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Cardeal Tolentino fala do que «nos distancia do mundo e da vida» na atribuição do prémio da Universidade de Coimbra

«Contemplação» e «cuidado», termos que pertencem ao «vocabulário do futuro» pós-pandemia, foram as duas palavras centrais na intervenção do cardeal José Tolentino Mendonça durante a cerimónia de atribuição da edição de 2021 do prémio da Universidade de Coimbra, que decorreu hoje, data em que assinala 831 anos.

O bibliotecário e arquivista do Vaticano, «homem de cultura cuja mensagem e atitude de generosidade, inclusão, comunidade, equilíbrio, tolerância, inovação, justiça, serviço e paz», nas palavras da presidente do Conselho Geral da Universidade de Coimbra, Gabriela Figueiredo Dias, recordou que a «secular e prestigiada» instituição é «certamente a universidade portuguesa mais representada na biblioteca dos papas».

Hoje, frisou o poeta, a quem interroga sobre a utilidade das ciências, carreiras de investigação, bibliotecas e universidades, é preciso responder que servem para «salvaguardar o bem frágil que é a humanidade daquilo que a incessantemente a ameaça».

Excerto da intervenção, proferida do Vaticano:

«Uma das críticas veementes que já no século XIX Nietzsche formulou contra o modelo das universidades modernas assenta no facto de se ter perdido a dimensão contemplativa, essa liberdade para o aprofundamento não utilitarista da ciência.



«Servir o bem comum, que é, no fundo, servir a pessoa humana, a sua dignidade singular e inviolável, e servir a harmonia com toda a Criação, deve tornar-se o objetivo mobilizador da comunidade»



Num parágrafo de “Humano demasiado humano”, Nietzsche escreveu: como sinal de que decaiu a valorização da vida contemplativa, os eruditos de agora competem com os homens ativos numa espécie de fruição precipitada, de modo que parecem valorizar mais esse modo de fruir do que aquele que realmente lhes convém, e que de facto é um prazer bem maior.

Os eruditos envergonham-se do ócio. De facto, o ócio, a contemplação, não é, como tantas vezes se escuta, uma fuga do mundo ou uma recusa das necessidades objetivas da existência. O que nos dissocia do mundo e da vida é antes uma erudição apressada, em vez da maturação paciente e transdisciplinar. São os ditames da produtividade, do controlo utilitarista, do imediatismo imposto às universidades, em vez dos tempos necessariamente abertos e longos que o conhecimento e a investigação científicos requerem. É o espumejar superficial daquele falar agitado que, como Nietzsche denunciou, nada tem para nos dizer.

O que nos distancia do mundo e da vida é aceitar substituir os nossos sentidos pelo consumo expedito e massivo das interpretações, tornando-nos, como viu George Steiner, uma sociedade de logocratas e comentadores, em vez de seguirmos a nossa vocação original de criadores legentes, interrogantes, exploradores, intérpretes do real. Na verdade, a contemplação é arte de nos aproximarmos de nós próprios e do mundo.

Miguel Torga testemunhava o seguinte: "Contra o aceleramento da História, um passeio no campo; não conheço outro antídoto. Diante de uma ciência que devora a própria matéria que estuda, ou de uma técnica apostada em envergonhar a nossa fisiologia - só há o recurso das hortas. (...) Andar às arrecuas, até acertar o passo com esta nossa morosa mãe que se chama natureza, calma senhora que nos olha com benévola indulgência das mães". Acertar o passo com a natureza.



«Nesta estação dramática da História, serve-nos a objetividade dos cuidadores sensatos, que responsavelmente se dão conta da urgência de restabelecer equilíbrios mais estáveis e duradouros»



A redescoberta da contemplação pode ser precisamente isso, a emergência de uma nova consciência sistémica, que compreender a interconexão vital existente entre a vida humana e a vida do planeta que é a nossa casa comum, investindo aí a construção de novas sínteses e práticas.

Hoje, a universidade está colocada perante o desafio epocal de adequar todas as suas disciplinas e saberes a partir de uma ecologia integral, e de transmitir isso à comunidade. Neste campo, precisamos, de facto, de entrar numa nova época da História.

A outra palavra “futurante” a redescobrir é a palavra cuidado. As nossas sociedades precisam de colocar no âmago da vida, com maior decisão e empenhamento, a noção de bem comum.

A acentuação do individualismo conduziu-nos a uma dramática fragmentação da experiência social. O “salve-se-quem-puder” ou o “todos contra todos”, como insistentemente tem repetido o papa Francisco, não são estratégias de futuro.

Não podemos não avaliar o impacto dos diversos aspetos da vida social, política, económica e cultural no conjunto da sociedade ou da inteira família humana, nem ignorar que as decisões, ou as más decisões, que hoje tomamos terão reflexo de longa duração, que condicionará a vida das gerações vindouras.

Servir o bem comum, que é, no fundo, servir a pessoa humana, a sua dignidade singular e inviolável, e servir a harmonia com toda a Criação, deve tornar-se o objetivo mobilizador da comunidade.

Precisamos, como a pandemia o tem inequivocamente mostrado, implementar e reforçar a cultura da responsabilidade e do cuidado, não deixando ninguém para trás. Nesta estação dramática da História, serve-nos a objetividade dos cuidadores sensatos, que responsavelmente se dão conta da urgência de restabelecer equilíbrios mais estáveis e duradouros. E as universidades estão na primeira linha para responder a esta chamada.»


 

Rui Jorge Martins
Fonte: Universidade de Coimbra
Publicado em 01.03.2021 | Atualizado em 07.10.2023

 

 
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