«A poesia é um lugar de Deus. E Deus é o “lugar” da poesia. Não concebo uma poesia digna desse nome cuja dicção não vá além da trivialidade intramundana, asfixiada na estreita imanência. Tem de possuir pelo menos uma ressonância que a abra a outras dimensões.»
A palavra é do poeta Carlos Poças Falcão, entrevistado na última edição de 2020 do jornal “O Conquistador”, na qual afirma a convicção de que «não há verdadeiramente poesia fora do «espaço» do transcendente».
«O sagrado, o transcendente, o divino são as dimensões originais, inscritas no próprio ADN da poesia ao longo de todos os séculos e nas mais distantes regiões», até porque «a língua poética é a língua sagrada dos textos fundadores das grandes tradições metafísicas e religiosas».
A «intensidade», a «voz trágica», o «grito» do poema convertem-no em «negativo fotográfico», e «muitas vezes contra as próprias suposições do poeta» tornam «Deus presente através da sua ausência».
Dotada da capacidade de «exprimir o inexprimível» e evocar o que «as asas da razão não podem alcançar», a poesia continua refém da opinião generalizada que a considera «arbitrária, caprichosa», vertendo-se «ao sabor da emoção, do sentimento, da “inspiração”».
«Não é assim. A poesia digna desse nome é uma arte de rigor, de ponderação. Ela demanda a palavra justa», considera o autor de “Sombra silêncio” (ed. Opera Omnia), distinguido com o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores de melhor livro de poesia de 2019.
Para o autor vimaranense nascido em 1951, «a poesia é a palavra que não se deixa encarcerar num mundo calculado, previsto, regulado, securitário, onde a utilidade e o domínio são o horizonte do possível».
Por isso, prossegue, ela é «o último reduto do humano capaz ainda de um estremecimento em face do aberto: tudo o que vem, inesperado, frágil, a precisar de acolhimento e de uma palavra nova».
«A poesia (no poema, no romance, no filme, na arquitetura, na dança…) é o selo (o último selo?) da voz humana. E se faltasse, se fosse quebrado (o que não poderá nunca acontecer), facilmente seriam assaltados os últimos tesouros: a luz litúrgica e o silêncio da oração», declara.
Carlos Poças Falcão considera que «a ameaça» não reside «na ciência, que é um dom esplêndido», mas na sua redução «a um programa ao serviço da devassa, manipulação e exploração do homem e da natureza».
«Os tempos estão difíceis para a palavra e para o poema. Quantas vezes não penso: mas quem vai ler isto que tão minuciosamente escrevi? A verdade, no entanto, é que há leitores, há muitos e excelentes leitores», assinala.
Num dos poemas incluídos na obra “Verbo – Deus como interrogação na poesia portuguesa” (seleção de José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia, ed. Assírio & Alvim, 2014), Carlos Poças Falcão escreve:
«Silencioso, último, sem préstimo, obscuro/ assim anda entre nós. Atravessa as ruas/ vai no movimento, o mundo é tão brilhante// que na verdade cega. Assim recolhe as provas/ acerca de não vermos. Buscamos só imagens/ que desprendem mais imagens, leques de escondermos/ a nossa própria face – e assim anda entre nós/ guardando o que perdemos, o que recusamos.// Passa entre ruídos, para em velocidades/ confirma a inversão das luzes e dos séculos./ Silencioso, último, sem préstimo, obscuro/ aí vem, com seu sorriso, a face arcaica: o Deus».