aquelas que, desde a primeira página, falam através dos encontros pessoais, das entrevistas, dos documentos de investigação e das declarações prestadas às comissões de inquérito. Alguns dos «salvos por Bergoglio» pediram que não mencionasse onde e de que maneira aconteceram os nossos encontros. Outros preferiram remeter-nos para recortes de jornais e memórias escritas que integrámos com os nossos encontros anotados entre as atas judiciárias.
A Argentina debaixo do tacão dos generais
Com o pretexto de preparar um «Processo de Reorganização Nacional», uma junta militar depôs a Presidente Isabelita Perón, que tinha sucedido ao marido, e, com ela, os governadores e vice-governadores. A Assembleia foi dissolvida. Os membros do Supremo Tribunal foram afastados, do primeiro ao último.
Os militares venceram a guerra, mas não procuravam a paz. Declararam o estado de sítio, ab-rogando os direitos constitucionais, suspendendo as atividades políticas e de associação, proibindo os sindicatos, vigiando os jornais, sequestrando militantes políticos, ativistas sociais e guerrilheiros. A tortura tornou-se regra para obter informações, aplicando o método do desaparecimento sistemático de pessoas para gerar um clima de terror. Entre outras coisas, os centros clandestinos de detenção eram o motor de um perverso sistema de apropriação dos recém-nascidos filhos das reclusas.
A fábrica dos pais
«Não cortes o cordão, não cortes!» Não eram lágrimas de alegria e não era a dor do parto que a fazia desesperar. O recém-nascido encostado ao peito ainda sujo de sangue.
Ainda gritou com todo o fôlego que lhe restara: «Não leveis embora o meu menino!»
Acabou como devia acabar. Sara Solarz de Osatinsky contou-o na qualidade de testemunha, num dos processos às cúpulas das Forças Armadas. Descreveu o inferno da escuela, e sobre como as crianças eram subtraídas às mães.
Esposa de um expoente das Forças Armadas Revolucionárias, mandado eliminar pela Junta, mãe de dois filhos com as idades de 15 e de 18 anos, Solarz de Osatinsky tinha sido sequestrada na rua. Antes de ser lançada numa cela da ESMA tinham-lhe roubado tudo e batido.
Quando se entrava no centro de tortura, raramente se saía de lá vivo. Calcula-se que só na ESMA, o lager-símbolo da ditadura, tenham entrado cerca de cinco mil pessoas. Só duzentas puderam voltar a ver a luz do dia.
Bergoglio ajudava as vítimas, outros prelados apoiavam o regime
«A história da Igreja argentina não é um mar de rosas. E também não o é a história da Argentina. Por isso, raros são aqueles que saem limpos. E ainda mais raras as virgens. Gabar-se do monopólio sobre a «nação católica», aquela Igreja vinculou-se longamente ao Estado e, dentro do Estado, aos homens de farda.
«Tudo isto tornou a Igreja conivente com o regime de Videla? Em parte sim: com certeza houve bispos que o foram; ainda mais o foram os capelães militares; e foi o peso daquela longa história que induziu a Igreja a não fazer denúncias públicas e a discutir com o regime por vias confidenciais. Mas essa responsabilidade coletiva transmite-se a todos os indivíduos? A cada sacerdote, inclusive Bergoglio? Certamente, não.»
«Embora pouco meigos com a Igreja da época, ambos desculpam o Papa atual; mas não só: o que se lhe imputa, dizem, isto é, o abandono de dois sacerdotes nas garras do regime, não corresponde à verdade. Com papéis na mão, posso assegurar que os Jesuítas, de que Bergoglio era provincial na Argentina, não foram prudentes com Videla para obter a sua libertação.»
Foi uma época de barbárie. Também então a comunidade internacional ficou nas bancadas. A ditadura matou muitos inocentes. E, se havia muitos que não eram inocentes, muitos outros não tiveram a justiça que mereciam.
Testemunhos
Gonzalo Mosca, o sindicalista perseguido por duas ditaduras
«Eu tinha as horas contadas. Estava desesperado.» O guarda do edifício avisara-o: «Te matarán» (Vão matar-te). Mas, para não acabar assassinado, só lhe restava uma via, percorrer um caminho que, para alguém como ele, estava cheia de armadilhas: pedir ajuda aos padres.
Felizmente, Gonzalo conseguiu telefonar a um dos seus irmãos, um jesuíta residente na Argentina. O padre Mosca não o podia ajudar imediatamente, mas sabia a quem dirigir-se.
Quando o padre Mosca contactou com aquele que tinha sido seu professor de Filosofia, este respondeu como se lhe ditasse um telegrama. Fazia assim todas as vezes que a situação estava séria: «Traz-me o teu irmão, farei por ajudá-lo.» O padre Bergoglio chegou de carro ao lugar combinado.
Mas Gonzalo não ficou muito tempo na casa da Companhia. «Terão sido, no máximo, quatro dias.» Bastaram para o padre Bergoglio organizar a fuga. «Apresentou-me como um estudante que queria participar num breve retiro espiritual.» Afinal, não era uma grande mentira.
Ajudar dissidentes a fugir era não somente uma operação cheia de riscos, mas também a possibilidade concreta de acabar diretamente nas garras dos açougueiros. Por isso e para isso, o padre Jorge construiu uma rede de apoio no Brasil, de maneira a favorecer o sucesso das fugas. Na verdade, nenhum dos membros do «sistema Bergoglio» sabia que fazia parte dele. Cada um fazia um único favor concreto ao provincial argentino: um providenciava uma cama para uma noite, outro um transporte de carro, outro metia uma «cunha» aos funcionários consulares europeus, outro tratava dos bilhetes de avião.
Alicia Oliveira: na clandestinidade juntamente com o padre Jorge
«Certamente não precisam de explicar-me quem é o padre Jorge Bergoglio. Conseguiu expatriar muitos perseguidos, pondo a sua vida em risco. Que queriam que ele fizesse?»
Poucos minutos depois da eleição do romano Pontífice, o telefone de Alicia começou a tocar repetidamente. Numerosos jornalistas pediram-lhe uma opinião sobre o novo Papa. Respondeu: «A minha opinião é de uma amiga. Para mim, Jorge é um amigo, não o cardeal nem o papa. Tenho a máxima consideração por ele. É um grande homem, preocupado com as pessoas que sofrem.»
Oliveira conhecia Bergoglio havia cerca de quatro anos. Tinham-se tornado amigos, embora ela não fosse uma mulher muito religiosa. Como fazia sempre nestes casos, o padre Jorge foi delicado, mas honesto. «Estás em perigo de vida – disse-lhe e ofereceu-lhe uma solução. – Vem para o Colégio. Poderás ver os teus filhos e ficar escondida. En tretanto, procuraremos resolver a situação.»
«Prefiro encerrar-me numa cela a viver com os padres», respondeu Alicia. Não houve maneira de convencê-la.
Então, o padre provincial poderia ter-se despedido dela, desejando-lhe todo o bem, lembrando-se dela nas suas orações e ocupar-se de outra coisa. Mas não. O padre Jorge resolveu tudo.
Alfredo Somoza: o literato salvo sem saber
«Não sou crente nem sequer batizado. Contudo, afirmo que na Universidad del Salvador [ligada aos Jesuítas] respirava-se um ar de liberdade, como em nenhum outro lugar de Buenos Aires. A autonomia académica permanecera intacta. Quando se estava lá, parecia que o regime nunca existira. A Estatal, pelo contrário, teve de fechar alguns cursos de licenciatura, como Sociologia e Antropologia, considerados um viveiro de opositores.»
Quando Videla e companhia tomaram o país, Alfredo tinha 18 anos. Aos 20, «fui sequestrado e fechado num comissariado». Estava-se em 1978. «Lá permaneci uma semana. Vivia como num limbo, não sabia o que me tinha acontecido.» Enquanto os militares discutiam se deviam confiá-lo aos cuidados da ESMA, do Olimpo ou de qualquer outro matadouro, alguém, que é melhor ficar anónimo, «conseguiu tirar-me a tempo, antes de me fazerem desaparecer».
«Na realidade, os Jesuítas trabalhavam nos bastidores, como aconteceu no caso dos dois sacerdotes presos [os padres Yorio e Jalics], torturados e libertados passados seis meses, cuja história foi realçada pelo jornalista Horacio Verbitsky. Falou-se disso em todo o mundo. Verbitsky interrogou-se, se Bergoglio não poderia ser considerado responsável pela sua detenção; eu penso que, pelo contrário, foi graças à sua ação e à de todos os jesuítas que os dois religiosos saíram de lá vivos, quando naquele período era muito frequente desaparecer para sempre», observa Somoza.
O caso Jalics-Yorio: «Não fomos denunciados por Bergolgio»
Do ficheiro dos serviços secretos ressuscitou um fascículo «classificado» que, durante alguns anos, foi considerado bom. Uma ficha top secret com um título assético: «Direção do culto, maço 9, ficheiro B2B, Arcebispado de Buenos Aires, documento 9.» A polícia política argentina ano tava: «Não obstante a boa vontade do padre Bergoglio, a Companhia argentina [refere-se aos Jesuítas] não fez limpeza no seu interior. Os jesuítas espertos, durante algum tempo, puseram-se à margem; mas, agora, com o grande apoio do estrangeiro de certos bispos terceiro-mundistas começaram uma nova fase.»
O documento reservado insinua que o padre Bergoglio era um colaborador do regime. Mas porque é que os serviços secretos teriam posto preto no branco aquele «Não obstante a boa vontade do padre Bergoglio», num fascículo que poderia cair em mãos hostis? [...]
«Lembro-me de que era um sábado de tarde e tive missa na residência do comandante-chefe do Exército, diante de toda a família Videla. Depois, pedi para falar com ele, com o general, precisamente para compreender onde teriam os sacerdotes detidos.»
Não adiantou grande coisa, mas não se rendeu. Não queria e, na sua posição, não podia. A um amigo o futuro Pontífice confidenciou «que tinha feito coisas de loucos», nos meses em que os seus confrades estiveram detidos como prisioneiros.
Bergoglio tinha garantido à família de Jalics que haveria de fazer tudo para libertá-lo. Numa carta de 15 de outubro de 1976 (de que publicamos aqui pela primeira vez dois ex -
certos), o provincial tinha escrito: «Tomei muitas iniciativas para chegar à libertação do vosso irmão; até agora, não tivemos sucesso, mas não perdi a esperança de que, brevemente, será libertado. Decidi que a questão é tarefa minha.» Depois acrescenta: «As dificuldades que o vosso irmão e eu temos tido entre nós sobre a vida religiosa não têm nada a ver com a situação atual.» Jalics «é para mim um irmão».
Padre José-Luis Caravias: «Bergolgio salvou-me, despistando os serviços secretos»
«Fui arrastado para um furgão da polícia. A viagem durou algumas horas. Não compreendia para onde me levavam. Pensei no pior. Depois, abriram a porta, atiraram-me abaixo e afastaram-se a toda a velocidade.» Quando se foram embora, o padre José-Luis Caravias compreendeu que estava em Clorinda, em território argentino. Sem dinheiro nem documentos nem roupas.
«Se hoje estou vivo, se pude escrever quarenta livros, se pude continuar a promover os direitos dos últimos e o Evan gelho entre os pobres, a ele o devo», afirma o padre Caravias. Como teólogo incorrupto da libertação («na versão argentina», precisa), Caravias vê nos ataques ao novo Papa a reação vulgar «de um certo capitalismo internacional». O padre Jorge é aquele tipo de padre disposto a importunar de tanta humanidade. «Para os seus acusadores, um Papa que denuncia a pobreza global é demasiado perigoso», diz.
Sergio e Ana Gobulin: «Nós, catequistas na "villa miseria", devemos-lhe a vida»
«Partiram as portas. Atiraram tudo pelos ares. Disseram que procuravam armas.» Nem se importaram com a menina pequenina de uma família que só tinha o azar de lutar pelos direitos e pela dignidade dos marginalizados. Foi uma intimidação.
Logo que o padre Jorge foi informado, fez desencadear uma operação de salvamento em duas direções: arrancar Sérgio aos militares e pôr Ana em segurança. Como de costume, o jesuíta começou a investigar por conta própria. Perguntando no lugar e olhando à sua volta. Foi falar com alguns oficiais para defender a causa dos seus amigos. Depois das peripécias habituais, conseguiu tirar Sergio.
José Manuel de la Sota: «Todos sabem que salvou dezenas de vidas»
«Te queremos papa Francisco! Llenas de alegría nuestros corazones!» («Amamos-te, papa Francisco! Enches de alegria os nossos corações!») Há quem tenha visto, neste rasgo, aposto no tweet pelo governador de Córdoba, poucos minutos depois da eleição do papa Francisco, o habitual oportunismo político.
O seu entusiasmo é sincero. De facto, de la Sota é devedor de Bergoglio. Uma daquelas dívidas que nunca se extinguem: «Salvou-me a vida, tirando-me da prisão.»
Juan Carlos Scanonne: «Digo-o pela primeira vez: parou uma caçada contra mim»
O percurso desta segunda parte termina regressando à longa conversa inicial com o teólogo Juan Carlos Scannone, o expoente máximo daquilo a que, a partir dos anos 80, se chama «teologia do povo».
«Porque nunca quis falar primeiro! Passaram já tantos anos e não gostava de alimentar debates nem polémicas sobre o arcebispo Bergoglio. Agora que o meu amigo Jorge se tornou o papa Francisco, posso contar que sim, que ele me cobriu os ombros, que ele me salvou. E fê-lo em variadas circunstâncias.»
In A lista de Bergoglio, ed. Paulinas
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09.11.13