Por nenhuma razão claramente definível, mas por diversos motivos pessoais e não efémeros, estou levando a cabo a leitura e releitura das “Confissões” de Santo Agostinho e “Em busca do tempo perdido”, de Proust.
Dado que não disponho de muito tempo livre para dedicar ao apaixonante cometimento, tive de inventar um método: alterno a leitura das duas obras, um dia uma e outro dia outra, durante não menos de meia hora e não mais de uma hora.
Estas pequenas doses intensificam a concentração e o prazer de ler, favorecendo uma lenta e meditada absorção das duas autobiografias capitais, uma fundadora e outra conclusiva, da cultura ocidental.
Que fique claro que não estou a fazer nenhum esforço. A cada manhã sei que me espera o melhor das minhas notas mentais: uma vez com Agostinho, nascido em Tagaste, atual Argélia, em 354 d.C., e falecido em Hipona, onde se tinha tornado bispo, em 430; e o dia seguinte com Marcel Proust, nascido e falecido em Paris entre 1871 e 1922.
Destas leituras falo de vez em quando aos meus amigos mais ou menos jovens, não tanto para os surpreender e para me vangloriar, mas para mostrar que com um pouco de astúcia programática podem ler-se sem cansaço e com grande satisfação inclusive os clássicos mais exigentes e pesados, dos quais se sabe que existem mas dos quais se mantém a distância por timidez e preguiça, com o risco de nunca os ler.
Antes de Santo Agostinho pode dizer-se que a autobiografia em sentido moderno não existia. Foi o cristianismo, foi a experiência moral, psicológica, religiosa da conversão a criar uma atitude introspetiva que a literatura grega e romana ignoravam.
Agostinho não cala nada, analisa minuciosamente todas as possíveis ambivalências emotivas e mentais que se atravessam no caminho do auto-aperfeiçoamento e da fé.
Proust, por seu lado, retoma a viagem pelos labirintos da memória, não descuidando nenhuma tonalidade e nenhum detalhe. Compõe assim por acumulação um ciclo unitário de sete romances, uma épica da interioridade e da socialidade burguesa e aristocrática, com cuja insuperável complexidade se concluem três séculos em ensaística moral e romance de análise franceses, de Montaigne a Flaubert.
Entre uma leitura e outra, olho de quando em vez para as árvores, os pássaros, os telejornais, e escrevo artigos.