Se para os americanos os Amish são vistos quase como extraterrestres, então para nós, deste lado do Atlântico, mais estranhos são. Apesar de serem originários da Europa protestante, a verdade é que hoje apenas subsistem em comunidades muito fechadas na América do Norte. Recusam muita da tecnologia que actualmente nos parece essencial, como automóveis e electricidade e cultivam um distanciamento da restante sociedade que é por vezes erradamente interpretado pelos de fora.
Recentemente, porém, os Amish (em particular a grande comunidade que vive na Pensilvânia) viram realizados dois grandes pesadelos. Um, mais importante, foi a matança de cinco meninas numa escola, às mãos de um louco. O segundo, derivado desse, foi o facto de subitamente se virem tornados o centro das atenções não só da América como do resto do planeta. No meu caso, dei conta do massacre e vi todas as imagens, num quarto de hotel no Vietname, a um mundo de distância.
O caso tem obviamente um grande interesse jornalístico, mas levanta algumas questões pertinentes. Como se faz a cobertura mediática de um episódio trágico, no seio de uma comunidade que, na melhor das alturas, não gosta de ser filmada ou fotografada e cujos membros se recusam a falar com a imprensa não por uma questão de rebeldia ou revolta, mas sim por humildade? Onde se traça, neste caso, a estreita linha entre o respeito pela comunidade e o trabalho do jornalista?
Para lá destes dilemas, a verdade é que a cobertura foi feita. E ainda bem que o foi, nem que seja por algumas das histórias que surgiram sobre aquele dia.
Naquela hora terrível, em que Charles Roberts já tinha mandado sair os rapazes da escola e se tornava evidente que tinha intenções de ferir as raparigas que permaneciam, Marian Fisher, de 13 anos, chegou-se à frente e pediu para ser a primeira a morrer. Esperava, com isso, salvar a vida a alguma das suas amigas. Como se não bastasse, a sua irmã mais nova pediu para ser a próxima, embora esta tenha tido a sorte de sobreviver ao massacre.
Este poderia ser apenas um exemplo de coragem de uma menina diferente, mas a maior parte da informação que veio para os meios de comunicação sobre a comunidade, leva a crer que é mais do que isso.
Uma das famílias enlutadas fez questão de convidar a viúva do assassino (que no fim do massacre se suicidou) para o enterro da sua filha, num gesto de reconciliação. O facto de esta ter comparecido ou não (não se sabe) é totalmente irrelevante.
Quando a notícia da tragédia veio a lume, os responsáveis da comunidade começaram a receber muitas ofertas de dinheiro para ajudar as famílias que tinham sido mais atingidas, em particular as das sobreviventes que ficaram feridas e cujas contas hospitalares se arriscam a ser pesadas para comunidades que vivem na maior da simplicidade e que recusam apoios extra-comunitários, incluindo seguros. Perante tal onda de solidariedade, estes responderam que aceitavam com humildade essa ajuda, que moralmente estavam impedidos de solicitar, na estrita condição de que fosse estabelecido também um fundo de apoio à família Roberts.
Apesar dos próprios Amish evitarem conversar com a imprensa, algumas comunidades que têm raízes e uma teologia muito comum, tentaram explicar aquilo que meio mundo não conseguia compreender. Johann Cristoph Arnold, das comunidades Bruderhoff (que são virtualmente idênticos aos Amish, com a diferença de conviverem bem com a tecnologia) disse com simplicidade: “Se mantivermos ressentimentos, eles vivem no nosso coração até levar à violência de algum tipo. Se não perdoarmos não poderemos ser curados. O perdão tem a capacidade de curar quem perdoa e quem é perdoado. É isto que os Amish acreditam. Levará o seu tempo, mas é isto que eles agora têm que pôr em prática para todo o mundo ver.”
Toda a teologia Amish é muito diferente da nossa. Contudo julgo que não estamos perante uma questão de diferenças teológicas. Os Amish não têm um monopólio teológico do Perdão. O exemplo do bárbaro assassinato da Irmã Leonella, na Somália, é apenas um de muitos exemplos que nos mostram o contrário. Diz quem viu, que a freira sexagenária morreu a repetir a expressão “Eu perdoo, eu perdoo”.
Mas se ambos os nossos credos, aliás, se todos os credos cristãos, dão igual importância ao perdão, então porque é que temos tanta dificuldade em imaginar estas atitudes colectivas no seio das nossas comunidades? A razão não é teológica, é de outra natureza.
O culto do perdão
Se o perdão é uma virtude, pode cultivar-se tanto como as outras. Mas mais do que fazer esse culto a nível pessoal, o que vemos nos Amish é um culto comunitário do perdão. É essa verdade que leva a que, confrontados por uma tragédia, a reacção da comunidade seja a de perdoar para poder curar as terríveis feridas deixadas em aberto.
Na nossa sociedade ocidental, apesar de termos grandes exemplos a seguir no que diz respeito à abertura ao perdão, eles sobressaem precisamente pelo facto de serem as excepções à norma. A nossa cultura supostamente cristã, já não parte do princípio que a maldade se deve perdoar, e espera, mesmo que tente por vezes desencorajar, que a reacção seja uma de vingança e retribuição.
A virtude do perdão é por nós encarada como uma opção pessoal. Louvável apesar de dificilmente compreensível, do género “acho muito bem, mas não seria capaz”.
Quais são as consequências de relegar o perdão unicamente para a esfera da responsabilidade pessoal? O perdão é difícil, não se presta a discursos incendiários nem ganha votos em eleições. A vingança e a retribuição, sempre sob o manto da justiça, são para isso muito mais úteis. Não é fácil encontrar na história recente um só caso em que os governantes de um estado apelem ao perdão em vez de à vingança sobre o vizinho com quem têm más relações. Mesmo internamente, em estados que tenham sofrido divisões resultantes de guerras civis, o que se procura fazer em nome da unidade é esquecer, não perdoar.
Perdão v. Esquecimento como instrumento de resolução de conflitos
Lembro-me de uma conversa animada, durante uma aula sobre resolução de conflitos, no curso de Relações Internacionais, sobre como lidar com os ressentimentos das populações. O consenso era que, em vez de utilizar politicamente esses ressentimentos, espicaçando-os e incendiando-os pelas razões que os diversos governos encontram para o fazer, estes deviam mobilizar-se no sentido de promover o esquecimento desses ressentimentos, uma vez que o passado não se podia apagar, ao menos podia-se tentar apagar a memória.
Compreendo a importância de não estar constantemente a reavivar os males do passado, mas daí a esquecê-los vai um longo passo. Como se obriga um povo a esquecer? Que género de hipnose colectiva será necessária para apagar da memória de uma nação todas as referências aos males, reais ou imaginários, a que foram submetidos no passado?
O facto é, que quanto mais grave for o ressentimento, mais difícil é de fazer esquecer e mais fácil de manipular. A técnica perde, portanto, utilidade na mesma medida em que se torna necessária.
O mais natural, como se tem visto vezes e vezes sem conta, é que toda a amargura que se tentou recalcar surja de novo, já fermentada, na altura menos conveniente. Será preciso ir mais longe que os Balcãs para provar esta teoria?
Os advogados do esquecimento estão no caminho certo. Eles compreendem, correctamente, a necessidade de se ultrapassar os traumas de um povo, de não deixar as feridas em aberto para que não infectem. Falta-lhes é compreender que quando tapamos um joelho esfolado com um par de calças engomadas, a ferida não desaparece, por mais que não se veja.
Pelo contrário, é preciso lidar com a ferida, mas isso faz-se aplicando-lhe um curativo, e não fingindo que não existe.
Esse curativo só pode ser o perdão. Qualquer outra atitude só leva a mais violência, mais ressentimentos, mais tarde ou mais cedo.
A questão imediata é saber como é que um povo pode perdoar? Se o perdão é uma virtude cujo campo de acção está limitado à consciência individual, então como se perdoa em nome de todos? Mas existe uma falha neste raciocínio. Será que o perdão tem mesmo que estar resumido ao indivíduo? O exemplo dos Amish parece mostrar o contrário. É possível perdoar em comunidade e como comunidade. Como se faz? Não será certamente através de imposições. Estamos perante uma grande árvore, talvez a maior da quinta. Para chegar lá apenas temos que plantar o pequeno grão de mostarda (Lc 13, 18-19; Mt 13, 31; Mc 4, 30-32).
O que eu proponho é que se comece a fazer o culto do perdão, não só a nível individual, mas a nível familiar. Eduquemos os nossos filhos com esse objectivo em vista. O perdão traz sempre mais paz que o conflito. Tornemos esta ideia tão forte e tão enraizada, vivamo-la com tal intensidade que, se um dia, na nossa família, acontecer uma tragédia como aconteceu aos Fisher, possamos ter a força de perdoar, logo. Não depois de muita e sofrida deliberação, mas logo, por defeito. Para que, se algum dia nos derem cinco tiros pelas costas, possamos morrer com palavras de perdão na boca.
Façamo-lo nas nossas comunidades, nos nossos grupos de amigos. Que seja pregado dos púlpitos e incentivado nos convívios. Cultivemos a ideia de perdão comunitário, perdão de grupo, perdão familiar. Que uma família de 5 membros que seja injustiçada não perdoe 5 vezes, mas sim uma, em nome de todos.
Retiremos as imagens de homens e mulheres que perdoam dos altares em que os colocámos para perceber que não estamos perante sobre-humanos, mas sim pessoas de carne e osso. Façamos dos que se agarram aos seus ódios e ressentimentos a excepção, e levemo-los a compreender que o são.
Acredito plenamente que assim, de geração em geração a conversão possa ter lugar. Negá-lo é negar a verdade do evangelho, é uma manifestação da maior falta de fé.
Parece difícil? Para nós sim. 47,000 homens, mulheres e crianças na Pensilvânia não compreendem porquê.