Perfil
A poesia de Pessoa é um diagnóstico espiritual certeiro da Modernidade
Uma das ambições comuns do turista que visita Lisboa é fazer-se fotografar ao lado da estátua de Fernando Pessoa (1888-1935), diante do emblemático café "A Brasileira", onde gerações de artistas se reuniram. Não há guia turístico que não recomende uma atenção privilegiada à obra poética de Pessoa. E existem abundantes razões, não só literárias, para isso. Dir-se-ia mesmo que as principais, aquelas que tornaram o poeta um ícone europeu contemporâneo, são razões de civilização.
Pessoa é um surpreendente caso, se pensarmos que a revelação da sua obra dá-se praticamente numa estação póstuma: em vida publicou apenas um livro e esparsa colaboração em revistas. Ninguém podia então adivinhar que a famosa arca dos seus manuscritos escondia um dos mais apaixonantes escritores do século XX. A derradeira frase que pronunciou no leito de morte, «I know not what tomorrow will bring» («Não sei o que o futuro trará»), foi ganhando também, a este nível, uma intensa coloração autobiográfica. Quem o visse naqueles anos, disfarçado de anónimo empregado de escritório, traduzindo correspondência comercial em pequenas firmas de exportação, estaria longe de supor que se cruzava com um Criador da dimensão de Kafka, de Joyce ou de Musil.
A poesia de Pessoa é um diagnóstico espiritual impressionantemente certeiro da Modernidade. A essência da cultura moderna não determinou, ao contrário do que se diz, a ausência do sentimento religioso ou da metafísica, da ética ou da estética. O que define a Modernidade mais do que o vazio é o excesso. As antigas esferas subsistem, aquilo que funda a certeza ou a crença permanece. Mas sob um regime novo: o de uma radical autonomização que confere à cultura e ao homem um perfil estilhaçado. A partir de agora somos fragmentos de uma unidade perdida, dispersão incontrolável, orfandade e ficção. Como o poeta enuncia numa passagem de um dos seus poemas mais conhecidos, "Tabacaria":
«Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido...»
Pessoa levará ao assombro o processo da heteronímia, que representa fundamentalmente esta dissociação interior. Ele não usa pseudónimos, mas heterónimos: com meticulosidade desarmante, planeia a existência de poetas autónomos, diferentes na sua índole e na sua escrita, contrastantes e perfeitos nos tiques, nos gostos, no humor. É verdade que já Rimbaud havia dito, na famosa carta dita "du Voyant", endereçada em 1871: «Je est un autre». E Pirandello escrevia contemporaneamente o seu «Uno, nessuno e centomila». Mas Pessoa tornar-se-á um dos videntes da Modernidade e também um dos seus sintomas, na radicalização daquela fratura interior até à completa pulverização. Nesse sentido, a heteronímia traduz não apenas uma estratégia de composição literária, mas também um movimento espiritual: precisamente o do homem que se descobre refém da impotência extrema de se conceber já e exprimir como unidade. Numa paráfrase do Salmo 22, que Jesus reza na Cruz, o poeta escreverá também como sua Paixão: «Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?»
José Tolentino Mendonça
18.04.12
Estátua de Fernando Pessoa no Chiado