Fé e Cultura
Indícios do Divino na poesia portuguesa do século XX
(...) Na literatura do século XX e do início deste século em Portugal, é possível identificar, mesmo se a multiplicidade impede que dela se fale em geral, uma intuição intelectual, uma sabedora pergunta pelo Transcendente, latente ou explícita. Traços de preocupação pelo religioso, o divino ou Deus, enquanto Presença outra – procurada, negada, acolhida, debatida, velada ou abertamente configurada – são visíveis em muita da poesia e da narrativa ficcional.
É verdade que, na cultura portuguesa, em parte devido à forte herança de um sentido messiânico, de raiz judaica, o sentido de um “descontentamento” ou de um “desassossego”, ou então de nostalgia ou saudade, é uma constante em vários autores, traduzindo-se na consciência de um irremediável ficar aquém ou no adro, e na constante busca de um além inatingível, que são elementos matriciais da nossa cultura. O “mito sebástico” parece dar sequência, imaterial mas intensa e constante, a essa antiga expectância perante “outra coisa ainda”, essa que será mesmo “linda”, como no poema ‘Isto’, de Fernando Pessoa, se diz:
«[...]
Tudo o que sonho ou faço,
O que me falha ou finda
É como um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.»
(PESSOA: “Cancioneiro”, ‘144’)
Fernando Pessoa
Ora estes traços culturais, incorporados de modos muito diversos, têm a meu ver afinidades com essa mais ampla busca de Transcendência. Dessa e de outras vertentes duma herança dá sinal o diálogo presente em muitos textos da literatura portuguesa com elementos do judeo-cristianismo. Manifesta-se em poemas e narrativas que incorporam temas, citações, linguagens, ritmos, vindos desse quadro religioso, da Bíblia e da liturgia, visibilizando um gesto comum a muitas culturas e artes: a relação com elementos das religiões às quais até pela geografia estão mais directamente vinculadas. Isso mesmo quando parece ausente qualquer busca ou preocupação do foro religioso. Será uma prática de interpenetração entre dados culturais e religiosos, mais do que a presença de uma preocupação com o Divino. Porventura, em muitos casos, só uma escolha estética e não uma referência ao religioso, nem por isso deixando de conter uma significação que excede o próprio gesto de inclusão.
Natália Correia
Algumas dessas inscrições revelam um desassossego ou uma luta interior por vezes pungente, que fé ou ausência dela, alarmada, regista como falha essencial ou ontológica. Em alguns romances de Maria Velho da Costa essa luta, quase corpo a corpo, com o cristianismo, surge numa relação que, por um lado, subverte elementos- chave de uma fé nunca consentida e nunca recusada e, por outro lado, assume tonalidades agónicas. Por exemplo, Missa in Albis, de 1988, estrutura-se como a sequência de uma missa, com ela dialogando ora em antagonismo ora em sintonia, saldando-se esta Missa num gesto iconoclasta e subversivo que inclui um outro também, de homenagem ou de alguma reverência, assinalado no próprio texto: “despudor paramentado” (15). Exemplos destes acenos, cifrados ou não, são infindáveis e diversos. Ainda em Maria Velho da Costa, Lúcialima estrutura-se como o rodízio das “horas canónicas do Ofício litúrgico”; David Mourão- Ferreira dá o título “Cancioneiro de Natal” a um ciclo de poemas; Paixão, de Almeida Faria, actualiza a seu modo essa outra “Paixão” matricial, a de Jesus; A Casa Eterna, de Hélia Correia, abre com uma epígrafe de “Quohelet”; em Saramago, o Evangelho Segundo Jesus Cristo reescreve subversivamente a narrativa evangélica; Ardente Texto Joshuá, de Maria Gabriela Llansol, usa um marco litúrgico, retomando e alterando uma das suas matrizes: ‘Sintra, 18 de Maio de 1997. Domingo de Pentecostes / O espírito sopra onde o corpo sofre,’; Paulo Teixeira apropria elementos bíblicos em vários poemas: “Entre o Apocalipse e a Génese”, “A Crucificação”, “IN RI”, “Ascensão: Rembrandt [...]”; alguns poemas de Ana Luísa Amaral trabalham a partir de motivos bíblicos: “Que escada de Jacob?”; “Babel”, “Salomé após o crime”, por exemplo; o nome de uma das colectâneas de poemas de Manuel de Freitas remete para o tão musicado texto “Stabat mater”: Juxta crucem tecum stare. E há muitos mais exemplos.
Raul Brandão
Para além destas ligações a elementos judeocristãos, há outros vínculos mais ou menos explícitos a Deus – enquanto interrogação, como presença intuída, desejada ou mesmo negada. Em muitos casos talvez se trate, como em Hölderlin, (apenas) de “uma habitação poética do mundo”, que – na experiência de uma “proximidade essencial das coisas”, palavras de Heidegger (1981: 22) – abre acessos a um deus desconhecido. Deles foco alguns, num pequeno leque de textos com diferentes assinaturas.
Por vezes é o horizonte da morte a desencadear a interrogação pelo Divino, ou então é a própria vida a suscitar a pergunta pelo Sentido ou um assentimento à (im)provável existência divina. A interrogação tem muitas vezes resposta negativa, podendo insinuar uma atitude quase “programática”. Tal negação, porém, mais parece ser uma denegação: procedimento substancialmente elucidado por Freud e analisado por linguistas, que toma a negação formal como modo de afirmação. De facto alguns textos nomeiam Deus para dizer a sua inoperância ou negar a sua existência, inserindo por ínvios caminhos marcas mínimas, indeléveis, do Invisível. Uma diversidade de posições emerge em textos de escritores tão diferentes como Fernando Pessoa (a várias vozes), Raul Brandão, Miguel Torga, Jorge de Sena, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa Luís, Natália Correia, Pedro Tamen, José Saramago, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Mário Cesariny, Armando Silva Carvalho, José Agostinho da Silva, Nuno Júdice, Paulo Teixeira, Manuel Gusmão, ou, já noutra geração mais jovem, Manuel de Freitas, entre tantos mais. Alguns exemplos.
Miguel Torga
A Obra de Pessoa é abundante em reflexões e perplexidades à volta do Divino ou do grande Mistério – seja na definição de um intrínseco limite humano, sempre irremediavelmente aquém perante o Infinito interpelante seja no reconhecimento da insondabilidade de Deus, aceitando todas as suas figurações, das mais variadas culturas e civilizações, como aproximações à Sua inacessível totalidade.
No fragmento 306 do Livro de Desassossego é feito um quase diagnóstico do posicionamento seu contemporâneo, que está já à margem de qualquer sentido de Deus e solto de qualquer sentido religioso:
«Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados da só beleza, outros tinham fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver. Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. [...] Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto.» (PESSOA- SOARES: 1998, fr. 306)
Vergílio Ferreira
Respondendo à mesma questão metafísica que desde há séculos motiva o pensamento, Soares formula de modo denso e quase aforístico uma “razão” central para a inevitabilidade de Deus, na linha final do fragmento 22:
« Deus é o existirmos e isto não ser tudo.»
Ao falar de crença em Deus, o tom aproxima-se do discurso místico de diferentes religiões, pela recusa de uma definição ou de atributos para Deus, lembrando por exemplo Angelus Silesius, no excerto atrás citado. Escreve Soares:
« Em qualquer espírito, que não seja disforme, existe a crença em Deus. Em qualquer espírito, que não seja disforme, não existe a crença em um Deus definido. É qualquer ente, existente e impossível, que rege tudo; cuja pessoa, se a tem, ninguém pode definir, cujos fins, se deles usa, ninguém pode compreender. Chamando- lhe Deus dizemos tudo, porque, não tendo a palavra Deus sentido algum preciso, assim o afirmamos sem dizer nada.
Os atributos de infinito, de eterno, de omnipotente, de sumamente justo e bondoso, que por vezes lhe colamos, deslocam-se por si como todos os adjectivos desnecessários quando o substantivo basta. E Ele, a que, por indefinido, não podemos dar atributos, é, por isso mesmo, o substantivo absoluto. (fr. 473)
Fiama Hasse Pais Brandão
Sobre a mesma matéria, em reflexões a que o autor textual chama noutro fragmento “apontamentos espirituais” (fr. 474), a ausência de qualquer rede ou “escada” surge como condição de possibilidade para aceder ao divino ou “à verdade”. O percurso sugerido coincidiria então com o mais rigoroso caminho espiritual, ao suspender a mente ou a só racionalidade:
«Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.» (fr. 263)
Com outra assinatura, a de Álvaro de Campos, alguns versos indicam essa mesma experiência de limite humano, a par daquilo que irremediavelmente o excede, como se lê nestes versos do poema “Tabacaria”:
« Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta
ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.» (PESSOA- CAMPOS: 1993, 237)
Gastão Cruz
Aqui a voz de uma consciência experienciada como limite, circunscrita e fechada, diz pressentir um para lá de si, identificado como “voz de Deus”. Ou ainda, de novo no Livro do Desassossego, a percepção de uma outra ordem de “coisas”, “inconcebíveis à visão” (fr. 371) e de um lugar sem-lugar que é assim inscrito:
«Há, algures, um subterfúgio transcendente, uma divindade fluida e só ouvida» (fr. 63)
Confrontamo-nos também com a invenção pessoana de um paganismo modernista, de que Ricardo Reis havia de ser um dos “autores” e que, apesar de todas as aparências em contrário, se configura dentro do mesmo quadro de pensamento, apenas com outras referências. Os deuses por si nomeados são apercebidos como faces de um mesmo Divino – quem sabe se com o objectivo que lhes atribuiu Soares, o de “funções do estilo” (sendo “estilo” a marca de uma mão), com configurações várias a convergir algures, ligando humano e divino.
Num dos poemas de Ricardo Reis, o divino é apercebido como múltiplo, o que acentua a impossibilidade de circunscrever Deus a qualquer identidade que o limite e que impede por isso o destronar de outras figurações provenientes de culturas diversas. É que em todas elas, enquanto manifestações ou avatares, se espelha ou revela o mesmo inacessível Mistério:
Mário Cesariny
«Não a ti, Christo, odeio ou menos prezo
Que aos outros deuses que te precederam
Na memoria dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus.
No Pantheon faltavas. Poisque vieste
No Pantheon o teu logar occupa,
Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é devido. [...]»
(PESSOA- REIS: 1994, ‘ 78’ de 1916)
Na mesma direcção de Ricardo Reis, mais directamente ainda, Natália Correia expressará a equivalência de todas as figurações do Divino:
«[...]
Se a vida é agora ou nunca
Tanto faz Krisna ou Apolo.
[...]
Tanto faz Maria ou Vénus.
[...]
Se a alma é partir com ela
Tanto faz Jesus ou Zeus.
Se a vida é nos seus excessos
Esperar o deus que entrará
Por uma rosácea de versos
Tanto faz Buda ou Alá.»
(CORREIA: 1959, 182- 83)
Armando Silva Carvalho
Essa pluralidade de deuses é em Natália apercebida como manifestação de um mesmo Espírito, fundamento e destinação de tudo (linha que se cruza com a de Joaquim de Fiori), como esta “ode” sugere:
«[...]
E esparsos deuses buscarás em vão
Pois sendo cada númen um sentido
Do Paracleto, na Ilha Madre estão
Reunidos no Espírito.
Porque os deuses [...] são falas diversas
Da Criação, na Ilha deleitosa,
Ajustam- se ao Divino como as pétalas
Estão unidas na rosa.»
(CORREIA: 1985, 73)
Contudo, poucos são os textos em que existe o reconhecimento de várias figuras ou manifestações de um mesmo Deus. Quase sempre na literatura portuguesa (e Casimiro de Brito será outra das excepções) a questão de Deus coloca-se em relação ao Mistério sem nome que nos transcende, o qual, mesmo sem nomeação, é apercebido (ou imaginado) dentro do quadro judeo-cristão.
José Agostinho Baptista
Raul Brandão, no romance Húmus, insiste na questão de Deus, surgida a partir da experiência do mal e da dor humana, lembrando a nietzschiana identificação com o
Escravo. O narrador assume a tarefa de manter viva a pergunta, ao afirmá-la e negá-la quase em simultâneo: “a harmonia não existe – existe a dor; a beleza não existe –
existe a dor; Deus não existe – existe a dor” (74); Eu creio em Deus” (BRANDÃO: [1917], 174). Nessa hesitação a declaração da necessidade de que Deus exista é mantida: “Tenho necessidade de Deus como do ar que respiro. Sem ele a vida é desconexa e atroz [...]” (75). A recorrente acusação a um Deus impassível, que não “se comove” perante a dor humana (“Deus é cego!” – 113), fora da História, ex-machina, ou aparentemente tal, fecha-se ao entendimento da “impotência” divina como consequência da ordem de um mundo criado e regido por leis próprias, onde essa Presença a haver terá de manifestar-se de outro modo. Apesar de, em ambiente dostoievskiano, fazer depender o seu posicionamento ético de uma resposta em falta – “Se Deus não existe tanto faz gritar como não gritar” (75) –, mais adiante e com o pensamento em vaivém, a voz aposta pascalianamente em dar crédito, mesmo com risco, ao que não entende plenamente:
«[...] um momento só que seja obriga-nos a olhar para o alto e até ao fim ficamos com os olhos estonteados. Eu creio em Deus» (BRANDÃO: [1917], 174)
Nuno Júdice
Numa infinidade de exemplos antes de mais reconhecemos a dimensão ética como primordial, habitada ou não por um dizer de Deus como “o substantivo absoluto”. A “presença” ou inclusão de Deus, ou de uma dimensão que aponte ao Transcendente, com ou sem nome, é evidente em marcas, fortes ou ínfimas, indiciando o Divino como “presença da ausência”, conforme a expressão de alguns místicos. Isto é legível, entre tantas outras vozes, nas de Miguel Torga, Agustina Bessa Luís, Jorge de Sena, Vergílio Ferreira, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Pedro Tamen, Mário Cesariny, Armando Silva Carvalho, José Agostinho Baptista, Nuno Júdice, Manuel Gusmão. De algumas dessas vozes, algumas citações:
No Torga inicial vemos surgir a suspeita de uma presença transcendente ao sujeito: Alguém que, longe ou perto, “vela” a própria vigilância, como neste poema do volume II do Diário:
«Rondo.
Mas não sei o que guardo, nem conheço
Quem me manda ficar de sentinela...
Sei apenas que é um crime se adormeço
E deixo de espreitar pela janela.
[...]
Se é manhã
Se é poema,
Se é luar, o que vem
– Sabe-o quem me acordou,
Se foi alguém...»
(TORGA: 1960, 110)
De par com a recusa de qualquer aberta para o Divino sempre negado (“se insistes em chegar a Deus, submete-o ao teu questionar e verás como ele fica desnorteado” (FERREIRA: 1992, 8º), Vergílio Ferreira expõe uma espécie de “alarme” de estar vivo, indiciando algo para além do visível – e a escolha do nome “aparição” em tantos lugares dos textos sinaliza de algum modo essa abertura a uma Transcendência que conferirá mais significação ao humano. As linhas finais de Signo Sinal, de 1979, apelam a uma contemplação do Informulável:
«Vou sair da aldeia, vou visitar a alegria. É uma noite escura, nem uma luz sobre o mar. Só ao alto as estrelas e a anunciação das origens. Estou aqui, [...] vem uma aragem molhada das águas. Ouço-lhes o rumor interno do universo. Estou aqui. Dou o último sorvo ao cigarro. Disparo- o com os dedos em mola, [...] Irei à praia amanhã? Visitar a alegria, o triunfo breve do meu corpo. Fecho a janela, acendo a luz. Visitar a esperança. A perfeição.» (FERREIRA: 1979, 241- 242)
Em Fiama Hasse Pais Brandão algo remete para a esfera do religioso sem qualquer nome ou referência:
«O que nos chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar
e nos torna piedosos como quem já tem fé»
(FIAMA: 2000, 25- 26)
Jorge de Sena
Em Gastão Cruz quase não há referência ao para além do humano, assinalando no entanto a consciência da finitude da vida, da morte de tudo, que se abre e fecha irremediavelmente angustiada perante a fugacidade do mundo:
«[...], assim o poeta
Com o buril inscreve na deserta
Chapa do mundo não interpretado
O sentido precário de o olhar»
(CRUZ: 2006, 49)
Num poema de Mário Cesariny, em que a tonalidade inicial não o faria supor, as duas últimas breves quadras dão para uma espécie de salto que poderá ser lido na clave esperadamente sexual mas também, e simultaneamente, numa outra inesperadamente metafísica, pela indicação da falha ou ferida aberta para além de si:
«Silêncio.
[...]
Eu não sei porquê,
Meu deus d’onde venho,
Sou o ser que vê
Só o seu tamanho.
Põe a tua mão
Num laço sem fim,
E chega ao desvão,
Abre- o para mim.»
(CESARINY: 1989)
Manuel António Pina
Embora em Armando Silva Carvalho a questão esteja quase ausente, há aqui e ali indícios da (im)possibilidade do divino na travessia da noite escura, como no conjunto de poemas em Três Vezes Deus, de 2001, onde ouvimos “ruídos [atribuídos] a Outrem”, mas insuficientes para o reconhecimento de uma outra Voz:
«Olho o significado e não vejo. Persevero.
Tantos sinais do tempo, tantos filhos da glória
se consomem
E eu com as mãos sujas de sono
Não os reconheço.»
(SILVA CARVALHO: 2001, 73)
«Nenhum radar detectou os seus passos.
[...]
Mas há quem afirme ver a sua voz»
(SILVA CARVALHO: 2001, 77)
“Ano a ano” é o nome de um poema de José Agostinho Baptista, que respira uma interrogação metafísica, indiciando pelo lexema “deus” não só o nome do Sem-Nome como ainda um outro lugar, desconhecido, de pertença:
«[...]
E tu, quem és?
[...]
Uma estrela de deus, um vulto distante?
[...]
Talvez exista um pátio onde estás, sentado, triste,
Como quem espera a noite e os temporais, o frio na
Pele e na alma, o sono antigo.
Talvez me sente, talvez te fale, talvez para sempre.
Dar-te-ei um nome?
Morada, destinos, lugares para uma vida?
Eu não sou de aqui.»
(BAPTISTA: 2000)
Vitorino Nemésio
Por sua vez, na voz de Paulo Teixeira, o que parece estar em causa é a existência de Deus como porto de abrigo, pelo menos nestes versos de um poema com referência cultual cristã: “[...] / O deus que seja a noite ou o mosteiro que me recebe”. (TEIXEIRA: 1992, 66)
Em alguns poemas de Nuno Júdice, espelha-se expressivamente uma espécie de “perseguição” do eco de uma Voz, insistente, mas num chamamento inaudível a interpelar o próprio estatuto da voz que aqui fala:
«[...] Quem sou? Dos céus o eco inglório
me persegue. Nas valas gritam deuses por socorro.» (JÚDICE: 1991, 264)
De Manuel Gusmão vêm ao nosso encontro uma ou mais vozes que, longe de qualquer nomeação do divino ou do religioso, insistem numa esperança para lá do só presente, apelando a uma escolha ética animada por algo que abre ao sentido e à alegria:
«[...]
Nesses teatros de água, ouvimos as ondas em voz alta
assistimos às tempestades de luz acometendo a face
das coisas
e recitamos aquilo que com as mãos inquietas
desconhecemos.»
(GUSMÃO: 2001, 20)
«[...]
Contra todas as evidências em contrário, a alegria.»
(GUSMÃO: 2001, 134)
Sophia de Mello Breyner
Excedendo todas as probabilidades de alusão ao Divino – que os ambientes de bas-fonds nocturnos lisboetas, de droga, devassidão e “todo o álcool do mundo” (224), pareceria desalojarem –, Manuel de Freitas consigna nesses seus universos desesperança de Deus e dúvida:
«Diferença nenhuma: “Christ lag
in Todes Banden”. Ou
tão-só a certeza de não haver,
a esperar-nos, um pai abandonável,
mera carícia de pó
folheando o evangelho.»
(FREITAS: 2003, 14)
Deus e a música, a de Bach sobretudo (mas também a de Cabo Verde ou o jazz), irrompem nos mais inesperados contextos. BWV 244, título que lança a ponte a outra “Paixão” (a de São Mateus, do compositor alemão), parece tentar de algum modo traçar um paralelo entre uma “paixão” contemporânea e essa outra, musicada por Bach, ambas aparentemente redimidas pela poderosa beleza da ária “Erbarme Dich” da partitura. A área é aludida pela súplica em língua alemã, sendo o seu conteúdo verbal logo a seguir zeugmaticamente desconstruído:
« [...]
Piedade, pietà, erbarme dich, um cigarro
que caindo dos dedos se esmaga no chão»
(FREITAS: 2001, 13)
Às vezes a inscrição de Deus surge grafada num Tu em maiúsculas, modo aparente de intimidade com o divino, distante e próximo, invocado e por vezes terrivelmente desafiado ou destronado. Vêmo-lo em José Régio, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Natália Correia, Pedro Tamen, Manuel António Pina, entre outros mais. Dois
exemplos.
Herberto Helder
Jorge de Sena regista em vários poemas da sua primeira colectânea de poesia um enérgico monólogo dirigido a essa quase consentida presença (embora irónica também) de alguém para lá de todos os sentidos. É o caso de “Caverna”, publicado em 1942:
« [...]
Este pavor, meu Deus
De Te reduzir ao som, à música das quatro letras;
[...]
Passa uma aragem,
As árvores enchem- se de intervalos de nuvens,
– e eu assistindo completo ao ar em movimento!...
Este pavor, meu Deus, de Te confundir com o vento!
De Ti, só o teu reflexo é irreparável.»
(SENA: 1977, 76)
Num poema de 1984, Manuel António Pina expressa um não-saber que nem por isso recusa a presença da imensidão inominável num horizonte final:
«[...]
Estarei ainda longe de Ti,
Quem quer que sejas ou eu seja?
Cresce a noite à minha volta,
terei palavras para falar- Te
e compreenderás Tu este,
não sei qual de nós, que procura
a Tua face?
Quando eu me calar
saberei que estarei diante de uma coisa imensa.[...].»
(PINA: 2001, 105)
José Saramago
Variadíssimos autores incorporam a dimensão divina como fulcral, insistente, contínua, em posicionamentos quase sem nada em comum. Entre tantos mais, José Régio, Vitorino Nemésio, Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Belo (no período inicial), Rui Cynatti, Natália Correia, Herberto Helder, Maria Velho da Costa, José Saramago, Ana Luísa Amaral, Adília Lopes, Maria Gabriela Llansol, Daniel Faria, José Tolentino de Mendonça, cada um cintilando seja uma insuspeitada passagem de Deus por esta Terra, seja uma hesitação, seja uma “promessa sem garantias” (Manuel Gusmão), em geral fora de qualquer nomeação de crença, cristã ou outra. Alguns exemplos:
Em determinado período da obra, Vitorino Nemésio configura o pressentimento de uma presença de Deus no escuro, a “luminosa treva” de Mestre Eckhart, como em “Cólofon”:
«A noite isenta o homem e punge-o.
A mão de Deus desenha a verdade no escuro e a alma
se fez clara como lã cardada à neve.
Veio o dia e apagou este fulgor secreto,
Veio a noite e no vácuo tudo se repôs e deu.
[...]»
(NEMÉSIO: 1989, 167)
Em muitos poemas de Sophia ressalta o pressentimento de um horizonte último a totalizar os sentidos:
« Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser vivo e total
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.
Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.
Irei beber a luz e o amanhecer
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.»
(SOPHIA: 1975, 49)
Adília Lopes
Herberto Helder inclui em muitos textos o nome “Deus”: nome sempre alto, desdobrado em metáforas que intensificam o gesto e ousam uma ética radical – um “clarão”, um “rasgão” que a voz vibra, como nestes versos de poemas novos incluídos no seu mais recente livro datado de 2008:
«a madeira trabalhamo-la às escondidas,
e com o barro e o ferro às escondidas reluzimos
no escuro,
o Deus que há- de vir não veio ainda,
a água não sobe ao rosto,
não sobe com luz ao rosto como devia e não
trabalhamos com água coada e fogo,
quebrou-se a enxuta substância da terra,
e então o Deus que há-de vir não há-de vir nunca
vem aí o sagrado, e tornam-se radiosas as coisas
mínimas
e amadureces,
[...]
no teu centro tocas
para causar profundidade,
quer dizer: vem o Deus que há-de vir, sente-se
contra a água e a cabeça,
tão perto, contra
kapput,
a cabeça purificada
– e o Deus que há- de vir há-de vir andando sobre
as águas? –
[...]»
(HERBERTO HELDER: 2008, 159- 160)
Maria Gabriela Llansol
Em José Saramago, esta nomeação do Divino chega-nos de um ponto em si próprio eventualmente não conhecido, porque situado muito para além da afirmação que lhe era habitual: a de “ateu”. Lemos: “Deus é o silêncio do universo, e o ser humano o grito que dá sentido a esse silêncio” (SARAMAGO: 2009).
Um poema de Ana Luísa Amaral, “Como desabitado, o coração”, vincula Deus à existência de uma “outra luz”, uma “habitação de coração”, um “pensamento mais iluminado”:
« [...]
O conhecer mais puro. O ar que traz os sons,
o tempo a transportar a luz. As estrelas já mortas,
de onde nascemos, a sua luz ainda. Aqui, junto de
nós.
Habitar sem saber a mecânica quântica, igual
a habitação de coração.
O pensamento mais iluminado.
Saber da energia, o mais puro conceito.
Como Deus»
(AMARAL: 2009, 97)
No seu habitual registo iconoclasta, em pastiches de ordem vária, Adília Lopes inclui muitas vezes uma referência a Deus. E num tom aparentemente só de superfície liberta uma voz claramente crente:
«Deus é um boomerang
e eu sou a sua filha pródiga» (LOPES: 2000, 363)
«Andou
pelas casas
de Deus
a pedir Deus
às pedras
e as pedras
deram-lhe Deus»
(LOPES: 2000, 379- 80)
«Deus é a nossa mulher-a-dias
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta
[...]»
(LOPES: 2000, 405)
Daniel Faria
Nascida de um imaginário e de uma visão da escrita e da vida sem ligações palpáveis a outros textos da literatura portuguesa, a Obra de Maria Gabriela Llansol assume- se de algum modo como proposta de um percurso espiritual novo, em relação íntima ao cosmos, ao ínfimo presente, a cada coisa e voz, à escuta do que no universo subterraneamente converge. Perspectiva algo afim à de Teilhard de Chardin e que em termos de Raimon Panikkar poderá designar-se como “cosmoteândrica” (PANIKKAR: 1990, 21), isto é, em que o humano está em interface com o cosmos e o Divino. Isto apesar de os textos de Llansol serem sempre desconstruções, sem qualquer “sistema”.
As múltiplas constelações de textos e referências que assomam alargam e expandem sentidos, a ligar muitos tempos, vozes e lugares. O modo narrativo recusado dá lugar a textualidades, onde “cenas fulgor” congregam e irradiam zonas de energia, contida mas explosiva, originando uma exigência ética radical (“Não está a falar de ascese, mas de mudança de cor”, 25), articulando palavra e ser ao Indizível. É um outro espaço, este, em que o leitor é convidado a entrar como legente, activo e ele próprio detonador dos múltiplos sentidos. Acolhendo a superfície rugosa e resistente – textos fragmentários, lacunares, como voz em processo no coração da vida, do mundo, do cosmos –, cada legente receberá pela escrita-leitura / leitura-escrita uma proposta inesperada – a do silêncio como condição para o advento duma palavra que seja interior. Pelo tecido verbal perpassa uma presença sem nome e próxima da experiência mística, aqui quase selvagem por livre de caminhos partilhados, que a voz do texto sinaliza a cada instante, ao desenhar uma “vertical do lugar” (32). Um breve excerto de Ardente Texto Joshuá – em grande parte refigurador de Teresa de Lisieux:
«[...] A taça afastou- se e a Pessoa- origem da minha
visão encontrou o sentimento de beleza em terra, e
perdeu a beleza ligeira. Veio ter comigo. [...]
Que nome dar a uma travessia, ao mesmo tempo, revelação?»
(LLANSOL: 1998, 14)
José Tolentino Mendonça
Em alguma da poesia mais recente, a escuta de um eco vindo de outro lugar materializa- se singularmente em dois nomes: José Tolentino Mendonça e Daniel Faria. Alguns poemas parece quererem fixá-lo, mas ele constantemente se dissipa, como a experiência mística. Assoma nessa espécie de luz “enxertada no que é nomeado” ou na escuta de um interlocutor silencioso que irrompe no quotidiano e muda radicalmente a vida. De Daniel Faria:
«[...]
Sei que existes e multiplicarás
A tua falta.
Somarei a tua ausência à minha escuta
E tu redobrarás a minha vida.»
(FARIA: 2002, 70)
«[...]
Partirei sozinho na viagem
Sem nenhuma pedra ou senda repetida
E no tempo repetido acharei uma saída
Uma manhã depois de uma manhã»
(FARIA: 2002, 146)
«Sei bem que não mereço um dia entrar no céu.
Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra.»
(FARIA: 2002, 38)
De José Tolentino Mendonça:
«Quando por fim a cifra infinita
que dois mundos combinam
esplender inteiramente seus motivos
a cada um caberá olhar
na lâmina de ouro
um nome inefável
o que buscámos sem um gesto
o que dissemos sem uma palavra»
(TOLENTINO: 2006, 200)
Nesta diversidade de textos e vozes, mostrada numa espécie de vitral de fragmentos, figuram como vimos alguns sinais da pergunta pelo Sentido que em muitos lugares da Terra e durante tantos séculos presenciamos em formas diversíssimas. Apontam a uma misteriosa Presença, consentida ou negada, ou a uma sua ausência, prolongando assim essa “antiquíssima e não idêntica” (GUSMÃO: 2001, 13) interrogação humana quanto à sua Origem e Destinação, a qual – apesar de todas as religiões e formas de Revelação – ficará sempre aquém de uma resposta plena.
Até certo ponto são figuras do Invisível, do Deus informulável. São sobretudo acenos, cintilações, vestígios, vínculos – metafísicos, religiosos, espirituais, éticos – a apontarem ao que desconhecemos, nos transcende e chama, e cujo nome não sabemos pronunciar.
Esta transcrição omite as notas de rodapé.
Isabel Allegro de Magalhães
Professora catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
In Para lá das religiões, ed. Chiado Editora
09.02.12
Fernando Pessoa